Contribuição social: execução de ofício pela Justiça do Trabalho

Após o advento da EC nº 45/04 que atribuiu a competência à Justiça do Trabalho para promover a execução, de ofício, das contribuições sociais previstas no art. 195, I, a e II da CF inúmeras dúvida vêm sendo suscitadas gerando incerteza e insegurança jurídica.

Autores de nomeada, como Eduardo Marcial Ferreira Jardim, com apoio em outros juristas de igual calibre, vêm contestando a constitucionalidade da execução de ofício pela Justiça do Trabalho fazendo sérios reparos à tese oposta, principalmente, com fundamento na teoria geral do direito. Em relação ao nosso posicionamento em prol da execução de ofício, porque isso está expresso no texto constitucional, o renomado autor confessa que faço “alguns temperamentos.” [1]

No texto divulgado pelo Consultor Jurídico, o preclaro professor Eduardo Jardim alinha as seguintes razões que conduziriam à inconstitucionalidade da execução de ofício:

  1. a execução de ofício implica cobrança de tributo sem fato gerador, porque apenas o pagamento de salários e não a decisão judicial que declara o referido pagamento configura fato gerador de contribuição previdenciária;
  2. essa cobrança de ofício implica usurpação da competência administrativa para efetuar o lançamento do tributo, atentando contra o princípio da separação dos Poderes (art. 2°, da CF);
  3. a quantificação da contribuição social afigura-se imprecisa porque inclui-se na sua base de cálculo componentes estranhos como a condenação em multas, indenização e outros elementos que não o salário;
  4. a aludida cobrança implica efeitos ultra petita à sentença trabalhista por operar efeitos extrapartes;
  5. a execução de ofício implica supressão do direito à ampla defesa e ao devido processo legal a serem exercidos na esfera administrativa;
  6. a inexistência do prévio processo de conhecimento acutila a ampla defesa e o devido processo legal;
  7. a sentença trabalhista hospeda como essência uma ilicitude, razão pela qual não poderia representar o fato gerador de tributos;
  8. o tributo nasce da lei e não da decisão homologatória do acordo;
  9. o juízo trabalhista não reveste competência formal para sentenciar sobre questão tributária que é matéria especializada tanto quanto o direito trabalhista.

Nem é preciso esmiuçar cada uma dessas objeções, mas façamos um apanhado geral das considerações acima enumeradas. Desnecessário, também lembrar as regras de interpretação a partir do texto constitucional.

Por razões que não interessam ao presente estudo, quis o Poder Reformador atribuir à Justiça do Trabalho a competência para executar, de ofício, as contribuições previdenciárias decorrentes de sentença que proferir. Não cabe ao aplicador da lei discutir o acerto ou o desacerto da decisão do legislador constituinte derivado de atribuir à Justiça do Trabalho uma função atípica, da mesma forma que não cabe ao usuário da Justiça reclamar contra designação de um juiz, titular da cadeira de Direito Penal, para a Vara de Família e Sucessões, por exemplo.

Tudo se resume na interpretação do inciso VIII, do art. 114, da CF:

“Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:

VIII – a execução, de ofício, das contribuições sociais previstas no art. 195, I, a, e II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças que proferir.”

Cabe-nos fixar os exatos limites constitucionais dessa atribuição constitucional e procurar, também, apontar as possíveis soluções dos problemas decorrentes, direta ou indiretamente da atuação da Justiça do Trabalho na cobrança de contribuições previdenciárias.

Oportuno esclarecer, desde logo, que a execução de ofício das contribuições sociais e “seus acréscimos legais” como está expresso no inciso VIII, não inclui, por óbvio, as sanções pecuniárias ou indenizações impostas pela decisão trabalhista. Esses acréscimos se referem a juros moratórios e à atualização monetária das contribuições sociais devidas, incidentes sobre salários reconhecidos pela decisão judicial. Importante lembrar, também, que não mais se discute que as contribuições para o sistema “S” não estão abrangidas no texto do inciso VIII, do art. 114, da CF. Reiteradas decisões do TST deixaram isso bem claro. Feitos esses esclarecimentos passemos a examinar a questão.

