ISS e locação de bens móveis associada à prestação de serviços

Durante um longo tempo a jurisprudência do STF ficou presa à ideia de que havia um conceito constitucional de serviço, porque o legislador constituinte teria adotado aquele ditado pelo direito privado que classifica as obrigações em:  obrigações de dar, de fazer e de não fazer.

Sustentava-se que a locação de bens móveis não expressa uma obrigação de fazer porque não implica um esforço humano dirigido à produção de um bem imaterial. Daí a inconstitucionalidade de sua tributação pelo ISS. Aderimos a esse posicionamento, como se pode constatar nos vários artigos e monografias, bem como nas diversas obras que escrevemos a respeito[1]. A tese veio ser adotada sob forma de Súmula Vinculante de nº 31 que tem o seguinte teor:

“É inconstitucional a incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISS sobre operações de locação de bens móveis.”

Entretanto, de lá para cá houve uma evolução na jurisprudência da Corte Suprema no sentido de que cabe ao Direito Tributário adotar conceitos próprios, sem se subordinar aos ditames do direito privado. Primeiros sinais nesse sentido foram emitidos quando o STF passou a admitir a tributação do leasing financeiro e do lease-back[2]. De fato, nesses casos é difícil sustentar que estamos diante de uma obrigação de fazer.

Finalmente, em recente julgado o STF desvencilhou-se definitivamente do conceito privatístico do que seja serviço ao sublinhar:

[…] 10. A Constituição Tributária deve ser interpretada de acordo com o pluralismo metodológico, abrindo-se para a interpretação segundo variados métodos, que vão desde o literal até o sistemático e teleológico, sendo certo que os conceitos constitucionais tributários não são fechados e unívocos, devendo-se recorrer também aos aportes de ciências afins para a sua interpretação, como a Ciência das Finanças, Economia e Contabilidade. 11. A interpretação isolada do art. 110, do CTN, conduz à prevalência do método literal, dando aos conceitos de Direito Privado a primazia hermenêutica na ordem jurídica, o que resta inconcebível. Consequentemente deve-se promover a interpretação conjugada dos artigos 109 e 110, do CTN, avultando o método sistemático quando estiverem em jogo institutos e conceitos utilizados pela Constituição, e, de outro, o método teleológico quando não haja a constitucionalização dos conceitos. 12. A unidade do ordenamento jurídico é conferida pela própria Constituição, por interpretação sistemática e axiológica, entre outros valores e princípios relevantes do ordenamento jurídico. 13. Os tributos sobre o consumo, ou tributos sobre o valor agregado, de que são exemplos o ISSQN e o ICMS, assimilam considerações econômicas, porquanto baseados em conceitos elaborados pelo próprio Direito Tributário ou em conceitos tecnológicos, caracterizados por grande fluidez e mutação quanto à sua natureza jurídica. 14. O critério econômico não se confunde com a vetusta teoria da interpretação econômica do fato gerador, consagrada no Código Tributário Alemão de 1919, rechaçada pela doutrina e jurisprudência, mas antes em reconhecimento da interação entre o Direito e a Economia, em substituição ao formalismo jurídico, a permitir a incidência do Princípio da Capacidade Contributiva. 15. A classificação das obrigações em “obrigação de dar”, de “fazer” e “não fazer”, tem cunho eminentemente civilista, como se observa das disposições no Título “Das Modalidades das Obrigações”, no Código Civil de 2002 (que seguiu a classificação do Código Civil de 1916), em: (i) obrigação de dar (coisa certa ou incerta) (arts. 233 a 246, CC); (ii) obrigação de fazer (arts. 247 a 249, CC); e (iii) obrigação de não fazer (arts. 250 e 251, CC), não é a mais apropriada para o enquadramento dos produtos e serviços resultantes da atividade econômica, pelo que deve ser apreciada cum grano salis. 16. A Suprema Corte, ao permitir a incidência do ISSQN nas operações de leasing financeiro e lease-back (RREE 547.245 e 592.205), admitiu uma interpretação mais ampla do texto constitucional quanto ao conceito de “serviços” desvinculado do conceito de “obrigação de fazer”[3].

Resulta desse novo posicionamento do STF, que detém a última palavra em matéria de constitucionalidade das normas, a necessidade de rever a jurisprudência sobre a incidência do ISS naqueles itens de serviços que caracterizam locação ou cessão de bens móveis, como a cessão de andaimes, palcos e coberturas que consta do item 3.05 da lista de serviços.

A Súmula Vinculante nº 31 do STF há de ser interpretada no sentido do enunciado originalmente proposto elo Ministro Joaquim Barbosa nos seguintes termos:

“É inconstitucional a incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISS sobre operações de locação de bens móveis dissociadas da prestação de serviços”.

De fato, se a cessão de andaime for seguida de prestação de serviço por parte do cedente, caracterizada estará a incidência do ISS prevista na lista de serviços. O mesmo acontece com a locação de automóvel com fornecimento de motorista, ou locação de guindaste com fornecimento de técnico-operador. Nessas hipóteses, bastará a previsão na lista nacional de serviços acolhida pelo legislador municipal para legitimar a cobrança do ISS.

 

SP, 6-11-17.

* Jurista, com 32 obras publicadas. Acadêmico da Academia Paulista de Letras Jurídicas, da Academia Brasileira de Direito Tributário e da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Professor nos cursos de pós-graduação lato sensu em diversas instituições de ensino superior. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

 

 

 

[1] [1] ISS.  Doutrina e prática, 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2014; Direito financeiro e tributário, 26. ed. São Paulo: Atlas, 2.017.

[2] [2] RE nº 547245, Rel. Min. Eros Grau, DJe de 5-3-2010.

[3] [3] RE nº 651703, Rel. Min. Luiz Fux, DJe de 26-4-2017.

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