Jurista e professor. Especialista em Direito Tributário pela USP. Mestre em Direito pela UNIP. Autor de 33 obras jurídicas. Ex Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo. Presidente do IBEDAFT.
Sumário: 1 Introdução. 2 Falta de segurança jurídica. 3 Excesso de carga tributária. 4 Burocracia infernal. 5 Conclusão.
1 Introdução
A simples leitura dos preceitos constitucionais que estruturam o sistema tributário nacional dá a impressão de segurança jurídica total em razão de inúmeros princípios que limitam o poder tributário do Estado.
Contudo, o exame da legislação tributária como um todo revela que esse sistema peca por total ausência de segurança jurídica, excesso de carga tributária e pelo incurável vício da burocracia danosa. Analisemos sucintamente esses aspectos.
2 Falta de segurança jurídica
O Sistema Tributário Nacional vigente, ao contrário do que aparenta pelo seu exame sob o prisma constitucional, é um dos mais inseguros, contraditórios, caóticos e imprevisíveis do mundo.
Inúmeros princípios tributários modelados pelo legislador constituinte, para limitar o poder impositivo do Estado, na prática, de nada servem aos contribuintes por conta do desrespeito sistemático ao princípio da hierarquia vertical das leis, e à falta de um órgão capaz de afastar, a tempo, as normas epidêmicas que são despejadas com incrível velocidade e que não se harmonizam com aqueles princípios enumerados na Carta Política.
A extrema morosidade da Justiça, que se acentua a cada ano que passa, conspira contra o combate a essas normas inconstitucionais. Como se isso não bastasse já se tornou visível a tendência irreversível de nossos tribunais de julgar as grandes questões tributárias com a preocupação voltada para o aspecto da preservação de saúde financeira do Estado[1], na verdade, incumbência do Executivo e do Legislativo, e não do Judiciário, responsável apenas pela aplicação das leis em vigor, desde que conformadas com os textos constitucionais. E mais. O Estado é meio e não fim. O governo existe em função da sociedade, pois todo poder emana do povo na dicção do parágrafo primeiro, do art. 1º da Constituição Federal. Logo, os direitos e garantias fundamentais que decorrem dos princípios tributários enumerados na Constituição estão acima do poder político do Estado. Pode parecer uma brincadeira, mas é o que decorre do Estatuto Magno.
Um verdadeiro cipoal de normas dúbias e nebulosas são editadas periodicamente, exatamente no sentido inverso do princípio da transparência tributária inscrito no § 5º, do art. 150 da CF, que conflitam abertamente com o sistema tributário habilmente esculpido pelo legislador constituinte que esgotou a matéria, nada deixando para o legislador ordinário complementar esse sistema, a não ser instituir os tributos de competência de cada ente político, nos exatos termos da outorga constitucional.
Mas, o que se vê na prática é a burla sistemática aos princípios tributários pelo legislador ordinário que vem ignorando a natureza intrínseca de cada espécie tributária, apegando-se a uma denominação formal, tornando letra morta o princípio discriminador de impostos. Taxas e impostos inconstitucionais vêm sendo cobrados sob a denominação de contribuição social, valendo-se o legislador infraconstitucional do vazio existente no Código Tributário Nacional que deixou de definir o fato gerador dessa espécie tributária que pressupõe um benefício específico, mesmo porque, à época de seu advento, doutrina e jurisprudência não consideravam a contribuição social como uma espécie tributária.
A inobservância dos princípios tributários retira dos contribuintes a segurança jurídica que reside exatamente na previsibilidade da ação governamental no campo da tributação. Pelo exame do sistema tributário estruturado na Constituição o contribuinte sabe de antemão o que o governo pode fazer e o que não pode fazer. Como os princípios tributários não são respeitados pelo legislador infraconstitucional os contribuintes são surpreendidos a cada momento com novas exações tributárias. Os tribunais, quando declaram a inconstitucionalidade de um tributo, levam anos e a decisão vem com efeito modulatório: quem pagou não tem direito à repetição; quem não pagou não precisa mais pagar! Inaugura-se, dessa forma, o princípio da inconstitucionalidade eficaz que provoca o crescente abuso legislativo vantajoso.
3 Excesso de carga tributária
Cada reforma tributária pretendida acaba em minirreforma, um remendo constitucional que aumenta a carga tributária, tornando a legislação mais complexa, ao contrário da habitual rotulagem dada à reforma: simplificar e atenuar a carga tributária visando o desenvolvimento da economia. É o que consta invariavelmente da exposição de motivos de toda a reforma tributária preconizada até hoje. Na prática, diminuição de pressão tributária virou sinônimo de elevação do peso da tributação, e a simplificação passou a significar complicação. As duas propostas de reforma em andamento no Congresso Nacional, a PEC nº 110/19 e a PEC nº 45/19, são os retratos fiéis do que estamos falando[2]. Por conta disso o Brasil é o segundo país que mais tributa no mundo, oferecendo em contrapartida uma prestação de serviços públicos típicos de um País do terceiro mundo
O nível de imposição tributária que no final da década de 90 girava em torno de 20,41% do PIB, hoje alcança 35% do PIB. Isso em termos de efetiva arrecadação, sem considerar os inadimplentes voluntários e involuntários.
