Brasil em crise existencial

O país vive uma crise existencial sem precedentes na história. Crise existencial não se confunde com existência de crise. Então, o que é crise existencial? Crise existencial é um momento no qual um indivíduo questiona os próprios fundamentos de sua vida: se esta vida possui algum sentido, propósito ou valor[1]. Esta questão sobre o sentido e propósito da existência é o tema da escola filosófica do existencialismo que dá ênfase na responsabilidade do homem sobre o seu destino e seu livre-arbítrio. Expliquemos de forma compreensível a todos. Às vezes uma pessoa passa a padecer de ansiedade, cansaço mental, apatia, desânimo, e a ter sentimentos de receio, desespero, dúvidas e incertezas; fica com a vontade de se isolar do mundo exterior; enfim, perde a autoestima. Tudo isso somado vai causar dores de cabeça, elevação de pressão arterial, problemas gastrointestinais, etc.

Quando a maioria dos componentes de uma sociedade sofre desses sintomas psicossomáticos pode-se dizer que o país está mergulhado em uma crise existencial.

Exemplo vivo de crise existencial é a da União Européia, provocada pelo crescente fluxo migratório que gerou o xenofobismo. O xenofobismo traduz-se por uma aversão ou profunda repulsa ou antipatia em relação aos estrangeiros que vêm de outros países com culturas diferentes, ainda que pertencentes à mesma etnia. Difere do racismo que é a discriminação fundamentada na existência de uma raça superior. Por isso, o racismo conduz à discriminação de pessoas que nasceram no mesmo país daquele que pratica o racismo.

Por força do crescimento exagerado do xenofobismo, os governantes nacionais passam por cima das decisões que eles próprios tomaram no âmbito da União Europeia, passando a prestigiar o sentimento de nacionalidade dos países participantes do Bloco. O anúncio da saída da Grã-Bretanha, motivada pela intensificação do fluxo migratório do Bloco (Brexit) agravou essa crise. Se a França seguir o mesmo exemplo (Frexit) a situação tende a piorar, podendo provocar reação em cascata. O Brasil experimentou no século XIX o fenômeno chamado lusofobia que tem origem no sentimento de nacionalidade de parcela ponderável dos políticos brasileiros que tinham por objetivo reduzir a interação de indivíduos portugueses na economia local.

A crise existencial no Brasil não tem origem no xenofobismo, nem no racismo, esta última conduta, criminalizada por estatuto jurídico específico.

A crise existencial brasileira que atinge os campos ético, político e econômico tem sua origem no tripé: corrupção, desperdício de recursos e corporativismo.

A corrupção encontra-se generalizada, contaminando órgãos e instituições como decorrência do projeto petista de permanência no poder a qualquer custo. Durante mais de 13 anos foram plantadas células cancerígenas que estão corroendo nossas instituições políticas e sociais. As empresas estatais transformaram-se em fontes regulares de distribuição de recursos financeiros aos determinados detentores do poder político com a colaboração e participação ativa das empreiteiras de obras públicas, hoje, investigadas pela operação Lava Jato. A lista contendo nomes de 298 políticos envolvidos em atos de corrupção que surgiu da delação premiada dos executivos da Odebrecht é impressionante. Filiados a vinte e três partidos políticos estão envolvidos nos atos de corrupção: DEM (16), PCdoB, PDT, PMDB (40), PMN, PP, PPL, PPS, PR, PSB, PSC, PSD, PSDB (47), PSL, Psol, PT (76), PTB, PTC, PTdoB, PTN, PV, Rede, SD e um Sem partido. O PT é recordista com 76 membros envolvidos, seguido pelo PSDB com 47 e PMDB com 40 membros envolvidos.

Por tudo isso, o Brasil classifica-se dentre os países mais corruptos do mundo. Segundo estudos da Transparência Internacional que pesquisou 178 países, em 2015 o Brasil recuou 7 posições situando-se na 76ª posição no Ranking sobre percepção da corrupção no setor público e perdeu 5 pontos em relação ao ano anterior, situando em índice 38 em uma escala de 0 a 100. Zero significa país extremamente corrupto, e cem significa país bastante transparente. A Dinamarca continua em primeiro lugar com índice 91, onde a corrupção no setor público praticamente não existe.

O desperdício de recursos é fato corriqueiro, público e notório: obras inacabadas, gastos inúteis, perda de safras, perda de toneladas de alimentos e de remédios vencidos, postos de saúde que são fechados para reformas, mas que depois de reformados ficam anos sem reabertura por falta de recursos humanos e materiais, estes estocados em lugares incertos e não sabidos, etc. O jurista Leo da Silva Alves, com base em reportagens jornalísticas demonstra que o SUS tinha em setembro de 2015 cerca de 37 mil equipamentos médicos fora de uso em todo o país incluindo máquinas que asseguram a sobrevivência dos pacientes, como cadeiras de hemodiálise e incubadoras para recém-nascidos. Aponta o caso de um importante hospital na região nordeste em que fotos mostram caixas sob repostas dentro de um depósito, nas quais estão equipamentos de radioterapia e tomógrafos. O próprio hospital teria reconhecido que o material estava ali havia cinco anos a espera de reformas no prédio para terem utilização.[2] Mas, o pior desperdício é o das potencialidades das riquezas nacionais, onde a incompetência dos agentes públicos beira às raias da psicopatia. O jurista Leo da Silva Alves explica que psicopata não é necessariamente autor de crime brutal como retratado nos filmes. A grande maioria dos psicopatas está nas ruas, nas empresas, em lares bem postos e, evidentemente, dentro do serviço público, com presença expressiva em cargos de mando, onde o psicopata vive do poder. Acomodados em bons ofícios, experimentam a oportunidade singular de manipular pessoas e obter vantagens de toda espécie.[3]

O corporativismo tem origem na Itália fascista sendo caracterizado por um sistema político em que o Poder Legislativo era atribuído a corporações representativas de interesses econômicos, industriais, comerciários ou profissionais nomeados por meio de associações de classes. Em termos atuais, o corporativismo significa ação de uma classe ou de um grupo de pessoas que buscam exclusivamente alcançar benefícios junto ao governo, agindo de forma independente, não se submetendo à ação ordenada e impositiva do Estado. Órgãos e instituições públicas incham com o crescimento do corporativismo e seus integrantes passam a ignorar as suas atribuições legais. Ocupam cargos e funções públicas para se servir do Estado ao invés de prestar serviços ao Estado. Limitam-se a gastar dinheiro público para defender interesses próprios. Difícil encontrar um órgão ou instituição pública sem movimento corporativista. Um dos indícios desse corporativismo acentuado está na própria Lei de Responsabilidade Fiscal que destina 50% da receita corrente líquida para as despesas de pessoal na esfera da União e 60% dessa receita nas esferas dos Estados e dos Municípios. É muito dinheiro! Antes do advento da LRF era pior, não havia limite de gastos a esse título. Daí o ditado popular segundo o qual o cidadão brasileiro trabalha para pagar a folha e os juros.

Quais são as causas desses males? Coincidentemente são três: a) instituições carentes; b) falta de liderança política; c) patrimonialismo.

As nossas instituições, na verdade, são sólidas, tanto é que instigadas pela soberania popular, ainda que aos trancos e barrancos, afastaram uma governante incapaz que havia perdido o respaldo da legitimidade por ter adotado a mentira como forma rotineira de expor o plano de ação governamental. Mas, as instituições padecem de doenças crônicas que datam de 2002, causadas pela corrupção, que estão sendo combatidas por instituições públicas: polícia federal, MP, TCU, Judiciário e Legislativo que, atualmente, está discutindo medidas anticorruptivas.

A falta de liderança política é pública e notória. Não temos líderes nascidos dentro do pluralismo político, mas líderes feudais, frutos do provincialismo.

Não há renovação de valores. Velhos caciques dominam a política regional. A maioria dos senhores feudais estão encasquetados como membros de Poder; outros são os ricaços que gravitam em torno deles. Quando eles morrem ou se aposentam vem a surpresa para o cidadão comum: deixaram herdeiros que continuam na ação de seus antepassados exercitando um estranho sacerdócio que não exige fé, nem juras de trabalhos e sacrifícios. Apenas, sombra e água fresca! Só que não se limitam a ficar sob a sombra de uma árvore. Normalmente, quando agem conspiram contra as instituições públicas a que pertencem para colher benefícios particulares. É preciso, pois, interromper esse ciclo vicioso buscando novos valores distantes dos caudilhos da política brasileira.

O patrimonialismo tomou conta de parcela ponderável dos agentes públicos, notadamente dos agentes políticos. Não há mais aquela nitidez que separa o público do privado. Esses agentes fazem uso do bem público e da máquina pública em seu benefício particular. Ao invés de servirem ao Estado, dele se servem, e de forma crescente e ininterrupta. Esses agentes, ora são sócios ocultos das empresas estatais que têm parte considerável de seu patrimônio sugados por esses sócios indesejáveis; ora usufruem de serviços e de equipamentos públicos para fins particulares; ora utilizam cartões corporativos para adquirir bens de uso pessoal; ora empreendem rotineiramente viagens fantásticas ao exterior mobilizando recursos públicos a pretexto de participar de eventos, seminários ou simpósios que, no fundo, em nada contribuem para a melhoria de desempenho das instituições a que estão vinculados. É puro desperdício de dinheiro público em benefício exclusivo do viajante.

Diagnosticados os males e as suas causas cabe a cidadania encontrar uma saída dessa crise existencial que apresenta duas facetas: uma que representa o perigo, e outra que propicia oportunidade. Toda crise, qualquer que seja a espécie, propicia oportunidades. Não fora a crise energética não teria o País avançado na busca de recursos energéticos alternativos à energia elétrica. A crise da água, por sua vez, trouxe a oportunidade de encontrar meios de contenção do seu consumo, assim como meios científicos para aproveitamento do chamado “volume morto” das represas.

A sociedade, detentora legitima do poder, deve encontrar uma saída, não aquela excepcional, como querem os mais exaltados, mas uma saída ordenada e legítima, por meio da Constituição, Lei maior da sociedade. Nenhuma crise é permanente. À medida que o povo vai amadurecendo com os sofrimentos impingidos pelos malfeitores nominados irá encontrar uma solução que fará o país sair fortalecido dessa crise existencial. É a esperança que nos resta.

 

* Jurista, com 31 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica.

[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Crise_existencial#cite_note-1.

[2] Luzes do planalto. Brasília: Editora Rede. 2016, p.35-36.

[3] Ob. cit. P.50-51.

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