Dispunha o § 34, do art. 141 da Constituição Federal de 1946:
“Nenhum tributo será exigido ou aumentado sem que a lei estabeleça; nenhum será cobrado em cada exercício sem prévia autorização orçamentária, ressalvada, porém, a tarifa aduaneira e o imposto lançado por motivo de guerra”.
O preceito constitucional supratranscrito ficou conhecido na doutrina como princípio da anualidade tributária.
A Constituição de 1988 recepcionou apenas em parte aquele preceito do § 34, do art. 141 da CF/1946, conforme prescrito no art. 150:
“Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
……
III – cobrar tributos:
a) em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado;
b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou; (Vide Emenda Constitucional nº 3, de 1993)
c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)
….
§ 1º A vedação do inciso III, b, não se aplica aos tributos previstos nos arts. 148, I, 153, I, II, IV e V; e 154, II; e a vedação do inciso III, c, não se aplica aos tributos previstos nos arts. 148, I, 153, I, II, III e V; e 154, II, nem à fixação da base de cálculo dos impostos previstos nos arts. 155, III, e 156, I. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)”.
O disposto na letra “a” logo foi batizado pela doutrina como sendo o princípio da irretroatividade, que tem origem na lição de Cesare Beccaria, representante máximo do iluminismo penal (1.738 -1.794)
Além da defeituosa a redação do texto sob exame, pois, descabe falar em fatos geradores ocorridos senão após a vigência da lei instituidora do tributo, essa norma é dispensável, porque o princípio da legalidade tributária, por si só, impede a cobrança de tributos antes da vigência da lei que os instituiu, isto é, a lei tributária não retroage, salvo quando for mais benéfica ao contribuinte.
Na verdade, esse princípio da letra “a” é o da anterioridade que decorre do princípio da legalidade: Nullum tributum sine lege. Exige-se a definição prévia do fato gerador do tributo, por lei em sentido estrito, vale dizer, não se pode exigir o tributo antes dela, pois estaríamos diante de um acontecimento atípico.
Enfim, é mera questão terminológica: tanto faz referir-se ao princípio da irretroatividade, como quer a maioria dos doutrinadores, como referir-se ao princípio da prévia definição do fato gerador, que outra coisa não é senão o princípio da estrita legalidade.
O disposto na letra “b”, por sua vez, a doutrina batizou de princípio da anterioridade que teria substituído o antigo princípio da anualidade tributária.
Mas, será que essa afirmativa é imune a críticas?
Pelo que se depreende do texto sob comento não se trata de mera anterioridade da lei criadora do tributo em relação à sua cobrança, pois, se assim fosse, um aumento do IR promovido por uma lei sancionada em 30 de setembro de 2021 poderia ser exigido a partir do mês de outubro de 2021.
Trata-se de uma anterioridade qualificada, isto é, a lei instituidora ou majoratória deve estar em vigor antes do exercício da cobrança. A sua cobrança continua, pois, vinculada a cada exercício financeiro, que é anual desde a Carta Outorgada de 1824, coincidindo esse exercício financeiro com o ano-calendário, isto é, começa no dia 1º de janeiro de cada ano terminando no dia 31 de dezembro do mesmo ano. Difere do ano civil que é o decurso do prazo de 365 dias contínuos.
Daí porque não está errado sustentar a subsistência do princípio da anualidade tributária.
O que estava no § 34, do art. 141 da Constituição de 1946, conhecido como princípio da anualidade tributária, era, na verdade, o princípio da prévia inclusão orçamentária, no sentido de que sem a estimativa de receita do tributo na Lei Orçamentária Anual não se poderia efetuar a sua cobrança.
No dizer de Roque Antonio Carrazza “o princípio da anualidade alberga um plus, em relação ao da anterioridade[1].
Subsiste, pois, o princípio da anualidade tributária, assim como, indiscutível o princípio da anualidade orçamentária que vigora até os dias atuais, sendo irrelevante a infração desse princípio pelo legislador que aprova a LOA com atraso, no curso do exercício em execução.
Esse princípio da anualidade tributária funciona como escudo de defesa do contribuinte. No dia 31 de dezembro de cada exercício o poder público esgota o seu poder de tributar, possibilitando o contribuinte planejar a sua vida financeira a partir do dia 1º de janeiro de cada ano, evitando-se a surpresa tributária no curso da execução orçamentária, ressalvadas as hipóteses previstas na Constituição.
Se até o dia 31 de dezembro de cada ano o poder tributante não houver instituído a majoração do tributo, não mais poderá fazer senão para vigorar o aumento decretado no exercício subsequente ao seguinte.
Contudo, é quase unânime a doutrina no sentido de que o princípio da anualidade tributária foi substituído pelo princípio da anterioridade demonstrando o habitual privilégio pela novidade.
Todavia, pondera Roque Antonio Carrazza que “nada obsta, porém a que os Estados- membros, no exercício de seus poderes constituintes decorrentes, inscrevam, em suas Constituições, a exigência da anualidade para os tributos locais….
O mesmo podemos dizer dos Municípios e do Distrito Federal. Estas pessoas políticas, em suas Leis Orgânicas, poderão criar, para seus contribuintes, o princípio da anualidade, de maior consistência, como vimos, que o da anterioridade”[2] ..
O conhecido tributarista flexibilizou, dessa forma, o princípio inscrito no art. 150, III, b da CF/1988 que dirige a vedação a três entidades políticas.
Esse fato, smj, fortalece o nosso posicionamento acerca da matéria aqui versada.
SP, 13-9-2021.
Por Kiyoshi Harada
[1] Curso de Direito Constitucional Tributário, 32ª ed. São Paulo: Malheiros, 2019, p.178.
[2]Ob. Cit, p. 179.