A recente Lei Complementar nº 192/2022 veio prescrever que o Estados, por meio do CONFAZ, fixassem a alíquota uniforme do ICMS incidente sobre os combustíveis.
Pois bem, os Estados celebraram o Convênio ICMS nº 16/2022 pelo qual restaram fixadas as alíquotas uniformes ad rem para a gasolina e para o óleo diesel.
Para a gasolina ficou estabelecido o valor de R$0,9986 por litro, ao passo que, para o óleo diesel S10, o mais utilizado, a alíquota ficou em R$ 1,0060 por litro.
Na prática, essa sistemática nova não trouxe benefícios maiores aos consumidores, se confrontada com os preços vigentes em novembro de 2021, quando os preços dos combustíveis foram congelados.
Mas, a grande questão jurídica é a de saber se a lei complementar pode interferir na autonomia dos Estados de fixar livremente as alíquotas do ICMS, respeitada a seletividade de alíquota prevista no art. 155, § 2º, inciso III da Constituição (seletividade em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços).
A Constituição de 1988, em sua redação original, não comete à lei complementar a competência para a fixação de alíquotas de impostos nominados na Constituição.
As atribuições da Lei Complementar estão exaustivamente enumeradas no art. 146 da CF:
“Art. 146. Cabe à lei complementar:
I – dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;
II – regular as limitações constitucionais ao poder de tributar;
III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:
a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;
b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários;
c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas.
d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239”. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)”
Resulta desse art. 146 que o aspecto quantitativo do imposto privativo ficou a critério de cada entidade política tributante.
Acontece que o inciso IV, do § 4º, do art. 155 da CF na redação conferida pela EC nº 33/2001 conferiu essa missão a lei complementar nos seguintes termos:
“§ 4º Na hipótese do inciso XII, h[1], observar-se-á o seguinte:
[…]
IV – as alíquotas do imposto serão definidas mediante deliberação dos Estados e Distrito Federal, nos termos do § 2º, XII, g, observando-se o seguinte:
a) serão uniformes em todo o território nacional, podendo ser diferenciadas por produto;
b) poderão ser específicas, por unidade de medida adotada, ou ad valorem, incidindo sobre o valor da operação ou sobre o preço que o produto ou seu similar alcançaria em uma venda em condições de livre concorrência;
c) poderão ser reduzidas e restabelecidas, não se lhes aplicando o disposto no art. 150, III, b”. (princípio da anterioridade)
Portanto, a Lei Complementar nº 192/2022, ao determinar a implementação da alíquota uniforme ad REM, agiu de conformidade com o § 4º, do art. 155 da CF introduzido pela EC nº 33/2001.
Tudo se resume em saber se a questão da fixação de alíquotas está inserida no campo das cláusulas pétreas com o fim de preservar a autonomia dos Estados prevista no art. 18 da Constituição.
É fora de dúvida que o princípio federativo está sob a proteção de cláusula pétrea (art. 60, § 4º, I da CF).
Na live do dia 31 de março de 2022 em que o IBEDAFT debateu a Lei Complementar nº 192/2022, com a minha participação, do Dr. Marcelo Campos, do Dr. Eduardo Jardim e do Professor Marcos Cintra, não houve unanimidade sobre essa questão da alíquota uniforme.
Embora não haja uma vinculação direta da alíquota uniforme para todos os Estados da Federação não há dúvida que, em tese, a adoção de alíquota uniforme ad rem poderá implicar diminuição de receitas para os Estados.
E segundo a jurisprudência do STF qualquer subtração de receitas dos Estados equivale à medida tendente à abolição da forma federativa do Estado. É o que restou decidido na ADI nº 936, Rel. Min. Sydney Sanches, que declarou a inconstitucionalidade da tributação das aplicações financeiras dos Estados pelo então IPMF.
Essa é uma questão que fatalmente irá parar no Supremo Tribunal Federal.
Na verdade, na EC nº 33/2001 há outros pontos questionáveis: a alínea a que permite a diferenciação de alíquotas nos produtos, partindo do pressuposto de que há combustível mais essencial do que outro combustível e da alínea c que excepciona a aplicação do princípio da anterioridade, seguramente um direito fundamental protegido por cláusula pétrea, insusceptível de alteração pelo Poder Reformador.
SP, 12-4-2022.
* Texto publicado no Portal Migalhas, edição nº 5.331 de 14-4-2022.
Por Kiyoshi Harada
[1] Definição por lei complementar dos combustíveis e lubrificantes sobre os quais o imposto incidirá uma única vez.