Dispõe o art. 156-A da CF inserido pela Emenda Constitucional nº 132/2023 que implantou a reforma tributária parcial focado nos tributos incidentes sobre o consumo:
“Art. 156-A. Lei complementar instituirá imposto sobre bens e serviços de competência compartilhada entre Estados, Distrito Federal e Municípios.
§ 1º O imposto previsto no caput será informado pelo princípio da neutralidade e atenderá ao seguinte:
I – incidirá sobre operações com bens materiais ou imateriais, inclusive direitos, ou com serviços;
II – incidirá também sobre a importação de bens materiais ou imateriais, inclusive direitos, ou de serviços realizada por pessoa física ou jurídica, ainda que não seja sujeito passivo habitual do imposto, qualquer que seja a sua finalidade;
III – não incidirá sobre as exportações, assegurados ao exportador a manutenção e o aproveitamento dos créditos relativos às operações nas quais seja adquirente de bem material ou imaterial, inclusive direitos, ou serviço, observado o disposto no § 5º, III;
IV – terá legislação única e uniforme em todo o território nacional, ressalvado o disposto no inciso V;
V – cada ente federativo fixará sua alíquota própria por lei específica;
VI – a alíquota fixada pelo ente federativo na forma do inciso V será a mesma para todas as operações com bens materiais ou imateriais, inclusive direitos, ou com serviços, ressalvadas as hipóteses previstas nesta Constituição;
VII – será cobrado pelo somatório das alíquotas do Estado e do Município de destino da operação;
VIII – será não cumulativo, compensando-se o imposto devido pelo contribuinte com o montante cobrado sobre todas as operações nas quais seja adquirente de bem material ou imaterial, inclusive direito, ou de serviço, excetuadas exclusivamente as consideradas de uso ou consumo pessoal especificadas em lei complementar e as hipóteses previstas nesta Constituição;
IX – não integrará sua própria base de cálculo nem a dos tributos previstos nosarts. 153, VIII, e 195, I, “b”, IV e V, e da contribuição para o Programa de Integração Social de que trata o art. 239;
X – não será objeto de concessão de incentivos e benefícios financeiros ou fiscais relativos ao imposto ou de regimes específicos, diferenciados ou favorecidos de tributação, excetuadas as hipóteses previstas nesta Constituição;
XI – não incidirá nas prestações de serviço de comunicação nas modalidades de radiodifusão sonora e de sons e imagens de recepção livre e gratuita;
XII – resolução do Senado Federal fixará alíquota de referência do imposto para cada esfera federativa, nos termos de lei complementar, que será aplicada se outra não houver sido estabelecida pelo próprio ente federativo;
XIII – sempre que possível, terá seu valor informado, de forma específica, no respectivo documento fiscal”.
§ 2º Para fins do disposto no § 1º, V, o Distrito Federal exercerá as competências estadual e municipal na fixação de suas alíquotas.
§ 3º Lei complementar poderá definir como sujeito passivo do imposto a pessoa que concorrer para a realização, a execução ou o pagamento da operação, ainda que residente ou domiciliada no exterior.
§ 4º Para fins de distribuição do produto da arrecadação do imposto, o Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços:
I – reterá o montante equivalente ao saldo acumulado de créditos do imposto não compensados pelos contribuintes e não ressarcidos ao final de cada período de apuração e aos valores decorrentes do cumprimento do § 5º, VIII;
II – distribuirá o produto da arrecadação do imposto, deduzida a retenção de que trata o inciso I deste parágrafo, ao ente federativo de destino das operações que não tenham gerado creditamento.
Como se verifica do caput, a Lei Complementar instituirá o imposto sobre bens e serviços – IBS – de competência compartilhada entre estados, Distrito Federal e municípios. Ofende o princípio discriminador de impostos que faz parte do princípio federativo que assegura a autonomia política, administrativa e financeira dos estados e dos municípios (art. 18 da CF) protegida em nível da cláusula pétrea (art. 60, § 4º, I da CF). Competência tributária significa a faculdade de cada ente político instituir o imposto com que foi contemplado. Diferentemente do poder de fiscalizar e arrecadar, a competência não comporta delegação.
Por isso, apresentamos a sugestão junto ao Relator da reforma tributária no Senado no sentido de instituir um IBS estadual e outro IBS municipal, ou alternativamente deixar o setor de serviços, imensamente onerado pelo novo sistema tributário, fora da reforma com o fito de preservar a autonomia político-administrativa dos entes regionais e locais, e, ao mesmo tempo, prescindir do complicado e dispendioso Comitê Gestor, para administrar o IBS dual. Mas, o Parlamento não estava interessado na simplificação do sistema tributário, apesar de a simplicidade, ironicamente, ter sido proclamada como um dos princípios a ser observado pelo Sistema Tributário Nacional (art. 145, § 3º da CF).
