Trabalho semelhante ao de escravo e implicações na área tributária

Sumário: 1 Introdução. 2 O exame da Lei paulista de nº 14.946/2013 que interfere na área da administração tributária. 3 A proliferação de instrumentos normativos da espécie e a insegurança jurídica. 4 A inviabilidade de ação judicial e a busca de uma solução alternativa.

1. Introdução

Estamos vivendo um momento em que o mundo globalizado está cada vez mais atento às questões ligadas aos direitos humanos.

Além de inúmeros tratados e convenções internacionais visando maior garantia aos direitos fundamentais, inúmeros Estados soberanos vêm inserindo em seus respectivos ordenamentos jurídicos instrumentos legais pertinentes à valorização do homem, ou à preservação da dignidade humana.

É o caso do Brasil, onde tramita no Congresso Nacional nada menos que doze projetos de lei objetivando combater o trabalho semelhante ao de escravo, quer dando nova redação ao art. 149 do Código Penal que tipifica o crime de redução da pessoa a condição semelhante à de escravo, para aumentar o seu raio de alcance, quer aumentando a pena cominada a esse título.

Além disso, tramitam, também, a PEC nº 57/99 e a PEC nº 52/05 perante o Senado Federal prevendo a alteração do art. 243 da CF para permitir a expropriação de propriedade rural onde for constatada a exploração de trabalho escravo e infantil, sem pagamento da justa indenização.

Em meio a esse ambiente apaixonado pela defesa dos direitos da pessoa humana, o que, por si só, é digno de nossos maiores encômios, foi editada a Lei estadual de nº 14.946, de 28-4-2013, sancionada pelo governador do Estado de São Paulo, que introduz matéria estranha ao âmbito da administração tributária, a qual, será objeto de nossos comentários no tópico seguinte.

2. O exame da Lei paulista de nº 14.946/2013 que interfere na área da administração tributária.

Transcrevamos o texto legal para melhor exame:

“Artigo 1º –Além das penas previstas na legislação própria, será cassada a eficácia da inscrição no cadastro de contribuintes do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual intermunicipal e de comunicação (ICMS) dos estabelecimentos que comercializarem produtos em cuja fabricação tenha havido, em qualquer de suas etapas de industrialização, condutas que configurem redução de pessoa a condição análoga à de escravo.

Artigo 2º –O descumprimento do disposto no artigo 1º será apurado na forma estabelecida pela Secretaria da Fazenda, assegurado o regular procedimento administrativo ao interessado.

Artigo 3º –Esgotada a instância administrativa, o Poder Executivo divulgará, através do Diário Oficial do Estado, a relação nominal dos estabelecimentos comerciais penalizados com base no disposto nesta lei, fazendo nela constar, ainda, os respectivos números do Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ), endereços de funcionamento e nome completo dos sócios.

Artigo 4º –A cassação da eficácia da inscrição do cadastro de contribuintes do ICMS, prevista no artigo 1º, implicará aos sócios, pessoas físicas ou jurídicas, em conjunto ou separadamente, do estabelecimento penalizado:

I –o impedimento de exercerem o mesmo ramo de atividade, mesmo que em estabelecimento distinto daquele;

II –a proibição de entrarem com pedido de inscrição de nova empresa, no mesmo ramo de atividade.

§ 1º –As restrições previstas nos incisos prevalecerão pelo prazo de 10 (dez) anos, contados da data de cassação.

§ 2º –Caso o contribuinte seja optante pelo Regime Especial Unificado de Arrecadação de Tributos e Contribuições (Simples Nacional), instituído pela Lei Complementar federal nº 123, de 14 de dezembro de 2006, a cassação da eficácia da sua inscrição no cadastro de contribuintes do ICMS, prevista no artigo 1º, implicará cumulativamente:

1 – a perda do direito ao recebimento de créditos do Tesouro do Estado, instituído pelo Programa de Estímulo à Cidadania Fiscal do Estado de São Paulo, de que trata a Lei nº 12.685, de 28 de agosto de 2007;

2 – o cancelamento dos créditos já calculados ou liberados, referentes ao Programa de Estímulo à Cidadania Fiscal do Estado de São Paulo, citado no item 1, independentemente do prazo previsto no § 2º do artigo 5º da Lei nº 12.685, de 28 de agosto de 2007.”

Como se vê, sob o fluxo da emoção o legislador paulista trouxe para a seara do Direito Tributário, aonde se insere a Administração Tributária, matéria totalmente estranha e impertinente.

A fiscalização no âmbito da Secretaria da Fazenda há de se conter nos limites dos interesses pertinentes à arrecadação tributária.

Cabem a outras áreas, penal e administrativa reprimir o uso de mão de obra semelhante a de escravo. É tarefa do Ministério Público e do Ministério do Trabalho/ Secretária do Trabalho e não da Secretaria da Fazenda.

