Quebra de sigilo fiscal previsto na Lei de repatriação

Sumario: 1 Introdução. 2 O conteúdo da Lei nº 13.254/16. 3 A anistia criminal. 4 Sigilo fiscal. 5 Ajuizamento de ADI para invalidar a norma que estatui o sigilo fiscal. 6 Conclusão

 

1- Introdução

A Lei nº 13.254/16 batizada de Lei de Repatriação, na realidade, nada tem de repatriação de bens que saíram do país sem registro do órgão oficial – Banco Central. Na maioria das vezes, esses bens e direitos migraram para o exterior como forma de proteção do patrimônio, decorrente da instabilidade econômico-financeira causada pelo advento de sucessivos planos econômicos mirabolantes, nas décadas de 80 e 90, e que ensejaram milhões de demandas judiciais até hoje não totalmente finalizadas.

 

2 – O conteúdo da Lei nº 13.254/16

          Conforme se depreende do seu art. 1º, essa Lei cuida do Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária – RERCT -, para declaração voluntária de bens e direitos de origem lícitos não declarados ou declarados com omissão ou incorreção de dados relativamente a bens remetidos ou mantidos no exterior.

Uma vez regularizados esses bens e direitos do ponto de vista cambial e tributário, mediante a apresentação da Dercat e pagos o imposto e a multa correspondentes, cessam a responsabilidade tributária e cambial do contribuinte que aderiu ao RERCT. Ficam esses contribuintes com a faculdade de promover a repatriação dos bens regularizados, porém, ninguém se dispôs a exercer essa faculdade, por absoluta falta de atrativos. O certo seria reduzir o montante do valor do imposto e da multa para aqueles que fizessem a repatriação, trazendo de volta as divisas de que necessita o País, conforme proposta que fizemos no passado[1]. Daí a infelicidade do nome com que foi batizada a Lei nº 13.254/16.

 

3 A anistia criminal

 Outrossim, a regularização tributária e cambial, desde a data do pagamento do imposto e da multa implica, ipso facto, anistia dos crimes previstos no parágrafo único, do art. 5º, quais sejam: crime contra a ordem tributária  (art. 1º e incisos I, II e V, do art. 2º da Lei nº 8.137, de 27-12-90); crime de sonegação fiscal (Lei nº 4.729, de 14-7-195); crime de sonegação de contribuição previdenciária (art. 337-A do Código Penal); crime de falsificação de documento público (art. 297 do Código Penal); crime de falsificação de documento particular (art. 298 do Código Penal); crime de falsidade ideológica (art. 299 do Código Penal); crime de uso de documento falso (art. 304 do Código Penal); crime de evasão de dividas (art. 22, caput e parágrafo único da Lei nº 7.492, de 16-06-86) e crime de lavagem de dinheiro (art. 1º da Lei nº 9.613, de 3-3-98), quando o objeto do crime for bem, direito ou valor proveniente, direta ou indiretamente, dos crimes indicados anteriormente.

 

4 Sigilo fiscal

O art. 7º, § 1º da Lei decreta o sigilo fiscal sobre direitos e bens regularizados ao dispor que “a divulgação ou a publicidade das informações presentes no RERCT implicarão efeito equivalente à quebra do sigilo fiscal sujeitando o responsável às penas previstas na Lei Complementar nº 105, de 10 de janeiro de 2001, e no art. 325 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), e, no caso de funcionário público, à pena de demissão.

O § 2º desse artigo dispõe, por sua vez:

“Sem prejuízo do disposto no § 6º, do art. 4º, é vedada à RFB, ao Conselho Monetário Nacional (CMN), ao Banco Central do Brasil e aos demais órgãos públicos intervenientes do RERCT a divulgação ou o compartilhamento das informações prestadas pelos declarantes que tiverem aderido ao RERCT com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, inclusive para fins de constituição de crédito tributário”.

Apenas aparentemente esse § 2º conflita com a disposição do inciso XXII, do art. 37 da CF, in verbis:

 “As administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, atividades essenciais ao funcionamento do Estado, exercidas por servidores de carreira específicas, terão recursos prioritários para a realização de suas atividades e atuarão de forma integrada, inclusive com o compartilhamento de cadastros e de informações fiscais, na forma da lei ou convênio”.

Como vimos a Lei nº 13.254/16, de natureza especial, veda expressamente tanto a divulgação, como o compartilhamento das informações prestadas por contribuintes que aderiram ao RERCT.

