Considerações sobre o ativismo judicial

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Diógenes de Brito Tavares

Advogado – especialista em direito constitucional

 

Fenômeno não exatamente recente, porém repetido a ponto de se converter, talvez, em traço característico atual do Poder Judiciário, o denominado ativismo judicial suscita opiniões bastante acirradas no que concerne a sua conformidade para com o modelo de separação de poderes adotado na Constituição Federal de 1988, assim como sua conveniência e necessidade para a efetivação dos compromissos assumidos em sede constitucional.

Num primeiro momento, cumpre assentar a noção e origens deste propalado fenômeno ativista para, seguidamente, analisar as principais críticas que lhe são dirigidas.

A cunhagem da expressão ativismo judicial parece sugestiva de usurpação, de conduta na qual o Poder Judiciário se arroga a consecução de atribuição que, ao menos tipicamente, não lhe toca(ria) como própria. Insta verificar se existe aí, de fato, uma pecha, ou se está o Judiciário a cumprir uma necessidade transitória, justificável segundo o esquema constitucional de contenção e acomodação do poder estatal, de “suprir omissões do Poder Legislativo ou do Poder Executivo que são lesivas aos direitos das pessoas em geral ou da comunidade como um todo”.[1]

Seu conteúdo significante expressa um protagonismo assumido pelo Judiciário no arranjo das funções estatais, mais especificamente quando se trata de expandir o sentido e o alcance das normas jurídicas para suprir a inércia dos poderes públicos.[2]

A raiz do atual protagonismo judiciário pode ser identificada já na Assembleia Constituinte, instalada em 1º de fevereiro de 1987: como resultado do complexo e compromissário trabalho de seus membros, a Constituição de 1988 experimentou, por um lado, uma “ampla inserção de políticas públicas” em seu texto, como forma de “ampliar o acesso à educação, à saúde e à assistência social”, assim como de proteger grupos vulneráveis; por outro lado, constitucionalizaram-se temas relevantes relacionados à economia, administração, moralidade, eficiência, política criminal, família, meio ambiente etc, os quais, uma vez transformados em questões de direito, resultaram transferidos para as instituições de justiça, “em detrimento da própria política a ser levada a cabo pelo parlamento de forma ordinária”.[3]

A condução dos trabalhos constituintes em tais moldes deve-se a uma possível “desconfiança no legislador, assim como no Executivo”,[4] o que não traduz qualquer novidade. Basta recordar, por exemplo, que os revolucionários franceses de 1789, desconfiados da monarquia suplantada e do sistema judiciário por ela influenciado, optaram por confiar a consecução de seus desígnios à obra de um pretenso legislador virtuoso.

Luís Roberto Barroso associa a expressiva judicialização de questões políticas e sociais a uma tríade composta pelos seguintes fatores: (i) a constitucionalização, que expressa a “irradiação dos valores constitucionais pelo sistema jurídico” e permite a “aplicação direta da Constituição a determinadas questões”; (ii) o aumento da demanda social por justiça, como decorrência da redescoberta da cidadania, da conscientização das pessoas em relação aos próprios direitos, criação de novas ações, novos direitos e ampliação do rol de atores legitimados a sua promoção e; (iii) a ascensão institucional do Judiciário, que passou a dividir com o Executivo e o Legislativo o exercício de um papel político, ainda que por intermédio de métodos jurídicos de atuação e argumentação.[5]

Por fim, a isso se deve acrescentar uma sensível alteração verificada a partir da segunda metade do século XX, expressiva do denominado Direito Pós-moderno, que se encontra relacionada ao perfil da magistratura e ao papel exercido pelos juízes nos governos democráticos que se seguiram ao enceramento das devastadoras guerras mundiais.

Para além da mera subsunção dos fatos à norma jurídica, bem como para aquém da magistratura enquanto fonte única do direito válido, concebeu-se a figura do magistrado mediador-integrador, construindo o sentido e alcance da norma jurídica não apenas com suporte na lei, mas também com a integração de outras fontes de produção jurídica, como a jurisprudência, a doutrina, as convenções internacionais, os costumes e os princípios gerais de direito, afastando-se do tradicional modelo piramidal para a consolidação de uma estrutura disposta no formato de uma grande rede principiológica e normativa.[6]

Todos esses aspectos se incrementam no âmbito da jurisdição constitucional e ganham corpo na atuação do Supremo Tribunal Federal enquanto guardião da Constituição, do funcionamento estável das instituições democráticas e do controle de conformidade das leis para com a Carta Magna.

