Kiyoshi Harada
É muito preocupante a substituição da laboriosa e cansativa cobrança judicial pela cômoda e simples cobrança por meio de sanção política, em sua modalidade mais grave e cruel de que se tem notícia na história do Brasil, para suprir a incompetência e ineficiência dos agentes do fisco que ofendem os princípios da legalidade, da eficiência e da moralidade.
Advogados e procuradores participantes da audiência pública, além da Sub Procuradora Geral da República que compôs a mesa
Ante as decisões não unânimes do STJ criminalizando a conduta do contribuinte que declara o ICMS por ele apurado e deixa de recolhê-lo no prazo legal, enquadrando-o na tipificação do inciso II, do art. 2º da Lei nº 8.137/90, impropriamente conhecida como apropriação indébita de tributo, o Ministro Roberto Barroso, Relator do RHC nº 163.334/SC, convocou para uma audiência pública os advogados de entidades que ingressaram no feito como amicus curiae, com a presença, também, da Sub Procuradora Geral da República.
A prisão pretendida pela Fazenda tem fundamento no dispositivo abaixo indicado da Lei nº 8.137/90 que define os crimes contra a ordem tributária:
“Art. 2º Constitui crime da mesma natureza:
[…]
II – deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”.
Verifica-se com lapidar clareza que a caracterização do crime exige duas condutas do sujeito ativo: (a) uma conduta comissiva do contribuinte consistente em descontar ou cobrar de outro contribuinte o valor do tributo ou contribuição; (b) outra conduta omissiva consistente em não recolher aos cofres públicos o valor do tributo descontado ou cobrado. Exige-se o dolo genérico, isto é, a vontade livre e consciente de praticar a conduta incriminada, mas não se exige o resultado material, bastando a simples omissão para incidir na norma penal tipificada.
No início da sessão, o Ministro Roberto Barros ressaltou que as duas correntes antagônicas formadas no Colendo Superior Tribunal de Justiça são respeitáveis e razoáveis do ponto de vista jurídico. Daí a sua iniciativa de debater o assunto com os representantes das entidades referidas para uma tomada de posição final a respeito dessa controvérsia.
A oitiva dos presentes começou com os representantes das Fazendas Estaduais terminando com a fala da ilustre Sub Procuradora Geral da República. Ouvi atentamente a todas as exposições feitas e fiquei bastante preocupado com o rumo que tomaram os debates sucessivos, todos eles fundados em elementos extrajurídicos, buscando criminalizar uma conduta completamente atípica, com fundamento na teoria da repercussão econômica do imposto indireto em que o consumidor final arca com o encargo financeiro do tributo. E assim, fazendo tábula rasa ao disposto na lei penal, o contribuinte devedor confesso teria cobrado o imposto do consumidor final, apropriando-se indevidamente do imposto que deixou de recolher. Segundo tal “teoria” o contribuinte esperto estaria substituindo a sonegação fiscal, que acarreta prisão, pela inadimplência de tributo declarado e informado ao fisco que só lhe traz benefícios, quebrando o princípio da livre concorrência em relação aos demais contribuintes adimplentes. E passaram citar impressionantes estatísticas de estoques de dívida ativa representada por tributos declarados e não pagos. Dourando de pílula essa apaixonante argumentação que nada tem de jurídico, alguns dos expositores lançaram um outro apelo chamativo: Onde todos pagam, todos pagam menos, onde poucos pagam, todos pagam mais! Ninguém se preocupou em lembrar dos R$240 bilhões anuais surrupiados dos cofres públicos por conta de infindáveis incentivos fiscais, alguns deles espúrios e de origem criminosa que estão sendo apurados no âmbito da Operação Lava Jato; isso sim, que quebra o princípio da concorrência, pois continuam crescendo no mercado às custas da sociedade pagante, enquanto o devedor insolvente se não cerrar as portas de seu estabelecimento estará sobrevivendo à margem da miséria; ninguém se preocupou em apontar setores da economia envolvidos na inadimplência; ninguém tocou na crise econômica que deixou 13 milhões de desempregados. E também, mantiveram silêncio sepulcral quanto à causa óbvia do crescimento do estoque da dívida pública em que o juiz leva 14 anos para terminar um processo: falta de atuação eficiente dos procuradores fiscais que misturam nas execuções fiscais os devedores solventes de quantias significativas que distribuem dividendos semestrais, com pequenos devedores em lugar incerto e não sabido, transformando o Judiciário em órgão de investigação do paradeiro do executado e de seus bens. Some-se a tudo isso a costumeira preguiça mental que se apossou da classe dos servidores públicos em geral que os impede de buscar meios alternativos e inteligentes para superar os problemas que surgem no dia a dia e que escapam da previsão legal. Não é preciso que a lei diga que o exequente deve fazer a seleção qualitativa do crédito tributário a ser cobrado judicialmente! Se existe mais de um trilhão de reais para cobrar, parece óbvio que se deve dar preferência à cobrança do crédito de maior valor e de empresa solvente, e não ficar perdendo tempo em localizar o dono de um botequim que cerrou as portas e desapareceu do local de seu estabelecimento cadastrado por não conseguir suportar o peso da tributação.