Por fim, cumpre lembrar que mesmo na hipótese de exclusão do contribuinte do RERCT em face da constatação de apresentação de declarações ou documentos falsos relativos à titularidade e à condição jurídica dos recursos (art. 9º), por si só, não poderá lastrear o procedimento investigatório contra o contribuinte, ao teor do § 2º, do art. 9º, in verbis:

“§ 2º Na hipótese de exclusão do contribuinte do RERCT, a instauração ou a continuidade de procedimentos investigatórios quanto à origem dos ativos objetos de regularização somente poderá ocorrer se houver evidências documentais não mencionadas à declaração do contribuinte”.

 

 5 Ajuizamento de ADI para invalidar a norma que estatui o sigilo fiscal

          O PSB que atuou na aprovação da Lei nº 13.254/16 ingressou com ADI[2] perante o STF para ver declarada a inconstitucionalidade do § 1º do art. 7º da Lei que impõe o sigilo fiscal, sob o fundamento de que esse sigilo impede o acesso comum das informações pelos órgãos de controle, como MPF, TCU, CADE e PF, bem como pelos auditores da Receita Federal. Sustenta, ainda, que a Lei tem sido usada para lavagem de dinheiro.

Outrossim, a outra alegação contida na ADI de que o compartilhamento de dados pela administração pública não implica quebra de sigilo fiscal não se sustenta.

De fato, o compartilhamento de dados entre órgãos da União, Estados, DF e Municípios, na forma da lei ou convênios, por si só, não implica quebra de sigilo fiscal, tanto é, que ele tem expressa previsão no art. 37, inciso XXII da Constituição Federal. E mais, esse compartilhamento depende de lei ou convênio.

O que não se pode permitir é a divulgação ou a publicidade dos dados obtidos pelo programa de RERCT, o que irá acontecer se acolhida a ação direta de inconstitucionalidade do § 1º, do art. 7º da Lei, como quer o PSB.

Para fins de mero compartilhamento de dados cadastrais entre as administrações tributárias dos três entes políticos, o § 6º do art. 4º da Lei sob análise determina que a pessoa física ou jurídica que aderir ao RERCT fica obrigada a manter em boa guarda e ordem e em sua posse, pelo prazo de cinco anos, cópia dos documentos que serviram de base para a declaração de adesão ao RERCT e a apresentá-los se e quando exigidos pela RFB.

Dessa forma, induzir o contribuinte a aderir ao RERCT por meio de normas expressas concedendo anistia cambial, tributária e penal, está nos termos da enumeração dos delitos previstos no § 1º, do art. 5º, e, ao mesmo tempo garantir o sigilo fiscal, para posteriormente pretender quebrar o sigilo fiscal pode ser visto como uma armadilha que não se coaduna com o Direito, nem com o Estado Democrático de Direito.

Entretanto, é pertinente a observação feita na ADI de que os bens a serem regularizados devem ter necessariamente origem lícita, conforme prescreve o art. 3º da Lei.

Portanto, os bens declarados e regularizados gozam da presunção de licitude, cabendo ao órgão do Ministério Público, da Receita Federal ou da Polícia Federal comprovar o contrário, inclusive, para alcançar os crimes não abrangidos pela anistia. Daí o objetivo da ADI impetrada pelo PSB que sustenta “que o interesse declaradamente arrecadatório do RERCT não pode suplantar a exigência constitucional básica de que todos devem agir de forma lícita. Mostrar-se-ia ainda mais imoral e desarrazoado que a legislação pudesse estabelecer regime mais sigiloso a contribuintes quando a própria Lei exige a origem lícita dos valores para adesão do RERCT.”

Impressiona-nos o argumento de que o postulado da moralidade e da razoabilidade é uma exigência contida na Constituição que leva a todos a agir de forma lícita. Só que, ao pretender quebrar o sigilo fiscal por esse fundamento, outros institutos jurídicos em voga no mundo inteiro, como o da delação premiada e do acordo de leniência, também, deveriam ser questionados.

 

6 Conclusão

          Ambas as teses retromencionadas revestem-se de razoável juridicidade. Caberá ao STF, como guardião da Constituição, dar a última palavra sobre essa controvertida questão levantada pelo PSB, promovendo uma interpretação sistemática dos artigos 3º, caput, 4º, § 6º, 5º, § 1º e 7º, §§ 1º e 2º, levando em conta, ainda, o disposto no inciso XXII do art. 37 da Constituição Federal. Como foi adotado o rito do art. 12 da lei de regência da matéria é de se esperar que a decisão final da Corte levará um bom par de anos.

 

SP, 12-1-18.

 

[1] Ver Lei de repatriação. Breves comentários, in Revista de Estudos Tributários, Ano XIX, nº 112, Nov/dez/2016, nº 23, p. 9-20.

[2] ADI nº 5.729-DF, Rel. Min. Roberto Barroso. Foi adotado o rito do art. 12 da Lei nº 9.868/99.

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