Precatórios impagáveis

Os precatórios já se tornaram sinônimo de palavrão. Remeter o credor ao sistema de pagamentos por precatórios é o mesmo que mandar esse credor reclamar ao papa. É um instituto completamente desmoralizado, apesar de uma parafernália de preceitos legais e constitucionais que asseguram o seu cumprimento no devido prazo.

A origem desse desprezo pelas ordens judiciais de pagamento está na tolerância ou conivência do próprio Judiciário em relação às autoridades governamentais omissas. A partir dessa leniência do Poder Judiciário, responsável pelo seu exato cumprimento, os governantes passaram a programar desvios sistemáticos dos recursos orçamentários destinados à quitação dos precatórios. Alguns, sequer faziam a inclusão orçamentária determinada pela Constituição sob pena do crime de responsabilidade, omissão essa constatada e solenemente proclamada por órgãos de controle e fiscalização da execução orçamentária, sem que nenhuma consequência de qualquer natureza tenha sido imputada ao governante omisso.

Assim, multiplicaram-se as desapropriações ao arrepio do princípio constitucional da justa e prévia indenização, bem como os calotes rotineiros perpetrados aos servidores públicos.

Como resultado desses procedimentos condenáveis acumularam-se os precatórios privilegiados (os de natureza alimentícia) e os precatórios comuns, ditos impagáveis, por isso mesmo objetos de três moratórias constitucionais. A cada moratória foi-se aperfeiçoando os requintes de crueldade infligido aos credores do poder público.

A última moratória, a prevista na EC nº 62/09, resultou do projeto elaborado pela dupla de Satanás que alijaram da discussão os representantes da OAB Nacional. Essa emenda do calote como ficou conhecida está recheada de inusitado sadismo burocrático para inviabilizar o pagamento oportuno das parcelas resultantes dessa moratória de 15 anos. Começou com oito anos; depois, dez; agora, quinze anos. O próximo será de 30 anos no mínimo!

O STF, em 14-3-2013, passados mais de dois anos, quando o estrago já havia se alastrado, decretou a inconstitucionalidade desse tresloucado regime especial de “pagamento” de precatórios, por violentar em bloco os direitos e garantias fundamentares (ADIs ns. 4425 e 4357).

Mas, a Corte não completou o “serviço de faxina”. Publicou o acórdão antes de terminar o julgamento com a modulação de efeitos, o que criou inúmeras dificuldades e discussões que tomaram conta dos tribunais.

Precisou que o Min. Fux determinasse que as entidades políticas devedoras continuassem promovendo os depósitos mensais nos percentuais da receita líquida cabente a cada uma delas, na forma dos dispositivos declarados inconstitucionais, pois, a vitória da cidadania não poderia representar um tiro no pé.

Mas, os problemas de juros moratórios na desapropriação ainda não estão solucionados. Como se sabe, a Corte decretou a inconstitucionalidade da atualização dos precatórios pelos índices da poupança, sem indicar aquele que deveria ser aplicado em seu lugar. Demonstramos no artigo anterior que aplicável é o percentual de 1% ao mês, mediante interpretação conjugada do art. 406 do CC e do art. 161, § 1º do CTN. Na esfera federal, a Lei nº 12.919/13 que aprovou a LDO para o exercício de 2014, prevê a atualização dos precatórios pelo IPCA-E do IBGE (art. 27) para a referido exercício. O preceito, evidentemente, vincula a União, mas não tem aplicação em relação aos Estados e Municípios, os maiores caloteiros.

Entretanto, esse assunto está sendo objeto de discussão no Pretório Excelso Nacional para fixar o alcance e limites da modulação de efeitos.

Há uma tendência de acolher a proposta do Relator, Min. Fux para estender o regime declarado inconstitucional até o exercício de 2018. De fato, não seria razoável exigir-se pagamento imediato de milhares de precatórios acumulados impunemente ao longo do tempo, com a covivência do Judiciário.

Quanto à questão dos juros há uma tendência revelada no julgamento de 20/03/2014 de fixar o dia 14-3-2013, data do julgamento das ADIs, para a atualização dos precatórios pelos índices da poupança considerados inconstitucionais. Isso viola o princípio da isonomia e a natureza da decisão declaratória de inconstitucionalidade que tem ínsito o efeito ex tunc . Nesse sentido, inconstitucional é a própria lei que permite ao Tribunal determinar a continuidade da aplicação de preceitos que ele considerou inconstitucionais.

Em nome do pragmatismo conveniente vai se passando por cima dos princípios constitucionais e o STF vai agindo como legislador positivo. Só que, ao contrário das leis emanadas dos órgãos legislativos competentes, as “leis” elaboradas pelo STF não são passíveis de impugnação judicial.