Dessa feita, é bastante interessante notar que seja acusada de romper o equilíbrio institucional precisamente a instância última de resistência ao desequilíbrio.

Para análise das principais críticas dirigidas ao fenômeno ativista, fiemo-nos em exemplo bastante característico do alegado protagonismo judiciário.

Por muitos anos, com atenção ao disposto no §2º do artigo 103 da Constituição Federal de 1988, o Supremo Tribunal Federal afirmou norma jurídica segundo a qual, uma vez verificada omissão inconstitucional dos Poderes Legislativo ou Executivo para tornar efetivo direito consagrado no texto da própria Constituição, cumpria ao Judiciário notificar o Poder competente para a adoção das providências de intermediação necessárias (no prazo de 30 dias, em se tratando de órgão administrativo; sem determinação de prazo, em se tratando de órgão legislativo).

A inadmissível perpetuação de verdadeiros estados de omissão inconstitucional conduziu a uma alteração informal da norma jurídica extraível daquele mesmo dispositivo: inicialmente, o Supremo Tribunal Federal destacou um “parâmetro temporal razoável” para a atuação legislativa, a exemplo dos dezoito meses assinalados ao Congresso Nacional, no bojo da ADI n.º 3.682 (Relator o Ministro Gilmar Mendes, julgada em 09/05/2007), para edição da lei complementar prevista no §4º do art. 18 da Constituição Federal; posteriormente, a Corte passou a defender técnica decisória diferenciada, para que os seus julgados não se convertessem em “meros discursos lítero-poéticos”, desprovidos de necessária força executória. Assim, previu-se a própria consequência aplicável à hipótese de o órgão legiferante descumprir o prazo assinalado para suprimento da mora legislativa (cf. ADO n.º 25, Relator o Ministro Gilmar Mendes, julgada em 30/11/2016).

Bem se verifica, do exemplo acima, um espaço a princípio reservado às funções executiva e legislativa do poder estatal, preenchido pela função jurisdicional com o propósito de conferir efetividade a direitos reconhecidos em sede constitucional.

As principais críticas direcionadas a essa movimentação judiciário-ativista repousam na ausência de legitimidade democrática dos membros que integram o Poder Judiciário, no exercício de papel político por si desempenhado e nas técnicas de argumentação por vezes utilizadas para justificar o protagonismo aí exercido.

Na tradição pátria, juízes, desembargadores e ministros não se submetem a qualquer procedimento direto de sufrágio popular, sendo frequente o argumento no sentido de que, por isso, não teriam poder para invalidar atos normativos editados por representantes escolhidos pela vontade dos cidadãos.

Nisso não vislumbramos qualquer entrave, por mais de uma razão: (i) porque o próprio texto constitucional, resultante do exercício do poder constituinte originário, conferiu a todos os magistrados que compõem o Judiciário, desde juízes estaduais (no controle difuso de constitucionalidade) até ministros do Supremo Tribunal Federal (nos controles difuso e concentrado de constitucionalidade), a prerrogativa de declararem a desconformidade de lei ou ato normativo para com a Carta Magna; (ii) por ser perfeitamente possível (e até mesmo salutar) conciliar, no arranjo da ordem constitucional, representantes ungidos pelo voto popular com outros submetidos ao crivo da técnica, do mérito e do conhecimento específico;[7] (iii) porque a jurisdição estatal também ostenta um caráter representativo, já que exercida “em nome do povo e deve contas à sociedade”.[8]

Avançando sobre os pontos críticos, cremos que exigir dos julgadores uma atuação independente e consentânea à lei e ao Direito não permite desconsiderar a fração política que circunda e se engendra na atuação da instituição judiciária.

A conservação ou ampliação da autoridade judiciária perante os demais poderes, as consequências práticas determinadas para o cumprimento de suas decisões e mesmo a sua afirmação enquanto instância decisória final já traduzem manifestações políticas.