Como se verifica do art. 1º retro transcrito, o estabelecimento que comercializar produtos em cuja fabricação tenha havido, em qualquer de suas etapas de industrialização, condutas que configurem redução de pessoa a condição análoga à de escravo terá cassada a eficácia de sua inscrição estadual do ICMS.

A cassação da inscrição implicará impedimento ao exercido do mesmo ramo de atividade, bem como abertura de nova empresa pelo prazo de 10 anos (art. 4º e § 1º), impedimento esse aplicável aos sócios, pessoas jurídicas ou físicas.

Os estabelecimentos penalizados na forma dessa lei terão seus nomes divulgados pelo Diário Oficial do Estado com menção ao número do CNPJ, endereço de funcionamento e nome completo dos sócios (art. 3º).

Ou seja, a pretexto de combater o trabalho semelhante ao de escravo a lei sob comento acaba por causar ao contribuinte atingido pela pena uma situação análoga à de escravo, porque ele não terá meios de subsistência sem o exercício da atividade econômica para a qual está habilitado.

A inconstitucionalidade desse diploma legal exsurge com lapidar clareza.

Primeiramente, impõe-se uma penalidade sem prévia tipificação de conduta. Neste particular, Direito Penal e Direito Tributário estão umbilicalmente ligados. O princípio da estrita legalidade e da tipicidade cerrada é indispensável à eficácia das normas punitivas. Afinal, qual seria a conduta que configura redução de pessoa a condição análoga à de escravo? Seria aquela descrita no art. 149 do CP que prevê, inclusive, a restrição à livre locomoção do empregado ou preposto em razão de dívida contraída com o empregador? Não sabemos, o texto nada diz e nem se descobre.

Ao depois, como é possível saber se em uma das fases de industrialização do produto adquirido foi empregada conduta que configura redução de pessoa a condição análoga à de escravo? Como detectar isso em relação a produtos importados? Daí a irrelevância e inutilidade do regular procedimento administrativo assegurado ao interessado pelo art. 2º da lei sob exame.

Como se vê, falta ao diploma legal a razoabilidade que se impõe como um limite à ação do legislador. Daí a sua inconstitucionalidade, também por esse motivo.

Outrossim, a suspensão da inscrição estadual inviabiliza o exercício da atividade econômica afrontando o disposto no parágrafo único, do art. 170 da CF.

Por fim, a penalidade estatuída na Lei nº 14.946/13 configura uma sanção política, vedada nada menos por três Súmulas editadas ilustrativa e didaticamente pelo STF.

Por todas essas razões a lei sob comento padece do vício incurável da inconstitucionalidade.

3 A proliferação de instrumento normativos da espécie e a insegurança jurídica.

A lei paulista retro examinada, pelo que consegui vislumbrar na fala de várias autoridades fazendárias, tende a ser imitada por outros Estados da Federação. Isso trará um clima de total insegurança jurídica agravando a situação atual em que o empresariado já vive em um estado caótico em meio ao cipoal de instrumentos tributários que não mais obedecem ao princípio da hierarquia vertical das leis.

Apesar da manifesta inconstitucionalidade da lei da espécie, dificilmente um órgão institucional (OAB, Ministério Público, Partido Político ou Confederação da Indústria/Comércio) se disporá a ingressar como uma Ação Direta de Inconstitucionalidade em função do desgaste político que isso representará perante a opinião pública, muito sensível aos apelos em defesa da dignidade humana. Eventual ação judicial que vier a ser impetrada, certamente, custará ao seu autor a pecha de “defensor da escravidão.”

Infelizmente, aos olhos do leigo prevalecerá a teoria do fim justifica o meio.

Só que juristas não podem se apegar a essa teoria e nem deixar de denunciar a inconstitucionalidade que exsurge com lapidar clareza. Urge buscar uma solução alternativa que bloqueie o terrorismo legislativo representado pela lei paulista que acabamos de comentar e que tende a ser imitada por outros Estados da Federação.

4 A inviabilidade de ação judicial e a busca de uma solução alternativa

Como sucedâneo da inviabilização, do ponto de vista político, de uma ação judicial contra as leis que instituem, no âmbito da Administração Tributária, sanções de natureza política, a pretexto de combater o emprego de mão de obra que reduz o trabalhador a condição análoga à de escravo, é preciso adotar medidas legislativas seguras, conformadas com os textos constitucionais e de aplicação no âmbito nacional, para coibir a proliferação de normas dispares e arbitrárias na esfera de cada ente político regional.

A deixar como está corre-se o risco de o exemplo da lei paulista ser seguido pelos demais Estados e por mais de 5.500 municípios brasileiros.

Foi pensando nisso que examinei os doze projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional. Dentre eles encontrei o Projeto de Lei nº 3.842/2012 de autoria do ilustre Deputado Moreira Mendes, que me pareceu mais adequado por incorporar o conceito de redução de pessoa a condição semelhante à de escravo adotado pela Organização Internacional do Trabalho – OIT – de que faz parte o Brasil. Esse projeto legislativo está com parecer pela rejeição do Deputado Reinaldo Azambuja, Relator da Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural – CAPADR.