O § 1º, por meio de treze incisos, após proclamar o princípio da neutralidade na implementação do IBS, enumera as suas características:
I – O imposto incidirá sobre operações com bens materiais ou imateriais, inclusive direitos, ou com serviços. Trata-se de um conceito vago e muito amplo. Preconizamos o uso da expressão “circulação”, a exemplo do ICMS, para assinalar o caráter mercantil do imposto, mas a sugestão foi ignorada pelo legislador. Certamente levará décadas para a jurisprudência definir o fato gerador desse imposto que tem por objeto bens e serviços de qualquer natureza.
II – Incidirá sobre importação de bens materiais ou imateriais, inclusive direitos, ou serviços realizada por pessoa física ou jurídica, independentemente de ser sujeito passivo habitual do imposto, qualquer que seja a sua finalidade. Regra semelhante consta em relação ao ICMS na letra a, do inciso IX, do § 2º, do art. 155 da CF. Em um primeiro momento, o STF entendeu pela tributação do leasing internacional, mas, posteriormente, em sede de repercussão geral, decidiu pela não incidência do ICMS no leasing internacional, por não existir a circulação de mercadoria, salvo na hipótese de antecipação da opção de compra do bem arrendado (RE nº 540.829/SP, DJe de 16-6-2015). Esse dispositivo, em tese, permite tributar pelo IBS a importação pela pessoa jurídica de bens para integrar o ativo fixo e a importação pela pessoa física de bens para consumo, hipóteses em que não há operação mercantil. Com certeza essa questão será levada ao STF que dará a última palavra.
III – Não incidirá sobre as exportações, assegurados ao exportador a manutenção e o aproveitamento dos créditos relativos às operações nas quais seja adquirente de bem material ou imaterial, inclusive direitos, ou serviço, observado o que dispuser a lei complementar quanto a forma e o prazo para ressarcimento de créditos acumulados pelo contribuinte. A letra a, do inciso X, do § 2º, do art. 155 da CF contém regra semelhante.
IV e V – O IBS terá legislação única e uniforme em todo o território nacional ressalvada a competência para cada ente federativo fixar sua alíquota por lei específica.
A lei complementar uniforme, apesar de ferir a autonomia dos entes periféricos, simplifica a legislação, porém, o inciso V, ao deferir a competência para cada ente político fixar a sua alíquota, torna a legislação bastante complexa, considerando a existência de 27 estados incluindo o Distrito Federal e 5.570 municípios com características díspares. A cobrança do IBS, pelo somatório das alíquotas dos estados e dos municípios, como dispõe o inciso VII, pelo Comitê Gestor será uma tarefa muito árdua e de difícil execução.
VI – A alíquota fixada pelo ente federativo na forma do inciso V será a mesma para todas as operações com bens materiais ou imateriais, inclusive, direitos, ou com serviços, ressalvadas as hipóteses previstas nesta Constituição. A EC nº 132/2023 estabeleceu várias hipóteses de regimes especiais de tributação implicando redução de alíquota da ordem de 30%, 40% e 60%, o que refletirá na elevação da alíquota de referência. O texto se refere à uniformidade de alíquotas para bens e serviços e direitos, mas não obriga que todos os 27 entes estaduais fixem a mesma alíquota, nem que todos os 5.570 municípios adotem a mesma alíquota. Se a lei complementar não fixar os parâmetros para a fixação dessas alíquotas estaduais e municipais, a cobrança do IBS poderá restar inviabilizada.
VII – O IBS será cobrado pela somatória das alíquotas do estado e do município de destino da operação. Abandonou-se a postura equitativa do atual regime de alíquotas interestaduais (7% a 12% conforme o estado de destino), adotando-se a tributação no estado/município de destino. Privilegia-se o estado de consumo e pune-se o estado produtor.
VIII – O IBS será não cumulativo, compensando-se o imposto devido pelo contribuinte com o montante cobrado sobre todas as operações nas quais seja adquirente de bem material ou imaterial, inclusive direito, ou de serviço, excetuadas as consideradas de uso ou consumo pessoal especificadas em lei complementar e as hipóteses previstas nesta Constituição. Além de manter as restrições ao crédito constante do § 2º, do art. 155 da CF agravou-se a complexidade ao remeter à lei complementar a especificação de bens e serviços destinados ao consumo pessoal que não geram créditos.
IX – Estabelece a tributação do IBS por fora vedando a integração do imposto na sua própria base de cálculo, ao mesmo tempo em que exclui da base de cálculo o Imposto Seletivo, a Contribuição sobre faturamento/receita, a Contribuição sobre importação de bens e serviços, a CBS e o PIS/PASEP. Vai ao encontro do princípio da transparência tributária (art. 150, § 5º da CF) e não permite transferir o encargo financeiro do imposto ao consumidor final, por via do fenômeno da repercussão econômica.
X – Veda a outorga de incentivos e benefícios financeiros ou fiscais relativos ao imposto ou de regimes específicos, diferenciados ou favorecidos de tributação, excetuadas as hipóteses previstas nesta Constituição que são várias. Na verdade, a tributação no destino, por si só, é fator de inibição de incentivos fiscais unilaterais.
XI–Estabelece a imunidade das prestações de serviço de comunicação nas modalidades de radiodifusão sonora e de sons e imagens de recepção livre e gratuita. Aplica-se ao IBS a mesma regra que existe em relação ao ICMS (letra d, do inciso X, do § 2º do art. 155 da CF).
