O crime de apropriação indébita de contribuições previdenciárias encontra-se incorporado no capítulo V do Código Penal mediante inserção do art. 168-A nos seguintes termos:
“Art. 168-A. Deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem deixar de:
I – recolher, no prazo legal, contribuição ou outra importância destinada à previdência social que tenha sido descontada de pagamento efetuado a segurados, a terceiros ou arrecadada ao público;
II – recolher contribuições devidas à previdência social que tenham integrado despesas contábeis ou custos relativos à venda de produtos ou à prestação de serviços;
III – pagar benefício devido a segurado, quando as respectivas cotas ou valores já tiverem sido reembolsados à empresa pela previdência social.
§ 2o É extinta a punibilidade se o agente, espontaneamente, declara, confessa e efetua o pagamento das contribuições, importâncias ou valores e presta as informações devidas à previdência social, na forma definida em lei ou regulamento, antes do início da ação fiscal.
§ 3o É facultado ao juiz deixar de aplicar a pena ou aplicar somente a de multa se o agente for primário e de bons antecedentes, desde que:
I – tenha promovido, após o início da ação fiscal e antes de oferecida a denúncia, o pagamento da contribuição social previdenciária, inclusive acessórios; ou
II – o valor das contribuições devidas, inclusive acessórios, seja igual ou inferior àquele estabelecido pela previdência social, administrativamente, como sendo o mínimo para o ajuizamento de suas execuções fiscais.”
A pena cominada é de 2 (dois) a 5 (cinco) anos de reclusão.
Como se sabe, o crime de apropriação indébita definido no art. 168 do CP consiste em “apropriar-se de coisa alheia móvel, de que tem a posse ou a detenção.”
Neste caso, a pena cominada é de 1 (um) a 4 (quatro) anos de reclusão, portanto, mais branda que aquela cominada ao crime de natureza tributária. Entretanto, no crime de apropriação indébita previdenciária é extinta a punibilidade se o agente, espontaneamente, declara, confessa e efetua o pagamento das contribuições antes do início da ação fiscal, porque o bem jurídico tutelado pela norma penal é o erário. E mais, o § 3º faculta ao juiz deixar de aplicar a pena ou aplicar apenas a pena de multa quando o agente for primário e ter bons antecedentes, observados os requisitos aí previstos.
Consoante indiscrepante pronunciamento da doutrina e da jurisprudência, para a caracterização do crime de apropriação indébita é indispensável o dolo específico consistente na vontade livre e consciente de ter a coisa para si.
Entretanto, com relação ao crime de apropriação indébita de contribuições sociais previsto no art. 168-A do CP a jurisprudência orientou-se no sentido de que se trata de um crime omissivo puro que não exige necessariamente um resultado naturalístico e nem o animus rem sibi habendi. Basta tão só o dolo genérico para a consumação do crime. Criticável é o posicionamento da jurisprudência dos tribunais nesse sentido. Contudo, conforme assinalamos, a jurisprudência do STJ tem admitido em alguns casos a dificuldade financeira a impedir o repasse do tributo à Previdência Social como causa supra legal de exclusão da criminalidade e inexigibilidade de conduta diversa.[1]
Outrossim, incorreto ao nosso ver o enquadramento, no caput do art. 168-A do CP, da conduta do agente que simplesmente deixa de promover o recolhimento do tributo retido na fonte. De fato, essa norma cuida de não repasse à Previdência Social de contribuições “recolhidas dos contribuintes.”
Ora, no ato de pagamento da folha não há propriamente o recolhimento prévio das contribuições devidas pelos empregados. O não repasse das contribuições retidas na fonte configura conduta tipificada no inciso I, do seu § 1º.
Às vezes, uma determinada empresa pode não ter disponibilidade de caixa para efetuar o pagamento total da folha do mês pelo seu valor bruto, mas apenas pelo seu valor líquido, ou seja, valor depois de descontados os adiantamentos e todos os tributos a serem retidos na fonte. Não cabe, na hipótese, falar-se em “contribuições recolhidas dos contribuintes,” de sorte a descaracterizar o tipo descrito no art. 168-A. No caso aventado, a importância dita não repassada aos cofres do INSS nunca existiu.
Mas, não é só. Se eliminado o dolo específico do agente ativo, ou seja, a vontade livre e consciente de considerar como seu o dinheiro pertencente à Seguridade Social, a norma do art. 168-A do CP deixa de configurar crime de apropriação indébita para se constituir em um novo crime, um crime consistente no não pagamento de dívida.
E como tal, a norma é inconstitucional por atentar contra o art. 7º do Pacto de San José da Costa Rica incorporado ao nosso ordenamento jurídicos pelo Decreto n. 678, de 6 de novembro de 1992, in verbis:
“Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar.”
A norma convencional guarda harmonia com o disposto no inciso LXVII, do art. 5º da CF que proíbe a prisão por dívida ressalvada dessa proibição a hipótese de inadimplemento da obrigação alimentar e violação do encargo de fiel depositário.
Assinale-se, por fim, que a Corte Suprema, após o advento da EC nº 45/04 que acrescentou o § 3º ao art. 5º da CF, alterou seu entendimento acerca da posição hierárquica das normas convencionais, conferindo-lhes a natureza jurídica supra legal, pairando acima da legislação ordinária geral, porém, negando-lhes o status de norma constitucional sustentada por parcela ponderável da doutrina qualificada, com base no § 2º do art. 5º da Carta Política (RE n 466.341, Rel. Min. Cezar Peluso, DJe 5-6-2009).
[1]Crimes contra a ordem tributária, Kiyoshi Harada e Leonardo Musumecci Filho. São Paulo: Atlas, 2012, p. 184.