A Constituição Federal considera como crime de responsabilidade o atentado contra a lei orçamentária, conforme art. 85, VI. Esse dispositivo constitucional foi regulamentado pela Lei nº 1.079/51, mas, à luz do art. 89, inciso VI da Constituição de 1946 que dispunha nos mesmos termos do art. 85, VI da atual Constituição.
Parece ser matéria fácil, mas, não o é. Requer conhecimentos básicos de direito orçamentário para bem compreender a legislação de regência da matéria.
O art. 10 da Lei nº 1.079/50 definiu quatro hipóteses de atentados à lei orçamentária, dentre as quais, o inciso 4: “infringir, patentemente, e de qualquer modo, dispositivo de lei orçamentária”.
Como se verifica, trata-se de uma norma em aberto, a demonstrar que a infração patente de quaisquer das normas da lei orçamentária é passível de enquadramento no crime de responsabilidade, o que não significa que eventual acusação a esse título dispensa a indicação do dispositivo infringido. Com o advento da Lei Complementar n. 101, de 4-5-2000, Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF –, a Lei n. 10.028, de 4-5-2000, incluiu mais oito hipóteses de crimes de responsabilidade (incisos 5 a 12), incorporando algumas das infrações previstas na LRF. Esses acréscimos não se harmonizam com o texto constitucional que se refere exclusivamente a atentado contra lei orçamentária, e sabemos que a LRF não é uma lei orçamentária, mais, uma lei que veio à luz para tutelar as leis orçamentárias que são aquelas três previstas no art. 165 da CF: PPA, LDO e a LOA. As infrações às normas da LRF ensejam crimes comuns previstos, atualmente, nos art. 395-A a 395-H do Código Penal, e não crime de responsabilidade que é um crime político. Mas, não é o propósito deste artigo debater a constitucionalidade ou não desses acréscimos.
Contudo, no art. 10 da Lei nº 1.079/50, que cuida do crime de responsabilidade por violação de lei orçamentária, não há referência à abertura de crédito adicional sem base legal. Só iremos encontrar a tipificação dessa conduta no inciso 2, do art. 11 da citada lei, como veremos mais adiante.
A abertura de crédito adicional suplementar e especial depende de prévia autorização legislativa, por força do princípio da legalidade das despesas previsto no art. 167, inciso V da CF, in verbis:
Art. 167. São vedados:
…
V – a abertura de crédito suplementar ou especial sem prévia autorização legislativa e sem indicação dos recursos correspondentes.
A abertura de crédito adicional extraordinária é feita por medida provisória, porém, exclusivamente nas hipóteses de despesas urgentes e imprevisíveis (guerra externa, comoção intestina e calamidade pública), conforme prescrição do § 3º, do art. 167 da CF, e não nos casos de despesas imprevistas na LOA, como vem fazendo o governo atual com frequência quase semanal, praticamente desmontando o orçamento anual aprovado pelo Parlamento Nacional. Imprevisibilidade e imprevisão são coisas completamente distintas, no conteúdo e nos efeitos.
A infração do princípio da legalidade das despesas não está capitulada no art. 10 da Lei nº 1.079/50 que seria o local apropriado, mas, ela está prevista no inciso 2 de seu art. 11 que cuida de crimes contra a guarda legal e emprego dos dinheiros públicos, nos seguintes termos:
- abrir crédito sem fundamento em lei ou sem as formalidades legais.
Pergunta-se, que lei é essa? Só pode ser a Lei Orçamentária Anual em curso, ou seja, a LOA em cuja execução ocorreu a abertura de crédito sem respaldo legal.
Sem fundamento em lei, como diz o texto, não significa a indispensabilidade de lei formal autorizando a abertura de crédito em cada caso concreto. A LOA pode delegar ao Executivo essa faculdade de abrir crédito adicional suplementar, observados determinados requisitos, como é da tradição de nosso direito orçamentário.