Não se pode punir o contribuinte em dificuldade financeira por conta da absurda carga tributária, agravada com imposição de autos de infração manifestamente ilegais e abusivos, como se ele fosse o culpado pela falta de iniciativa e vontade de trabalhar dos agentes públicos encarregados de cobrar tributos. Não se pode substituir o trabalho laborioso da cobrança judicial pela cobrança por via de sanções políticas, apesar de três Súmulas do STF em sentido contrário. A tentativa de prisão por dívida civil representa a mais grave das sanções políticas que até hoje conseguiram inventar aqueles que buscam frutos sem plantar a árvore. Os defensores ferrenhos da prisão por dívida civil não se aperceberam da violação do princípio maior da razoabilidade: o contribuinte em débito é aquele que está sendo ajudado pelo Estado por meio da lei de recuperação judicial, movimentando todo o aparato judicial que custa caro à sociedade. Como é possível pretender que esse mesmo Estado encarcere o contribuinte que ele está ajudando? Onde a coerência? Já decidiu o STF que não é razoável dar com mão direita e retirar com a mão esquerda. E a razoabilidade na jurisprudência da Corte Suprema é um limite imposto à ação do próprio legislador.
Se for para extrapolar do campo jurídico todas as “n” considerações prós e contra deveriam ter sido abordadas, e não foram, favorecidos pela proibição de apartes. Por isso, no meu entender, devemos tão somente aplicar a lei vigente que dá segurança jurídica a todos. Com leis sacadas do bolso do colete do aplicador ninguém conseguiria dormir sossegado, muito menos, produzir riquezas de que necessita o País. Por fim, para o meu total espanto debateu-se o custo/benefício da criminalização do devedor confesso de tributos, como se estivéssemos em uma Casa Legislativa com vista à elaboração de um projeto de lei. Indagado pelo Ministro Roberto Barroso sobre a superlotação dos presídios, a ilustre representante da Fazenda afirmou com naturalidade que o problema poderia ser facilmente resolvido com o pagamento do tributo ou o seu parcelamento, porque a jurisprudência do STF extingue a punibilidade com o pagamento a qualquer tempo. Confesso que foi difícil continuar ouvindo essas coisas. Já que se falou em custo/benefício o Ministro Barroso ponderou a necessidade de avaliar a eventual queda da produtividade como decorrência das prisões. Para mim, o resultando parece claro. Com a prisão de milhares de devedores muitas empresas ficarão acéfalas; outras irão fechar as portas e o PIB, que começou a crescer a partir do governo Temer, irá decrescer como nos tempos da Presidente Dilma. Não de deve matar a galinha dos ovos de ouro só porque ela foi acometida de uma doença por conta das más condições do galinheiro. O seu dono deve alimentá-la e curá-la, ao mesmo tempo em que deve introduzir melhorias no galinheiro!
O escamoteamento do princípio da tipicidade destrói os alicerces do Direito Penal da mesma forma que afronta o princípio da tipicidade cerrada na definição de norma jurídica de tributação, acabando com o fundamento do Direito Tributário. Ambas as disciplinas têm em comum o princípio da tipicidade: nullum crimem nullum tributum sine praevia lege.
Chegando a minha vez de expor procurei não repetir as exposições feitas por colegas que me antecederam condenando, com veemência, a tentativa de criminalização por via jurisprudencial. Um deles citou o precedente da criminalização do não pagamento do IPI durante o regime militar. Pelo menos naquela época havia um Decreto-lei tipificando a conduta. Esse diploma legal foi julgado inconstitucional pelo STF.
A criminalização ora pretendida resulta, não da tipificação existente na lei, mas de um enxerto no inciso II, do art. 2º, da Lei nº 8.137/90 trocando a expressão “valor de tributo ou contribuição social, descontado ou cobrado” do contribuinte (está implícito) pela expressão “”descontado ou cobrado do consumidor final”. Ora, como reter tributo de quem não é contribuinte? Se o consumidor final nada deve ao fisco ele não deve sofrer cobrança de quem quer que seja. Por isso, os defensores da tese da prisão por dívida civil, ancorados na teoria da repercussão econômica do encargo financeiro do tributo, deveriam, por coerência, sustentar a tese que na hipótese de o contribuinte vendedor não conseguir receber o preço da mercadoria vendida, porque ele entrou em estado de insolvência por conta da estúpida carga tributária, ele, vendedor, deveria ser exonerado da obrigação de recolher o imposto. A coerência se impõe até mesmo no erro!
