Há dias atrás o futuro Ministro da Justiça, Sergio Moro declarou que iria deflagrar oportunamente uma operação para investigar a repatriação de bens. Certamente estava se referindo àqueles que não aderiram ao programa de repatriação dentro do prazo legal.
Agora, surge a notícia segunda a qual a Receita Federal do Brasil exigirá comprovação da origem de recursos da repatriação, o que é muitíssimo estranho, consoante explicações que adiante faremos. Uma coisa é investigar quem não aderiu ao programa de repatriação para impor-lhe sanções tributárias, cambiais e penais; outra coisa bem diversa é remexer em uma situação acobertada pela anistia legal.
A Lei nº 13.254/16 veio à luz para propiciar a repatriação de bens que saíram do país sem registro no órgão oficial – Banco Central -, na maioria das vezes, como uma forma de proteção do patrimônio decorrente da instabilidade da política econômico-financeira, provocada pelo advento de sucessivos e intermináveis planos econômicos. Houve época, precisamente no governo Collor, em que o cidadão sofreu um confisco de 25% de seu ativo financeiro. Até hoje se discute no Judiciário o confisco dos índices das cadernetas de poupança.
Essa Lei de repatriação veio à luz com respaldo em disposições supranacionais para regularizar as situações tributárias e cambiárias por meio do RECERT, de um lado, e preconizar ameaças de sanções penais para quem não aderir ao programa, de outro lado.
O RERCT e a sigla do Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária de recursos, bens ou direitos de origem lícita, não declarados ou declarados incorretamente, remetidos e mantidos no exterior. É bom que se distinga, desde logo, a origem lícita dos recursos que não se confunde com a saída ilícita desses recursos para o exterior. O próprio nome do programa RERCT já diz tudo: Regularização Cambial e Tributária.
A lei estatuiu os requisitos para adesão do RERCT mediante pagamento de impostos e de multas. O pagamento é precedido de uma Declaração de Regularização Cambial e Tributária – Dercat.
Apresentada a Dercat os contribuintes que promoverem o pagamento do imposto e da multa antes da decisão criminal condenatória terão extinta a punibilidade dos seguintes crimes: crime contra a ordem tributária (art. 1º e incisos I, II e V do art. 2º da Lei nº 8.137, de 27-12-90); crime de sonegação fiscal (Lei nº 4.729, de 14-7-195); crime de sonegação de contribuição previdenciária (Art. 337-A do Código Penal), crime de falsificação de documento público (art. 297 do Código Penal); crime de falsificação de documento particular (art. 298 do Código Penal); crime de falsidade ideológica (art. 299 do Código Penal); crime de uso de documento falso (art. 304 do Código Penal); crime de evasão de dividas (art. 22, caput e parágrafo único da Lei nº 7.492, de 16-06-86) e crime de lavagem de dinheiro (art. 1º da Lei nº 9.613, de 3-3-98).
A anistia só não é irrestrita em relação aos crimes de falsidade ideológica e de uso de documento falso, conforme ressalvado no art. 9º que permite nessas hipóteses a exclusão do contribuinte do RERCT.
Atente-se que se a adesão ao RERCT só era possível em relação a bens de origem lícita, presume-se que aquele que aderiu ao programa buscou a regularização de bens ganhos licitamente, pois a Lei em nenhum de seus dispositivos exigiu a comprovação documental desses ganhos lícitos. Logo, não pode a Receita Federal procurar investigar a origem desses recursos, objetos de repatriação, imputando ao contribuinte que aderira ao RERCT o ônus da prova de licitude dos bens regularizados. Salta aos olhos a inversão do ônus da prova.
A pretendida ação da Receita Federal afronta o princípio da proteção da confiança do Estado, além de implicar ato de ludibriar a boa-fé do contribuinte.
Se o contribuinte não confiasse no cumprimento pelo Estado da Lei que ele editou, certamente, teria mantido na clandestinidade os bens remetidos ao exterior.
Confiando no Estado que editou a Lei, milhares de contribuintes regularizaram a sua situação tributária e cambial mediante pagamento dos impostos e multas previstas, nos termos da lei, recebendo em troca a anistia dos crimes em que eventualmente incorreram.
Se após a regularização, os contribuintes mantiveram os bens no exterior, é porque a Lei facultava essa opção, sem a obrigatoriedade de repatriação efetiva dos bens remetidos ao exterior, apesar de a Lei ser conhecida, ironicamente, como lei de repatriação.
Se o Estado, por meio de um de seus órgãos, descumpre a Lei que editou, quebrando o princípio da proteção da confiança, acaba por criar uma verdadeira situação de insegurança jurídica, absolutamente incompatível com o Estado Democrático de Direito.
O combate à sonegação fiscal, ao contrabando e ao narcotráfico é salutar, mas, desde que levada a feito nos termos e nos limites da ordem legal.
No caso sob comento, a Lei nº 13.254/16 que anistiou os crimes arrolados no § 1º do art. 5º da Lei se harmoniza perfeitamente com as disposições de Direito Internacional e não devem ser objetos de reabertura da investigação mediante inversão do ônus da prova.
SP, 17-12-18