Conforme constatado posteriormente, o Deputado Reinaldo Azambuja verificando o equívoco cometido ficou de reexaminar o referido parecer para que possa aquele projeto legislativo de nº 3.842/2012 prosseguir em sua tramitação em forma de um substitutivo.

Transcrevamos para maior clareza o texto desse projeto de lei:

PROJETO DE LEI nº 3.842 , de 2012

(Do Sr. Moreira Mendes)

Dispõe sobre o conceito de trabalho análogo ao de escravo.

O CONGRESSO NACIONAL decreta:

Art. 1º Para fins desta Lei, a expressão “condição análoga à de escravo, trabalho forçado ou obrigatório” compreenderá todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob ameaça, coação ou violência, restringindo sua locomoção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente.

§ 1º A expressão “condição análoga à de escravo, trabalho forçado ou obrigatório” não compreenderá, para os fins desta Lei:

a) qualquer trabalho ou serviço exigido em virtude de leis do serviço militar obrigatório com referência a trabalhos de natureza puramente militar;

b) qualquer trabalho ou serviço que faça parte das obrigações cívicas comuns;

c) qualquer trabalho ou serviço exigido de uma pessoa em decorrência de decisão judicial;

d) qualquer trabalho ou serviço exigido em situações de emergência, ou seja, em caso de guerra ou de calamidade ou de ameaça de calamidade, como incêndio, inundação, fome, tremor de terra, doenças epidêmicas ou epizoóticas, invasões de animais, insetos ou de pragas vegetais, e em qualquer circunstância, em geral, que ponha em risco a vida ou o bem-estar de toda ou parte da população;

e) serviços comunitários que, por serem executados por membros da comunidade, no seu interesse direto, podem ser, por isso, considerados como obrigações cívicas comuns de seus membros, desde que esses membros ou seus representantes diretos tenham o direito de ser consultados com referência à necessidade desses serviços;

f) trabalho voluntário de qualquer natureza.

Art. 2º O artigo 149 do Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940, passa a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 149. – Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, trabalho forçado ou obrigatório, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou obrigatórios mediante ameaça, coação ou violência, quer restringindo a sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador:

Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.

§ 1o Nas mesmas penas incorre quem:

I – dolosamente cerceia o uso de qualquer meio de transporte ao trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;

II – mantém vigilância ostensiva, com comprovado fim de reter o trabalhador no local de trabalho.

…………………………………………………………………………………….”.(NR)

Art. 3º Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação.

Como se verifica, não se trata de reprodução de matéria já regulada em lei como pareceu à primeira vista ao Deputado Relator da matéria, mas de reformulação da conduta tipificada no art. 149 do Código Penal para se ater ao conceito adotado pela OIT e, ao mesmo tempo, excluir do âmbito dessa tipificação as condutas taxativamente enumeradas em seu § 1º, com o fito de trazer a segurança jurídica indispensável.

Confiante na aprovação dessa proposta legislativa ofertamos uma emenda aditiva mediante a inserção do art. 3º nos termos abaixo, sendo renumerado o atual art. 3º para o art. 4º:

“Art. 3º A eventual instituição de penalidade de natureza fiscal dependerá do que dispuser a lei complementar exigida, em qualquer hipótese, o prévio trânsito em julgado da decisão criminal condenatória do sujeito passivo da obrigação tributária pela prática de conduta tipificada no art. 149 do Código Penal.

Justificativas

A emenda proposta visa coibir a proliferação de legislações estaduais a exemplo da Lei nº 14.946, de 28-1-2013, do Estado de São Paulo que pune com a cassação da eficácia da inscrição no cadastro de contribuintes do ICMS, por dez anos, qualquer estabelecimento que comercializar produtos, cuja fabricação tenha havido, em qualquer de suas etapas de industrialização, condutas que configurem redução de pessoa a condição análoga à de escravo.

Apesar de patente impertinência e inconstitucionalidade dessa sanção fiscal, que configura autêntica sanção política condenada pelo STF, se todos os Estados vierem a instituir instrumentos normativos semelhantes à da lei paulista, como meio de expressar simpatia aos projetos de leis voltados para o campo da repressão penal, haverá enorme transtorno às atividades econômicas desenvolvidas pelo empresariado brasileiro, já bastante sobrecarregado de obrigações acessórias pertinentes à matéria tributária.

Outrossim, a exigência de lei complementar visa a aplicação uniforme das normas punitivas de caráter fiscal no âmbito nacional e tem seu fundamento no art. 146, III, da CF.”

Aprovado o projeto legislativo com a emenda sugerida ficará inviabilizada a proliferação de diplomas legislativos díspares no âmbito da legislação tributária estadual, com inserção de normas estranhas aos interesses da arrecadação tributária.

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