Centrei a minha fala no campo estritamente técnico citando a frase do saudoso jurista Geraldo Ataliba: “Ao jurista cabe desenvolver apenas atitude mental jurídica com total abstração de considerações de natureza meta-filo-jurídicas, refutando, por outro lado, a tese do imposto cobrado do consumidor final a partir da distinção jurídica entre tributo direto, que comporta retenção na fonte, e tributo indireto, que não comporta essa retenção porque o tributo está contido no preço da mercadoria, inteiramente pertencente ao comerciante vendedor, e o ônus do encargo financeiro é transferido ao consumidor final que não é sujeito passivo de tributo, nem é conhecido do fisco que não mantém qualquer vínculo jurídico com a Fazenda. Por isso seu nome sequer consta do Cadastro Fiscal.
Ao final da minha fala o Ministro Barroso indagou-me que providências deveriam ser tomadas, no meu entender, para acabar com a nebulosidade e a complexidade da tributação por dentro que está causando todo esse problema.
Respondi-lhe que no ano de 2005 apresentei junto à Comissão Especial de Reforma Tributária na Câmara dos Deputados uma Proposta de Emenda Constitucional instituindo o regime de tributação por fora como o que é praticado nos Estados Unidos, no Japão e outros países adiantados. Aí sim, que caberia a prisão, por apropriação indébita, do contribuinte que deixou de recolher, no prazo legal, o imposto destacado que pertence ao erário. Na tributação por dentro que tem matriz constitucional, em relação ao ICMS, o destaque do imposto na nota fiscal não significa imposto devido, muito menos dinheiro pertencente ao fisco, representando esse destaque mero procedimento para o fim contábil e fiscal, com vistas a encontrar o montante do imposto devido em determinado período de apuração, de forma a preservar a sua natureza não cumulativa. Se no final de determinado mês o crédito pela entrada de mercadorias superar o débito pela saída de mercadorias nada será devido a título de ICMS, pelo contrário, o crédito excedente será transferido para o mês subseqüente. Coincidentemente o destaque é feito pela alíquota de 18%, mas, se for ela alterada para 30%, 90% ou 100% o resultado seria absolutamente igual, por se tratar de crédito de natureza meramente financeira. Aliás, para evitar confusão é desejável que o destaque fosse feito por uma alíquota diferente de 18%. De fato, tanto faz creditar R$18,00 e debitar R$18,00, como creditar R$180,00 e debitar os mesmos R$180,00.
Essa proposta que fiz em 2005 vem figurando na nossa obra Direito Financeiro e Tributário, desde então. Ela é reproduzida na 28ª edição que acabou de sair no dia 10-3-2019, cujo exemplar foi entregue ao Ministro Roberto Barroso ao final da sessão.
Tenho a impressão que o Congresso Nacional nunca irá trocar um regime confuso e nebuloso que permite aumentar a carga tributária de forma enrustida, que o consumidor não consegue perceber, por um critério simples e transparente que aponta com clareza o montante do imposto cobrado pelo Estado, além possibilitar a prisão do sonegador. Tanto é que a Reforma tributária em discussão na Câmara dos Deputados incorpora o mesmo vício da tributação por dentro que até permite aumentar a carga tributária por meio de isenção. De fato, em havendo uma isenção de permeio o crédito da operação anterior deve ser anulado e estornado. É o que chamamos de isenção invertida e pervertida.
Finalizando, a prisão por dívida civil só pode ser feita mediante alteração legislativa cabendo ao legislador avaliar o custo/benefício, bem como a justiça ou injustiça dessa prisão. Ao aplicador cumpre apenas aplicar a lei vigente interpretada exclusivamente por meio de hermenêutica jurídica, separando questões jurídicas das questões não jurídicas. É o que reclama o Estado Democrático de Direito que assegura a todos a necessária segurança jurídica. E mais, essa criminalização por meio de um novo instrumento legislativo de natureza penal esbarraria no inciso LXVIII, do art. 5º da Constituição que proíbe a prisão por dívida civil, ressalvada as hipóteses de inadimplemento de obrigação alimentar e de depositário infiel. Igualmente agrediria o art. 7º, item 7 do Pacto de San José da Costa Rica de que é signatário o Brasil que promulgou a referida Convenção Internacional pelo Decreto nº 678/92. E essa garantia está assegurada em nível de cláusula pétrea de sorte a não comportar sua remoção por via de Emenda.
SP, 15-3-19.