Os limites da coisa julgada em matéria tributária foram discutidos pelo STF em dois Recursos Extraordinários: RE nº 949297 (Tema 881 da RG, Rel. Min. Edson Fachin) e o RE nº 955227 (Tema 885 da RG, Rel. Min. Roberto Barroso).
A controvérsia envolve a cobrança da CSLL.
Nos idos de 1990 alguns contribuintes obtiveram decisão judicial favorável transitado em julgado para se verem livres do pagamento dessa contribuição social prevista na Lei nº 7.698/88. Na ocasião foi considerada inconstitucional a aludida contribuição social.
Só que em 2007, no julgamento da ADI nº 15, o STF reputou constitucional a cobrança daquela CSLL, declarando a inconstitucionalidade apenas dos artigos 8º e 9º da Lei nº 7.698/88, mantendo-se tudo o mais, vale dizer, resguardando a cobrança da CSLL. Nada se adiantou acerca da reversão da coisa julgada.
Como se sabe, a decretação de inconstitucionalidade ou de constitucionalidade tem natureza meramente declaratória, e como tal, surte efeito ex tunc. Não é a decisão judicial que torna inconstitucional ou constitucional a norma questionada. A decisão judicial apenas declara que a norma era inconstitucional ou constitucional desde o nascedouro.
Daí porque em caso de pronunciamento de inconstitucionalidade, a norma atingida seria uma norma nula, írrita, sem possibilidade de produzir efeito jurídico algum. Daí, também, a conhecida repetição de indébito tributário.
No caso de declaração de constitucionalidade, por sua vez, significa que a norma em questão era constitucional e válida, irradiando seus efeitos desde o início, isto é, desde que veio à luz.
No caso versado, a decisão proferida na ADI nº 15 em 2007, ao pronunciar apenas a inconstitucionalidade dos arts. 8º e 9º da Lei nº 7.698/88 que não interferem no fato gerador do tributo, declarou que aquela Lei de nº 7.689/88 que instituiu a CSLL era constitucional e válida, apta a gerar efeitos jurídicos, desde o seu advento.
Assim, como a declaração de inconstitucionalidade enseja a repetição de indébito, a declaração de constitucionalidade superveniente enseja, em tese, a cobrança retroativa do tributo, respeitada a coisa julgada.
A situação julgada pelo STF nos RREE nºs 949297 e 955227 envolveu questão ligada ao marco temporal da coisa julgada nas relações de tratos continuados no dizer do Ministro Roberto Barroso, Relator do RE nº 955223, para quem a decisão proferida na ADI nº 15 deveria surtir efeitos desde 2007, descabendo a cogitação de modulação ou relativização da coisa julgada que seria coisa diversa.
Em outras palavras, a CSLL que deixou de ser paga até o advento da decisão de 2007 fica protegida pela coisa julgada. Apenas a CSLL devida a partir de então é que deve ser honrada, respeitando-se os períodos atingidos pela decadência.
Distinguiu-se o tributo de trato continuado, como a CSLL do tributo a ser pago uma única vez, como o ITBI devido na compra e venda de imóvel, por exemplo.
Os dois Ministros Relatores concordaram que a eficácia da sentença definitiva cessa quando o STF julga a matéria em sentido contrário.
Entretanto, divergem quanto ao marco temporal.
Para o Min. Edson Fachin as decisões nos dois recursos deveriam surtir efeitos a partir da publicação dos julgamentos, ao passo que para o Ministro Roberto Barroso os efeitos da nova decisão em contrário produziriam efeitos a partir de 2007, não se cogitando de modulação.
A Ministra Rosa Weber, por sua vez, sustentou que a modulação traria “uma maior insegurança jurídica, especialmente àqueles envolvidos que após a decisão do STF em sentido contrário a coisa julgada que lhes houvera sido favorável recolheram devidamente o tributo”.
Ao final, nos dois recursos extraordinários o STF, por maioria de votos, deixou de modular os efeitos e fixou por unanimidade as seguintes teses:
“1. As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores a instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo.
2. Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitada a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo”.
Isso equivale a dizer que a Corte Maior conferiu caráter de lei à decisão que declarou a constitucionalidade do tributo questionado aplicando-se, por essa razão, os princípios tributários pertinentes.
Houve ou não a retroação no caso julgado nos dois recursos extraordinários?
Acredito que não haverá unanimidade, mesmo porque as ementas dos julgados não são bem claras.
Afinal, os princípios tributários mencionados – irretroatividade, anterioridade e noventena – aplicam-se em relação a 2007, quando a Corte declarou a constitucionalidade da CSLL, ou, em relação à data do julgamento dos dois recursos extraordinários?
Tudo indica que a primeira hipótese é a acertada. A segunda alternativa remeteria os lançamentos da CSLL para 1º de abril de 2024, isto é, mais do que no caso de eventual modulação de efeitos.