XII – Confere ao Senado Federal a faculdade de fixar alíquota de referência do IBS para cada esfera federativa, nos termos da lei complementar, para fins de sua aplicação na hipótese de omissão dos estados e dos municípios. Seria preferível a fixação dessas alíquotas pela lei complementar que instituir o IBS, para simplificar a sua cobrança, ao invés de disfarçar a quebra do princípio federativo reservando aos entes políticos periféricos a faculdade de fixar as suas alíquotas, que poderá resultar em uma grande confusão, dada a numerosidade de sujeitos ativos desse imposto.
XIII – Determina o destaque do imposto na respectiva nota fiscal, sempre que possível. Difícil de entender essa expressão “sempre que possível”, pois a tributação por fora impõe a separação do preço, pertencente ao comerciante/prestador de serviço e do imposto, pertencente ao fisco. O legislador constituinte derivado, sempre que possível, cuidou de obscurecer as normas.
O § 2º prescreve que o Distrito Federal, por não estar subdividido em municípios, acumula a competência impositiva estadual e municipal em matéria de IBS, a exemplo do que ocorre com o ICMS.
O § 3º, a nosso ver, viola o princípio da territorialidade das leis. O princípio da territorialidade significa que se deve aplicar a todas as pessoas e coisas situadas no território de um país o direito desse país, ‘lex non valet extra territorium’, e que o poder vinculante de uma lei atinge os limites geográficos da pessoa política que a editou, apresentando suas exceções nos tratados e convenções internacionais. No âmbito interno, as legislações tributárias estaduais e municipais somente surtem efeito fora de seus respectivos territórios nos limites em que lhe reconheçam extraterritorialidade os convênios de que participem, ou do que dispuser a lei complementar que disponha sobre normas gerais (art. 102 do CTN). Na esfera internacional, somente um tratado ou convenção internacional, a exemplo do que existe na área do imposto de renda, pode surtir efeito jurídico fora do território de um determinado País.
Nesse sentido importante lembrar o disposto na Súmula nº 585 do STF:
“Não incide o imposto de renda sobre a remessa de divisas para pagamento de serviços prestados no exterior, por empresa que não opera no Brasil”
O § 4º atribui ao Comitê Gestor a tarefa de partilhar o produto de arrecadação do IBSentre estados e municípios adotando as seguintes providências:
I – reterá o montante equivalente ao saldo acumulado de créditos do imposto não compensados pelo contribuinte, nem ressarcidos ao final de cada período de apuração, bem como os valores pertinentes ao CASHBACK (§ 5º, VIII). No regime de tributação por fora, como é o caso do IBS, não cabe falar em CASHBACK, porque nessa hipótese não há a figura do consumidor final como contribuinte de fato. O preço da mercadoria/serviço por ele pago não embute o valor do imposto.
II – O produto de arrecadação do IBS, após dedução de que trata o inciso I, será distribuído ao ente federativo de destino das operações que não tenham gerado creditamento. É uma decorrência do regime de tributação no destino adotado pela EC nº 132/2023.
Conforme previsão do art. 125, o IBS entrará em vigor no exercício de 2026 com a alíquota estadual de 0,1% (um décimo por cento) e o produto de sua arrecadação será integralmente aplicado para o financiamento do Comitê Gestor e para compor o Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais ou Financeiro-Fiscais do ICMS (§ 3º).
Entretanto, o seu § 4º dispensa o pagamento do IBS para os contribuintes que cumprirem as obrigações acessórias pertinentes, nos termos da lei complementar.
A cada texto normativo que examinamos somos surpreendidos pela ambigüidade, dúvida ou contradição. O caput do art. 125 prescreve que o IBS entrará em vigor em 2026 com a alíquota estadual de 0,1%. Nada dispõe sobre a alíquota municipal, apesar de o IBS ser um imposto de competência compartilhada entre estados e municípios, cada qual com a faculdade de fixar alíquotas próprias por lei especial (inciso V, do § 1º, do art. 156-A). Tudo indica que o apressado legislador confundiu competência compartilhada com imposto partilhado no produto de sua arrecadação, como acontece com o atual ICMS e IPVA.
Exonerou o contribuinte do pagamento do IBS no ano de 2026, nos termos estabelecidos por lei complementar, frustrando a destinação do produto de sua arrecadação prevista no § 4º.
Enfim, esse novo imposto dual é prolixo, confuso e de difícil operacionalização, onerando tanto o contribuinte, como o poder tributante, que arcará com o financiamento do discutível Comitê Gestor, uma autarquia federal dotada de competência normativa, ficalizatória/arrecadatória, de distribuição de recursos arrecadados e, ainda, com a atribuição de decidir o contencioso administrativo referente ao IBS. Acumula a tríplice função: a normativa, a executiva e a função de julgar processo administrativo tributário. Um superórgão federal que irá consumir vultosos recursos financeiros no desempenho de atividade-meio, muito ao sabor do legislador brasileiro.
SP, 29-1-2024.