Mediante alteração do art. 114 da CF, a EC nº 45/2004 conferiu à Justiça do Trabalho a competência para “a execução, de ofício, das contribuições sociais previstas no art. 195, I, a e II e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças que proferir.”

O texto constitucional prescreve, com toda clareza, que a execução de ofício das contribuições sociais se refere tão somente aquelas decorrentes de sentença que proferir. Nem poderia ser de outra forma. A contribuição social, como tributo que é, requer valor determinado que traduza a existência da base de cálculo constituída por sentença condenatória em pecúnia.

Condenada a empresa reclamada no pagamento de verbas salariais cabe à Justiça do Trabalho executar, de ofício, as contribuições sociais devidas pelo empregador e pelo empregado e seus acréscimos legais.

Exemplificando: reconhecido o vínculo empregatício a partir de determinado momento (sentença declaratória) condena-se o empregador no pagamento dos respectivos salários (decisão condenatória in pecúnia). Essa decisão, proferida com rigorosa observância dos princípios do devido processo legal e do contraditório e ampla defesa, por óbvio, protrai-se no tempo para reconhecer o vínculo laboral desde então, e por conseguinte, condenar o empregador no pagamento dos salários correspondentes ainda não prescritos. Essa decisão judicial implica reconhecimento da situação configuradora do fato gerador concreto da contribuição social, que ao teor do art. 22 da Lei n° 8.212/91 é de “vinte por cento sobre o total das remunerações pagas, devidas ou creditadas a qualquer título, durante o mês.”

Nesse sentido, a sentença trabalhista, longe de configurar uma penalidade ou ilicitude, como alega o articulista do texto antes mencionado, representa um título jurídico abstrato. É função da Justiça do Trabalho exatamente reconhecer a ocorrência do fato gerador relativamente ao trabalhador, cujo nome foi omitido na folha de remuneração mensal do empregador.

De fato, a decisão condenatória, uma vez liquidada, constitui o crédito tributário tanto quanto o lançamento administrativo que a doutrina atribui eficácia de título jurídico abstrato, conferindo executividade à obrigação tributária preexistente. Não se trata de uma inovação trazida pela EC nº 45/2004. Desde a Constituição Federal de 1946 o imposto de transmissão causa mortis já era constituído pela sentença homologatória do cálculo, nos autos do inventário ou do arrolamento.

Ocorre que, na prática, a Justiça do Trabalho vem promovendo a intimação do INSS para apresentar o cálculo das contribuições sociais pertinentes aos períodos não abrangidos pela condenação pecuniária, quer seja para o pagamento de verbas salariais ou acordo equivalente. Outras vezes, é o próprio INSS que requer nos autos da reclamatória a execução dessas contribuições sociais.

Ora, isso é extrapolar a competência que a Constituição Federal lhe atribuiu. Executar as contribuições sociais “decorrentes das sentenças que proferir”, como prescreve o texto constitucional, pressupõe condenação em verbas salariais, base de cálculo dessas contribuições sociais, ou seja, não é dado ao juiz do trabalho agir no lugar da autoridade administrativa competente para constituir o crédito tributário fora dos limites abrangidos pela sentença condenatória em pecúnia.

Exatamente nesse sentido a decisão do Colendo Supremo Tribunal Federal verificada na ementa abaixo:

“EMENTA: Recurso extraordinário. Repercussão geral reconhecida. Competência da Justiça do Trabalho. Alcance do art. 114, VIII, da Constituição Federal. 1. A competência da Justiça do Trabalho prevista no art. 114, VIII, da Constituição Federal alcança apenas a execução das contribuições previdenciárias relativas ao objeto da condenação constante das sentenças que proferir. 2. Recurso extraordinário conhecido e desprovido[2]”.