Se assim é, não se pode entender a recusa da maioria dos Ministros que já votaram a “modulação de efeito” em acolher a salutar proposta formulada pelo Min. Barroso no sentido de permitir a compensação do precatório com a dívida ativa do ente político devedor. A solução aventada é prática, própria de quem foi advogado, portanto, conhecedor do drama vivenciado pelos credores de precatórios.

E a proposta que reflete a preocupação de seu autor com a falência do regime de precatórios que tantos sofrimentos tem imposto a seus titulares que vão morrendo ao longo do tempo sem conseguir colher os frutos da atuação jurisdicional do Estado, não é estranha à EC nº 62/09 que previa essa compensação por iniciativa da Fazenda devedora, mas que foi considerada inconstitucional.

A única proposta viável para solucionar de vez a grave questão dos precatórios ditos impagáveis é permitir essa compensação com a dívida ativa dos entes políticos que calotearam os seus credores.

Essa compensação não trará desequilíbrio das contas públicas, pois à diminuição da receita tributária corresponde à diminuição da dívida pública em igual quantidade. A receita tributária prevista na LOA compensa-se com a despesa alusiva a precatórios fixada na mesma LOA.

Mas, essa proposta do eminente Min. Barroso contraria tudo aquilo que vem sendo feito nos últimos 25 anos em que as instituições vêm se revezando para dificultar e protelar, de uma forma ou de outra, o pagamento das dívidas oriundas de condenações judiciais. A proposta de compensação, se acolhida, acabará com a filas de precatórios subtraindo do Judiciário as longas discussões que esse regime de pagamento propiciam. Dirão alguns que assim irá desatolar o Judiciário. Mas, isso não seria bom? Para alguns parece que não, pois o Judiciário emperrado é o que mais atende aos interesses do poder público.

Hoje, além dos três Poderes empenhados no desmonte do regime de pagamentos por meio de precatórios, temos o CNJ que, também, com a suas “resoluções” brecou por longos 2 anos o início do pagamento de precatórios no novo regime. E de quebra o CNJ inventou a inexistente figura jurídica do spread a ser apropriado pelos tribunais que administram os depósitos vinculados para pagamento de precatórios, percebendo uma remuneração por conta de sua atuação na função administrativa. É claro que com expedientes desse jaez não se pode imaginar a celeridade no pagamentos dos precatórios, pois quanto mais demora, maior será o montante a título de spread.

Finalmente, quando todos os envolvidos no processo (entidades devedoras, setores específicos dos órgãos judiciários, instituições bancárias, servidores especialmente destacados) já tinham dominado o know how e vinham efetuando os pagamentos com regularidade sobreveio a decisão da Corte Suprema, declarando a inconstitucionalidade da EC nº 62/09 que instituiu o calote dos precatórios. E tudo ficou parado por um bom tempo. Quando se retomou os pagamentos surgiu a discussão em torno dos índices aplicáveis para a atualização dos valores expressos nos precatórios. Passados mais de um ano após a declaração de inconstitucionalidade dos índices da poupança para atualização dos precatórios o STF ainda não definiu qual o índice aplicável, nem até quando continuará sendo aplicado o regime especial de pagamento que a Corte sepultou. Sepultou, mas a obra de Satanás continua com a cabecinha de fora comandando esse regime especial de pagamento. É cômico não fora o drama dos precatoristas que vão morrendo nas filas inacabáveis.

Familiarizados no trato com a matéria por mais de 20 anos na Prefeitura de São Paulo, onde por duas vezes formos Diretor do Departamento de Desapropriações, órgão que concentrava na época o pagamento de precatórios do Município de São Paulo, temos a absoluta convicção de que o atraso no pagamento de precatórios nunca ocorreu por falta de recurso financeiros, mas por desvio dos recursos existentes para atividades que dão visibilidade ao governante. No governo Setúbal o precatório era pago em três meses. Sempre foi e será uma questão política. Se cada órgão público responsável cumprir com as suas atribuições como vinham fazendo até o início da década de 80, tudo se normalizará. A dívida do Estado de São Paulo é uma exceção: o Estado de São Paulo não logrou obter na Justiça a desistência da desapropriação da Cia. Paulista de Estrada de Ferros, hoje, FEPASA, levada a efeito no início da década de 60, resultando no exorbitante valor da indenização a ser paga, absolutamente incompatível com o orçamento do Estado. Essa dívida acabou brecando a fila do precatório por causa da ordem cronológica que não poderia ser quebrada.

Relacionados