Compensação de precatório com tributos tipifica o crime contra ordem tributária?

A partir do advento do art. 78, § 2٥ do ADCT muitos contribuintes passaram a efetuar a compensação dos tributos devidos com os créditos representados por precatórios próprios ou aqueles adquiridos de terceiros. No meu entender a norma do § 2º, do art. 78 do ADCT, introduzida pela EC nº 30/2000, é autoaplicável, tanto é que as compensações feitas com base nela foram convalidadas pela EC nº 62/2009. Muitos Estados da Federação editaram leis prevendo expressamente essas compensações. A lei existente no Estado de São Paulo perdeu vigência, e o ulterior projeto legislativo apresentado acha-se travado na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo por falta de vontade política de resolver esse problema de precatórios ditos impagáveis.

Nas unidades federativas onde não há previsão legal de compensação tributária, os contribuintes vêm fazendo essas compensações mediante inserção do valor do precatório na GIA e estão sendo, em muitos casos, acusados de praticarem crimes contra a ordem tributária na modalidade prevista no art. 1º, inciso II da Lei nº 8.137/90 que assim prescreve:

“Art. 1º Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:

II – fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documentos ou livro exigido pela lei fiscal”.

Conforme se verifica do caput do art. 1º trata-se de crime de natureza material ou de resultado. Sem a supressão total ou parcial do tributo devido não se caracteriza o crime contra a ordem tributária por qualquer uma das condutas mencionadas nos incisos I a V. É a posição da doutrina majoritária e, também, da jurisprudência do STF [1].

Cumpre, pois, verificar se a compensação por via de GIA do valor do precatório com o valor do tributo devido configura fraude à fiscalização tributária que resulte em redução ou supressão total ou parcial do tributo.

Em primeiro lugar, deve-se atentar para o fato de que a inadimplência contumaz do poder público, que está tentando buscar atualmente a quarta moratória constitucional como decorrência do desvio sistemático e programado das verbas destinadas ao pagamento da condenação judicial, legitima a ação do contribuinte de compensar o seu crédito representado pelo precatório judicial, com o valor do tributo devido. Nada justifica que o poder público, que cobra tributos cada vez mais onerosos com emprego de instrumentos de sanção política como sucedâneo da execução fiscal, leve 20 ou 30 anos para solver a sua obrigação de satisfazer o seu credor. A condenação judicial em montantes elevados, por si só, já é um sinal de má conduta do administrador público que não respeita os direitos dos contribuintes. A morosidade programada, com vistas à obtenção de moratórias constitucionais, é atentatória ao princípio da moralidade administrativa e reforça ainda mais a legitimidade da compensação por iniciativa do contribuinte, como única forma capaz de receber o seu crédito.

Feitas essas considerações, examinemos se a inserção na GIA – um documento fiscal obrigatório para a apuração do ICMS a recolher – de valor correspondente ao precatório compensando corresponde ao ato de fraudar a fiscalização tributária mediante inserção de elementos inexatos.

Elementos inexatos não se confunde com elementos estranhos à apuração do ICMS pela sistemática prevista na respectiva legislação. Nos Estados em que não há previsão legal de compensação de precatórios x tributos somente o crédito referente ao ICMS pode figurar na GIA, para fins de compensação com o débito do imposto. Portanto, a inserção do valor de precatório na GIA configura um elemento estranho. Porém, o que tipifica a conduta criminal é a inserção de elemento inexato. E o valor do precatório é líquido e certo, não restando qualquer dúvida quanto a sua exatidão. Comentando esse inciso II afirmamos que “inserir elementos inexatos significa inserir elementos que não correspondem à realidade fática” [2]. Ora, não é o caso de inserção do valor do precatório regulamente expedido pelo tribunal que proferiu a decisão exequenda. Na conhecida emissão de nota fiscal calçada, em que consta o valor real da operação na via destinada ao cliente e um valor menor na via destinada à exibição ao fisco, configura, sem dúvida, a inserção de elementos inexatos e, por conseguinte, implica ato de fraudar a fiscalização tributária. Não é o caso de inserção do valor de precatório. Nesse sentido a jurisprudência do TJRS:

“CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA – ART. 1º, II, LEI Nº 8.137/1990 – COMPETÊNCIA – PROVA – DESCLASSIFICAÇÃO – DOSIMETRIA – Tratando-se de imputação da prática de sonegação fraudulenta de ICMS, tributo estadual, a competência, obviamente, é da Justiça estadual. Irrelevância dos eventuais reflexos que os fatos incriminados possam produzir em outros tributos, destinados à União. Réu com poder de gerenciamento na loja e com procuração da proprietária para atuar com amplos poderes. Comprovado que efetuava operações de saídas de mercadorias inserindo elementos inexatos em notas fiscais, ou seja, a prática conhecida como “nota calçada”, a condenação é de rigor. Pena-base aplicada de acordo com os vetores do art. 59 do CP. Acréscimo pela continuidade compatível com a quantidade de infrações perpetradas. Inaplicabilidade, porém, do art. 72 do Código. Quantitativo de dias-multa estabelecido mediante a aplicação de fração, guardada simetria com o aumento verificado na pena privativa de liberdade em face da continuidade delitiva, sobre o quantitativo disposto para cada uma das infrações. Apelo não provido. (Apelação Crime nº 70041834524, 4ª C.Crim., TJRS, Rel. Marcelo Bandeira Pereira, Julgado em 25.08.2011)

“CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA – Comete o delito previsto no art. 1º, II, da Lei nº 8.137/1990, a agente que frauda a fiscalização tributária, efetuando operações de saídas de mercadorias, inserindo elementos inexatos nas notas fiscais, utilizando-se do expediente denominado “nota calçada”, Condenação mantida. PENA DE MULTA – O disposto no art. 72 do CP não se aplica ao crime continuado. Orientação do STJ. Pena pecuniária reduzida. ATENUANTES – A existência de atenuantes, ainda que obrigatórias, não tem o condão de levar a pena para aquém do mínimo legal. Pena majorada. CRIME CONTINUADO – O acréscimo decorrente da continuação deve manter uma proporção com o número de infrações, isto é: quanto mais crimes, maior o aumento. Apelo ministerial provido. (Apelação Crime nº 70039750864, 4ª C.Crim., TJRS, Rel. Constantino Lisbôa de Azevedo, julgado em 29.06.2011).

A compensação de precatório com tributos está prevista no § 9٥, do art. 100 da CF, ainda que de forma unilateral pela Fazenda. É questão de proceder à interpretação conforme com a Constituição levando em conta o aspecto bilateral do instituto da compensação. Se a Fazenda devedora pode tomar iniciativa da compensação resta claro que igual direito assiste ao contribuinte devedor. Esse § 9º foi acrescido pela EC nº 62/09 e foi declarado inconstitucional pelo STF [3]. Porém, resolvendo a questão de ordem suscitada, em 25-3-2015, o Plenário da Corte Suprema modulou os efeitos da decisão incluindo, dentre outras matérias, a delegação de competência ao Conselho Nacional de Justiça para que apresente proposta normativa que discipline a possibilidade de compensação de precatórios vencidos, próprios ou de terceiros, com o estoque de créditos inscritos em dívida ativa até 25-3-2015, por opção do credor do precatório. Trata-se de velha tese que vínhamos defendendo ao longo do tempo, como única alternativa para resolver de vez a questão de “precatórios impagáveis”. Enquanto a solução do problema estiver apenas em mãos do poder público o problema continuará sendo empurrado para frente por meio de intermináveis moratórias constitucionais.

Dentro desse quadro jurídico, ainda que a inserção do valor de precatório na GIA configure elemento estranho, não pode ser considerado inserção de elemento inexato. Na realidade, corresponde à inserção de elemento idôneo, apto a operar a compensação tributária.

Enfim, a inserção do valor do precatório na GIA tem o condão de levar ao conhecimento da autoridade fiscal competente que o contribuinte-credor efetuou a compensação por conta do tributo devido. De fato, a apresentação da GIA constitui uma obrigação acessória do contribuinte do ICMS, a fim de propiciar a efetiva fiscalização de tributos. Nada impede de o fisco de examinar e conferir a autenticidade dos documentos que ensejaram a compensação tributária.

Quem assim procede, propiciando amais ampla fiscalização por parte da Fazenda, não pode ser acusado de cometer o crime do inciso II, do art. 1º da Lei nº 8.137 que é um crime de natureza dolosa. O dolo é incompatível com a apresentação da GIA onde está denunciado todo o procedimento adotado pelo contribuinte de forma clara e objetiva.

Falece, no caso sob exame, os requisitos da inserção de elemento inexato e, por conseguinte, do ato de fraudar a fiscalização tributária. Finalmente, falta o requisito nuclear do crime que é a redução ou supressão total ou parcial do tributo devido. A supressão ou redução, necessariamente dolosa, é incompatível com o instituto da compensação que consiste na extinção de obrigações recíprocas até onde se compensarem. O crime em questão só se tem por consumado quando o contribuinte lançar mão de compensação por meio de um falso precatório.

SP, 29-6-15.

* Jurista, com 30 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

Site: www.haradaadvogados.com.br



[1] RE nº 81611/DF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 13-5-2005, p. 0006.

[2] Cf nosso Crimes contra ordem tributária. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 224.

[3] ADI nº 4.357/DF, Rel. Min. Ayres Britto.

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