Sem incorrer em odioso populismo judicial, é possível que os Tribunais avaliem as pretensões envolvidas, confiram voz aos interessados nos temas judicializados, avaliem as consequências práticas de suas decisões no que tange à harmonia e unicidade do poder estatal e, ainda assim, não renunciem à tarefa primordial de julgarem conforme o direito vigente.

Neste particular, no julgamento de tema dedicado aos critérios de atualização monetária e juros de mora aplicáveis às condenações judiciais impostas à Fazenda Pública (RE 870.947/SE), o Ministro Relator, Luiz Fux, conferiu exemplo de sobriedade ao destacar que, mesmo diante de argumentos e equações econômicas destinadas a pregar o terror, num cenário econômica e politicamente afirmado como heterodoxo, deve a Corte Suprema debruçar-se sobre a questão jurídica, à luz dos valores constitucionais consagrados.

Noutro giro, um perigo sempre presente, oportunamente destacado por Lenio Streck, reside na teoria argumentativa adotada pelos julgadores, mais das vezes por intermédio de regras de ponderação transformadas em verdadeiro “álibi teórico para o exercício dos mais variados modos de discricionarismos e axiologismos”.[9]

No contexto do ativismo judiciário, alijar-se da arbitrariedade se situa numa linha tênue: além do reconhecimento da omissão inconstitucional, da necessidade de concretização de um direito, da autoafirmação da possibilidade de fazê-lo e da demonstração do ganho que assim se experimenta, envolve, segundo cremos, também o questionamento quase hamletiano do julgador em se colocar ou não se colocar na posição do poder omitente quando se trata de avaliar as consequências da sua atuação intermediadora.

O dilema não esconde outras questões tormentosas, consistentes em saber, por exemplo, qual a duração temporal da transitoriedade afirmada pelo Supremo Tribunal Federal no exercício desse mister? Quem fiscaliza, em última análise, a atuação da Corte? Como evitar que a atuação monocrática dos julgadores se sobreponha à colegiada? Legitima-se a concepção de um juiz-filósofo que, mesmo não sendo governante, deva ser capaz de adotar soluções democráticas, com respeito à lei e ao Direito, e que sejam as melhores para todos?

A Constituição aspira se perpetuar em efetividade, não em inanição. Por isso, reputamos superáveis as críticas dirigidas ao fenômeno judiciário-ativista, não obstante a necessidade de se trilhar um longo caminho no desenvolvimento de modelos que aí acomodem, harmonicamente, as relações entre as distintas funções estatais.

 

 

[1] Definição de ativismo judicial atribuída ao Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=420617&tip=UN. Acesso em 08/10/2019.

[2] No contexto do mencionado protagonismo, a literatura jurídica já evoca expressões que designam fenômenos similares, como o ativismo congressual, que traduz reação de inconformismo parlamentar para com determinada interpretação constitucional assentada pelo Supremo Tribunal Federal, e mesmo o ativismo legal, já aludido pelo Superior Tribunal de Justiça para sublinhar o destaque e suficiência da proteção normativa conferida ao meio ambiente (Recurso Especial n.º 650.728/SC, de relatoria do Ministro Herman Benjamin).

[3] VIEIRA, Oscar Vilhena; BARBOSA, Ana Laura Pereira. Do compromisso maximizador à resiliência constitucional. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/nec/v37n3/1980-5403-nec-37-03-375.pdf. Acesso em 08/10/2019.

[4] VIEIRA, Oscar Vilhena; BARBOSA, Ana Laura Pereira. Do compromisso maximizador à resiliência constitucional. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/nec/v37n3/1980-5403-nec-37-03-375.pdf. Acesso em 08/10/2019.

[5] Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 406-415.

[6] OST, François. Júpiter, Hércules, Hermes: tres modelos de juez. Dispónível em: http://www.derecho.uba.ar/publicaciones/rev_academia/revistas/08/jupiter-hercules-hermes-tres-modelos-de-juez.pdf. Acesso em 08/10/2019.

[7] BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 408.

[8] Ibidem.

[9] Lições de crítica hermenêutica do Direito. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016, p. 134-135.

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