Aspectos legais da permissão de uso de imóveis funcionais

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Estadão – Ardalión Boríssytch Peredónov, protagonista do notável romance O Diabo Mesquinho, de Fiódor Sologub, aspira ascender na carreira burocrática, assumindo o desejado posto de inspetor escolar, afastando-se, assim, do ministério de professor ginasiano em uma pequena província russa. Falha, miseravelmente, em tal desiderato, enredando a si numa trama marcada por realidade, fantasia e insanidade.

Em um tempo no qual a ascensão burocrática equivalia à social, é de se cogitar que, obtido o cobiçado posto e, transferido, talvez, a um grande centro urbano, o anti-herói do romance de Sologub tivesse direito a ocupar um imóvel funcional para bem se instalar e cumprir suas atribuições (pelas características de Peredónov, é também de se supor que cumpriria, com esmero, o bem instalar-se; já as respectivas atribuições…).

Tal introito, fortuito e expressivo de uma das múltiplas representações do funcionalismo público na literatura mundial, serve para introduzir ao leitor a seguinte informação: o Portal da Transparência do Governo Federal, em dados atualizados até 1.º/9/2019, referência a existência, no âmbito da administração direta do Poder Executivo, de um total de 1.410 imóveis funcionais, dos quais 788 se encontram ocupados, 339 distribuídos, 109 em procedimento de alienação, 90 vagos, 76 em manutenção e 8 situados na indeterminada designação “outros”. Por seu turno, Câmara dos Deputados e Senado Federal destinam aos congressistas, respectivamente, 432 e 72 imóveis de natureza funcional.

Ainda que intuitivo, importa dizer que um imóvel funcional se perfaz bem de propriedade estatal, cujo uso é franqueado a agente público ou político, para fixação de sua residência, no interesse da Administração Pública (lato sensu) e para a consecução do interesse público.

A Agência Nacional do Cinema, por exemplo, através da Resolução n.º 01/2002 de sua Diretoria Colegiada, estabeleceu a definição de imóvel funcional como sendo aquele “residencial de propriedade da União, situado no Distrito Federal ou em qualquer localidade do território nacional, passível de permissão de uso a servidores”.

Trata-se, portanto, de um bem público de uso especial, sujeito a regime jurídico que impede, como regra, a sua alienação, penhora, oneração em garantia e aquisição por usucapião.

A fixação de tal residência subordina o agente ao instituto da permissão de uso da unidade funcional que, por se relacionar ao Direito Administrativo, afasta a aplicação das regras que disciplinam a locação de imóveis urbanos (Lei n.º 8.245/91).

O permissionário, ao firmar o termo de ocupação do imóvel, assume as obrigações nucleares de conservá-lo, restituí-lo, a tempo e modo convencionados, nas mesmas condições de habitabilidade em que o recebeu, sem embargo de efetivar o pagamento da taxa de uso e das despesas ordinárias de manutenção e consumo.

No âmbito da União Federal, a taxa de uso – obrigação assemelhada ao aluguel devido nas locações – corresponde a 0,001 (um milésimo) do valor do imóvel, sendo facultado a determinados ocupantes de cargos em comissão optar pelo pagamento da referida taxa à razão de 10% (dez por cento) da respectiva remuneração, ao teor dos artigos 15 e 16 da Lei n.º 8.025/90.

A permissão de uso da unidade residencial funcional poderá se extinguir em hipóteses como a exoneração ou demissão do agente público, licença para tratar de interesses particulares, aposentadoria, atraso no pagamento dos encargos e falecimento.

Diferentemente do que acontece no âmbito das locações urbanas – donde a ação de despejo se perfaz o instrumento hábil a reaver o imóvel, seja qual for o fundamento do término do vínculo locatício -, tem-se que a ocupação irregular da unidade residencial funcional deverá ser resolvida mediante propositura de ação de reintegração de posse, pelo ente da Administração, demonstrando-se a precariedade que se encerra no esbulho possessório.

Cumpre destacar que o Superior Tribunal de Justiça consolidou entendimento segundo o qual, na hipótese de ocupação irregular da unidade funcional, não é devida a indenização por perdas e danos muitas vezes perseguida pela Administração Pública com base no valor de aluguel que se poderia praticar, em tese, na exploração econômica do imóvel. Os julgados dessa Corte Superior (ver, por todos, o AgInt no AREsp 969.931/DF, Segunda Turma, Relatora Ministra Assusete Magalhães, Julgamento em 08/06/2017) enfatizam o regramento administrativo aplicável à permissão de uso, que prevê a incidência de “multa equivalente a dez vezes o valor da taxa de uso, em cada período de trinta dias de retenção do imóvel, após a perda do direito à ocupação” (Lei n.º 8.025/90, artigo 15, inciso I, alínea ‘e’).

Passados quase 60 anos desde a inauguração da Capital Federal, a manutenção dos imóveis funcionais em Brasília enseja questionamento não apenas por seu alto custo, mas também pelo desenvolvimento da rede hoteleira distrital, pela oferta existente de imóveis destinados à locação e pelo auxílio-moradia percebido por muitos agentes políticos. O projeto de lei n.º 458/16, de autoria da então senadora Gleisi Hoffmann, que objetivava autorizar a alienação de unidades funcionais vinculadas ao Poder Legislativo, eliminando, outrossim, o direito de preferência na sua aquisição pelos respectivos permissionários, terminou por ser arquivado, finda a última legislatura, em 2018.

*Diógenes de Brito Tavares, especialista em Direito Constitucional do Harada Advogados

 

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