Na realidade, a cada R$ 100,00 que consumimos seguramente mais de R$ 50,00 são representados por tributos legais e ilegais. Não bastassem os tributos inominados, os chamados tributos indiretos elevam consideravelmente a carga tributária sem que os contribuintes saibam. A técnica da tributação nebulosa, consistente na tributação por dentro, isto é, aquela que faz com que o valor do tributo incida sobre si próprio, não permite à população consumidora identificar o valor real do tributo que incide sobre o preço das mercadorias e serviços. Todos pensam que o ICMS incide à alíquota de 18%, quando o seu cálculo por dentro conduz a uma alíquota 21,95%. A diferença do percentual de 3,98% não é percebida pelos consumidores em geral. No caso de importação de bens, em que incide o PIS/COFINS-importação e o ICMS, a carga real chega a 37,46%, quando a carga nominal é de apenas 27,25% (18% de ICMS + 9,25% de PIS/COFINS-importação). A diferença de 10,21% não é notada pelos contribuintes em geral, às vezes, nem por especialistas e juízes.
No fundo, essa política de tributação exacerbada, por meio de uma legislação caótica e nebulosa que investe no princípio da inconstitucionalidade ou da ilegalidade eficaz, resulta da incompetência administrativa dos governantes.
Costumo dizer que a incompetência governamental e o excesso de carga tributária são irmãos siameses. Onde há carga tributária excessiva identifica-se de pronto um governante incompetente, despreparado para o exercício do elevado cargo de supremo mandatário do País.
É muito mais fácil e cômodo para o governante míope, que parece padecer de um mal congênito, a preguiça mental, utilizar-se do mecanismo de transferência compulsória da riqueza do setor privado para o setor público do que estudar e planejar uma ação governamental a partir das reais prioridades da sociedade, pesquisadas e identificadas previamente a elaboração da programação orçamentária. A Lei Orçamentária Anual não deve espelhar uma mera peça de ficção, prevendo estimativa de receita de um lado, e a fixação de despesas de outro lado, mas, deve refletir o programa de ação do governo em cada exercício, para atingir as metas do plano plurianual. O governante incompetente não sabe como direcionar corretamente as despesas, porque desconhece a realidade social. Por desconhecer a realidade do País como um todo não sabe identificar os setores que devam ser atendidos com prioridade. Resulta disso que, em média, menos de 60% das verbas de diversas dotações orçamentárias são efetivamente executadas. O restante desaparece por conta das realocações de verbas no curso de execução orçamentária por meio de transferências, transposições e remanejamentos, tudo ao sabor dos acontecimentos do momento, quando não desaparecem pelos ralos espalhados nos órgãos e instituições públicas.
Falta no nosso País um estadista capaz de fazer muitas coisas com poucos recursos financeiros, ao contrário de um curioso que pouco faz empregando uma montanha de dinheiro extraído coativamente da população pagante por meio de instrumentos normativos cada vez mais truculentos, para minar a resistência dos inadimplentes ditos “sonegadores”, agora, apenados com sanção penal.
O estadista quer o bem para sociedade e por isso trabalha com o que tem, otimiza a infraestrutura material e pessoal e produz desdobrando-se nas ações de seleção, planejamento e execução de tarefas. O curioso que quer o bem para si e seus apaniguados nada faz, além de reformas e mais reformas, sempre de maneira a aumentar os gastos públicos, na maioria das vezes, desnecessários, para inchar o quadro de servidores exercentes de cargos em comissão, com o consequente alijamento dos servidores efetivos para funções menos relevantes, implicando total comprometimento da burocracia estável e produtiva. Os cargos em comissão que surgiram com o regime militar de 1964, dentro de uma conjuntura perfeitamente justificável, após a redemocratização do País não só permaneceram, como também, praticamente, tomaram conta do funcionalismo público, causando a destruição do competente quadro de servidores concursados.
Para alimentar esse quadro de servidores nomeados, de forma provisória, mas que pulam de galho em galho a cada mudança de governo, o Estado sempre se vê na contingência de aumentar tributos. Não raras vezes os Ministérios e Secretarias são duplicados em função desses servidores de confiança que são indicados pelas diferentes fontes de Poder. Há uma aliança entre os Poderes para sustentar essa burocracia venal e prejudicial ao desenvolvimento sadio de nossa economia.
Por isso, diz o ditado popular que o brasileiro trabalha para pagar a folha e o serviço da dívida. