O sujeito ativo na ação de repetição de indébito

Saber quem detém a legitimidade para pleitear a repetição de indébito é uma questão que não está totalmente pacificada na doutrina.

Muitos buscam o fundamento da repetição no princípio do locupletamento ilícito atribuído a Pompônio, quando, na realidade, ela encontra guarida no princípio constitucional da legalidade.

A própria jurisprudência da Suprema Corte – preocupada com o aspecto moralístico, que, em última análise, resulta do aspecto econômico do tributo indevidamente pago – viu-se embaralhada, conforme súmula 71, posteriormente mitigada pela de nº 546.

Legitimidade para propor a ação, em princípio, só poderia ter quem foi parte na relação jurídica tributária, e não, o consumidor final (também conhecido como contribuinte econômico ou contribuinte de fato) que suportou o encargo financeiro do tributo, o qual, nenhuma obrigação tem perante o fisco, e, por conseguinte, nenhum direito tem perante a Fazenda Pública que sequer o conhece.

Em respeito à teoria geral do direito, o art. 165 do CTN confere, com exclusividade, a legitimidade para propor a ação de repetição ao sujeito passivo da obrigação tributária, aquele que praticou o fato tipificado na lei e que, portanto, tornou-se devedor do tributo.

O art. 166 do CTN apenas regula (e regula com rara infelicidade) o exercício da ação pelo sujeito passivo pretendendo resolver um problema moral – o enriquecimento ilícito – que por sinal, restou insolvido.

Com efeito, o legislador tributário, extrapolando-se do âmbito da matéria específica, pretendeu regular assunto já disciplinado pelo direito comum, concernente ao princípio do enriquecimento ilícito. E o fez de forma desastrosa ao se referir a “tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo”, certamente haurido nas lições de fisiocratas do século passado, Quesnay e Stuart Mill que classificaram os tributos em diretos e indiretos, conforme tenha havido repercussão ou absorção do respectivo encargo financeiro.

A fragilidade de tal critério, fundamentado em fenômeno tão versátil, quanto incerto, que depende da lei de formação de preços e de inúmeros outros fatores, até imprevisíveis, salta aos olhos.

O mesmo tributo poderia ser direto ou indireto conforme tenha sido, de fato, suportado, ou não, pelo consumidor.

Daí porque não cabe falar em tributos que comportem, por sua natureza, transferência do encargo financeiro, por depender exclusivamente do exame caso a caso.

Os próprios tributos de natureza pessoal comportam repercussões: profissionais existem que variam o preço do serviço prestado, conforme a exigência, ou não, de recibo pelo tomador. Em relação aos chamados tributos reais, por exemplo, até existe contrato-padrão atribuindo ao locatário a responsabilidade pelo pagamento de “todos os impostos e taxas que recaiam sobre o imóvel locado”.

Por isso, falar-se em tributos diretos e indiretos, baseado no fenômeno da repercussão, hoje, soa como pilhéria.

Outrossim, ao exigir a autorização do consumidor, no caso de este ter suportado o encargo financeiro do tributo, o indigitado artigo pode provocar a perpetuação da retenção do indébito tributário pelo sujeito ativo, violando o princípio constitucional da legalidade tributária, pois, nem sempre é possível obter tal autorização ou comprovar que suportou o ônus financeiro do tributo.

Portanto, além de criar uma virtual situação de inconstitucionalidade não resolveu a questão que teve em mira, ou seja, o locupletamento ilícito, pois, este perdurará em mão do Estado até de forma agravada, conforme bem salientou Aliomar Baleeiro, em seu voto vencido, nos E.R.E. nº 47.624-GB:

“Mas não se pode negar a nocividade do ponto de vista ético e pragmático, duma interpretação que encoraja o Estado mantenedor do direito a praticar, sistematicamente, inconstitucionalidades e ilegalidades na certeza de que não será obrigado a restituir o proveito da turpitude de seus agentes e órgãos. Nada pode haver de mais contrário ao progresso do Direito e à realização da idéia-força da Justiça” (RTJ-44/530).

Graças à introdução do desnecessário art. 166 do CTN que nada tem a ver com o Direito Tributário, mesmo após a implantação da Reforma Tributária, não foi possível aos tribunais desvencilharam-se de noções pré-jurídicas, interpretando as leis de conformidade com os subsídios teóricos ministrados pelos economistas. Questões jurídicas hão de ser envolvidas pela aplicação de princípios jurídicos.

Por causa do citado art. 166 rios de tintas tem sido derramados pelos julgadores; montanhas de papéis tem sido consumidas pelos juízes e tribunais, com evidente prejuízo à máquina judiciária, na busca de elementos probatórios configuradores dos requisitos aí exigidos: o sujeito passivo suportou, ou não, o encargo? Em caso de tê-lo transferido está, ou não, autorizado por todos os consumidores?