O eminente Ministro Relator em seu erudito voto acrescentou:

“De início, é bom dizer que admitir, por exemplo, a execução de uma contribuição social atinente a um salário cujo pagamento foi determinado na sentença trabalhista, ou seja, juntamente com a execução do valor principal e que lhe serve como base de cálculo, é bem diverso de admitir a execução de uma contribuição social atinente a um salário cujo pagamento não foi objeto da decisão, e que, portanto, não poderá ser executado e cujo valor é muitas vezes desconhecido.”

Resta claro que é juridicamente impossível a execução sem título executivo. A decisão judicial que se limita a reconhecer o vínculo trabalhista tem natureza meramente declaratória não comportando execução da contribuição social, que pressupõe a existência de uma decisão condenatória em pecúnia que possa servir de base de cálculo do tributo.

O que a Justiça do Trabalho pode fazer é determinar a intimação do INSS para em o querendo promover o lançamento das contribuições sociais e sua execução perante a Justiça Federal, em face do vínculo trabalhista reconhecido pela decisão que proferiu nos autos da reclamação trabalhista.

E aqui surge um problema relacionado com o prazo decadencial porque a contribuição social enquadra-se na modalidade de lançamento por homologação, cujo termo inicial é a data da ocorrência do fato gerador, nos precisos termos do § 4º, do art. 150 do CTN, salvo nas hipóteses comprovadas de dolo, fraude ou simulação.

O lançamento por homologação pressupõe a tomada de uma série de providências por parte do sujeito passivo para a constituição do crédito tributário, tais como a inclusão do empregado na folha de remuneração, a apuração periódica do montante da contribuição social devida e a comunicação ao fisco. Ausentes tais elementos não há que se falar em lançamento por homologação, pois nada existe para ser homologado pelo fisco expressamente, ou tacitamente pelo decurso do prazo de cinco anos.

Aliás, em se tratando de trabalhador na informalidade não ocorrerá o fato gerador por ele não estar incluído na folha salarial e nem existir quaisquer rendimentos do trabalho pagos ou creditados pela empresa à pessoa física. Não procede a tese de que o fato gerador da contribuição previdenciária é a existência do vínculo laboral, por se afastar da lei e da Constituição Federal (art. 22, I da Lei nº 8.212/91 e art. 195, I, a da CF).

Por isso, na hipótese aventada (trabalhador na informalidade), o prazo decadencial é o do art. 173 do CTN. Pode-se dizer que o fato gerador da contribuição social, no caso, é a sentença que reconheceu o vinculo empregatício como sucedâneo da ausência da folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados pela empresa à pessoa física que lhe preste serviço.

A dúvida maior consiste em saber se o lançamento para constituição do crédito tributário pode ou não retroagir além do prazo quinquenal, tendo em vista a Súmula vinculante nº 8 do STF.

Sem embargo das opiniões em contrário entendo que o órgão securitário não poderá protrair os efeitos da sentença trabalhista, reconhecedora do vínculo de emprego, para período maior do que aquele definido pela Súmula nº 8, isto é, deve ser respeitado o prazo decadencial previsto no art. 173 do CTN.

Em outras palavras, se a decisão da Justiça do Trabalho reconheceu o vínculo empregatício desde dez anos atrás e condenou a empresa reclamada nas verbas salariais dos últimos dois anos, cabe à Justiça do Trabalho executar, de ofício, as contribuições sociais abrangidas na sentença condenatória e caberá ao INSS constituir o crédito tributário pertinente a outros três anos anteriores, nos termos do art. 142 do CTN, promovendo a notificação do lançamento ao sujeito passivo, para pagamento ou impugnação.

 

 

* Jurista, com 31 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica.

[1] Execução fiscal cobra tributo sem fato gerador, in Revista Consultor Jurídico, 18-4-2012.

[2] RE nº 569.056/PA, Rel. Min. Menezes Direito, DJe-236, divulgação em 11-12-2009 e publicação em 12-12-2008.

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