Sendo assim, haverá cobrança retroativa da CSLL e, portanto, a flexibilização da coisa julgada em nome da suposta igualdade material, para preservar o princípio da igualdade de concorrência entre as empresas.
Como dissemos reiteradas vezes, o que a Constituição resguarda como direito fundamental é a igualdade formal. A desigualdade material existe no mundo inteiro e não será a lei ou a decisão judicial que irá acabar com ela.
Outrossim, a coisa julgada, a meu ver, abrange as relações de trato continuado, não sendo possível exigir-se a impugnação mês a mês de um determinado tributo.
É preciso interpretar com muita cautela o disposto na Súmula 239 do STF:
“Decisão que declara indevida a cobrança do imposto em determinado exercício não faz coisa julgada, em relação aos posteriores”.
Ora, se não houver alteração legislativa, nem modificação da situação fática não teria sentido algum exigir a renovação periódica da impugnação do tributo cobrado mensal ou anualmente.
No caso, a declaração de inconstitucionalidade da CSLL operou a coisa julgada abrangendo todos os períodos de sua exigência, enquanto mantida a mesma legislação.
Decisão em sentido contrário, proferida em 2007 na ADI nº 15, não pode ser aplicada retroativamente ao contribuinte detentor da coisa julgada.
Na pior das hipóteses deve ser aplicada a partir de publicação dos dois julgados que bem esclareceram os efeitos das decisões proferidas nas ações de controle concentrado e no recurso extraordinário sob a égide de repercussão geral, de um lado, e a decisão proferida no recurso extraordinário sob a sistemática anterior à introdução da repercussão geral, de outro lado. O que não faz menor sentido é afirmar, depois de decorri9dos 16 anos que a decisão proferida nos idos de 2007 deveria ter sido cumprida desde então, apanhando de surpresa os que confiaram, na coisa julgada.
O artigo anteriormente escrito, quando ainda não tínhamos conhecimento das ementas dos julgados, não está distante do entendimento aqui esposado que, certamente, não contará com a manifestação unânime da doutrina especializada.
Os que entendem que os dois julgados não admitem a retroação filiam-se à corrente que deixam de fora da coisa julgada as contribuições que se venceram após o advento da decisão proferida na ADI nº 15 em 2007, que reputou constitucional a cobrança da CSLL.
Respeitamos esse posicionamento, mas com ele não concordamos, pois o pedido de declaração de inconstitucionalidade não se referiu à CSLL dos meses x, y ou z, mas, da disposição legal que a instituiu, descabendo a cogitação de relações de trato continuado.
Assim, os julgados sob análise incursionaram sobre matéria acobertada pela coisa julgada determinando a sua retroação em grau médio.
E aqui é oportuno recordar que a retroatividade comporta três diferentes graus.
Haveria retroatividade em grau máximo se fosse exigido o pagamento da contribuição desde a obtenção da decisão desonerativa até o julgamento da constitucionalidade da CSLL em 2007, anulando-se por completo os efeitos da coisa julgada. Por isso essa espécie de retroação é denominada restituitória. Este parece não ser o caso decidido pelo STF.
Haverá retroação em grau médio se a contribuição social for exigida a partir de 2007, quando a Corte declarou constitucional a cobrança da CSLL. Este parece ser o caso decidido nos dois recursos extraordinários referidos.
Por fim, haverá retroação em grau mínimo se for exigida a cobrança da CSLL a partir da data da publicação do julgamento dos dois recursos.
N’uma e n´outra hipótese observar-se-ia os princípios de irretroatividade, anterioridade e da nonagesimidade, observando-se, ainda, obviamente, o instituto da decadência tributária no caso da retroatividade em grau médio.
Concluindo, ainda que houvesse a modulação de efeitos, que não aconteceu, haveria violação da coisa julgada pela retroação das decisões em grau mínimo.
É que a coisa julgada foi formada pelo exame do aspecto material de fato gerador da CSLL perenizando os seus efeitos.
Somente uma alteração legislativa do fato gerador da contribuição social em tela teria o condão de tornar ineficaz a coisa julgada, uma garantia fundamental protegida em nível de cláusula pétrea.
Mas, o que aconteceu no caso não foi a alteração legislativa, porém, a alteração de entendimento da Corte Suprema, pelo que aquela coisa julgada que se formou com o primeiro entendimento da Corte há de ser respeitada em nome dos princípios da boa-fé objetiva, da proteção da confiança e da segurança jurídica.
Não pode o STF desonerar o contribuinte de pagar a CSLL por entender inconstitucional sua cobrança e, ao depois, em nome da suposta igualdade material entre as empresas autorizar a cobrança retroativa com incidência de juros e correção monetária. Isso causa ao contribuinte atingido a sensação de que caiu em uma cilada armada pelo Poder Judiciário.
SP, 13-2-2023.
* Texto publicado no Portal Migalhas, no 5.543 de 15-2-2023.
Por Kiyoshi Harada