É preciso, pois, examinar a LOA vigente à época da abertura do crédito suplementar para verificar se havia ou não a necessidade de prévia autorização legislativa. E aqui é importante não confundir abertura de crédito suplementar, com o remanejamento de verbas consignadas nas dotações em que a LOA, tradicionalmente, vem permitindo a transferência e transposição de verbas de uma para outra dotação, sem prévia autorização legislativa até o limite de 30% de cada dotação.
A LOA vem consignando, também, nos últimos anos a delegação para o Executivo abrir créditos suplementares, desde que compatíveis com a obtenção da meta de superávit primário estabelecida para o exercício em curso e observada, dentre outras coisas, a utilização de recursos legalmente vinculados exclusivamente para atender o objeto da vinculação. É o que consta, por exemplo, do art. 4º da Lei nº 12.952, de 20 de janeiro de 2014 que aprovou a LOA do exercício de 2014, quando se deu a abertura de crédito suplementar por Decreto que está sendo objeto de apuração no processo de impeachment em curso perante a Câmara dos Deputados.
O art. 4º dessa LOA permitiu que o Executivo abrisse crédito suplementar em cada subtítulo até 20% do valor respectivo mediante a utilização dos seguintes recursos: a anulação parcial de dotações; a reserva de contingenciamento; o excesso de arrecadação; e o superávit financeiro apurado no balanço patrimonial do exercício anterior.
Logo, para saber se a abertura de crédito suplementar obedeceu ou não o figurino legal é preciso examinar o disposto na LDO de 2013 que fixou as metas do superávit primário para o exercício de 2014. E para saber quanto à compatibilidade do crédito aberto com o superávit primário aí previsto é preciso analisar o relatório bimestral da execução orçamentária (art. 52 da LRF), bem como, o relatório quadrimestral de gestão fiscal (art. 54 da LRF) do exercício de 2014, para verificar se a abertura do crédito suplementar comprometia ou não a obtenção do superávit primário previsto naquela LDO.
Se o exame desses relatórios apontar a necessidade de adotar as providências do art. 9º da LRF, isto é, promover limitações de empenhos para possibilitar a obtenção dos superávits primário e nominal, por óbvio, não era o caso de agravar a situação financeira com a abertura de crédito adicional suplementar que está sendo questionada na Câmara dos Deputados. Uma vez constatado que era o caso de contenção de despesas por via de limitação de empenhos, e não de abertura de crédito suplementar, o crime de responsabilidade restará cabalmente configurado por violação patente do art. 4º da LOA de 2014 c.c. arts. 10, 4 e 11, 2 da Lei nº 1.079/50.
Como se verifica, não basta alegar abertura ilegal de crédito, mas apontar o dispositivo da lei orçamentária anual patentemente infringido, como determina o art. 10, inciso 4 da Lei nº 1.079/50 e comprovar essa infringência mediante o exame da LOA e da LDO que fixou os superávits primário e nominal, analisando o relatório da execução orçamentária bimestral e o relatório quadrimestral de gestão fiscal, a fim de que fique comprovado que o crédito foi aberto fora dos limites da delegação contida no art. 4º da LOA de 2014.
Todos nós estamos lembrados da ruidosa e escandalosa aprovação da alteração das metas do superávit primário do exercício de 2014 no apagar das luzes do ano. Agora, sabemos que foi uma tentativa de encobrir o crime de responsabilidade por abertura ilegal de créditos adicionais suplementares ao longo do exercício de 2014, quando, ao contrário, deveria o governo ter feito limitações de empenhos segundo as determinações da LRF.
Ocorre que, cometida a infração patente à norma da LOA, a ulterior alteração do limite do superávit primário para se ajustar à situação passada em que houve a abertura ilegal do crédito, não descriminaliza a conduta, pelo contrário, agrava a infração, pois, isso equivale cometer o crime e em seguida fazer desaparecer o corpo de delito.
São essas as considerações, em rápidas pinceladas, que poderão contribuir para o perfeito esclarecimento da questão debatida na atualidade.
Jurista com 31 obras publicada. Autor da obra Direito financeiro e tributário, 25ª edição. São Paulo: Atlas, 2016.