Ora, pergunta-se, que interesse tem em saber de tais detalhes, se, pelo princípio da legalidade tributária, inscrito em nível constitucional, o sujeito ativo deve, necessariamente, devolver com juros e correção monetária, o que indevidamente recebeu?

O art. 166 do CTN nada tem a ver com a repetição de tributo indevidamente pago, que é um direito subjetivo público material do sujeito passivo, reconhecido pela Constituição Federal.

A citada disposição legal ao pretender condicionar o exercício da ação repetitória pelo sujeito passivo, motivado pela velha parêmia de Pompônio, de inegável conteúdo ético, acaba por criar condição de impossível repetição para grande parte dos tributos, pelo que, Ives Gandra da Silva Martins a considera inconstitucional aqule art. 166 do CTN.[1]

Daí porque, considerações de natureza econômica (até a folha de pagamento de uma empresa integra o custo do produto, e, por conseguinte, alcança o consumidor através do fenômeno da repercussão) não devem pesar no exame da restituição de tributo indevido.

Pela aplicação do princípio da legalidade tributária:

a) o que foi pago a mais do que determina a lei deve ser repetido com juros e correção monetária;

b) o que foi pago aquém da determinação legal deve ser complementado, acrescido de juros, correção monetária e multa, ressalvada quanto a esta última o disposto no art. 138 do CTN.

Tolerar o pleito direto dos consumidores, para reaver aquilo que indevidamente suportou (de fato) o encargo financeiro seria, não só, contrariar a teoria geral do direito, como também, afrontar o princípio de economia processual.

Realmente, permitir que uma ação se desenvolva entre o sujeito ativo do tributo e uma terceira pessoa que nenhum vínculo jurídico tem com o primeiro, seria reconhecer a formação artificial de uma relação jurídica processual que não corresponde a res in indicium deducta. Seria a ação de uma pessoa contra alguém que não está obrigada a dar, fazer ou deixar de fazer ou deixar de fazer alguma coisa. Outrossim, permitir a ação direta do consumidor seria desprestigiar o princípio da economia processual, ensejando a multiplicação de milhares de demandas que poderiam ser resumidas em uma única a ser impetrada pelo sujeito passivo.

Por isso, nem mesmo de lege ferenda os estudiosos chegam a advogar a tese da ação direta do consumidor contra o fisco.

Gilberto de Ulhoa Canto, por exemplo, como integrante da Comissão Elaboradora do Anteprojeto de Lei Orgânica do Processo Tributário, para conciliar o aspecto jurídico com o aspecto moral, tão enfatizado pela Corte Suprema, ofereceu a seguinte redação:

“Art. 177 – É parte legítima para pleitear a repetição, o sujeito passivo da obrigação tributária ou o infrator que tiver pago a penalidade, ainda que o efetivo encargo financeiro tenha sido transferido a outrem. Quem provar a transferência, disporá de ação regressiva contra o sujeito passivo reembolsado, ou poderá integrar a lide como assistente, e requerer ao juiz que a restituição lhe seja feita” ( O Processo Tributário – publicação nº 2 da Comissão de Reforma do Ministério da Fazenda, 1964).

Não se pode confundir o requisito do exercício da ação (autorização do consumidor que suportou o encargo financeiro, como prescrito no art. 166 do CTN) com a titulariedade da ação que só pode pertencer a quem foi parte na relação jurídica material. O raciocínio – quem pode autorizar pode propor diretamente a ação – conduz a uma consequência jurídica inaceitável: a ação de alguém contra terceiro, sem que haja qualquer vínculo jurídico entre as partes.

Reconhecemos, entretanto, há situações em que o Estado se locupleta da turpidez de seus agentes e órgãos, porque o contribuinte que se posiciona como mero arrecadador do tributo repassado não tem interesse em propor a ação.

Enfrentamos essa questão quando no exercício do cargo de procurador municipal de São Paulo. A Prefeitura havia adquirido uma frota de veículos por meio de uma concessionária para uso no policiamento da Guarda Metropolitana. Por causa da omissão na destinação dos veículos houve cobrança do IPI não se aplicando a isenção prevista em lei.

A Prefeitura de São Paulo, contribuinte de fato, firmou a autorização para a concessionária propor a ação de repetição e assumiu o compromisso de ressarcimento de custas e despesas processuais na hipótese de eventual derrota no Judiciário, respaldada no parecer jurídico que exaramos na época assegurando o sucesso da demanda em face da clareza dos textos legislativos a respeito. Os advogados da concessionária demoraram tanto na tomada de uma decisão que a ação acabou prescrevendo.

SP, 19-12-14.

* Jurista, com 28 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

Site: www.haradaadvogados.com.br



[1] Caderno de pesquisas tributárias, nº 8. Editora Resenha Tributária, p. 160-161.

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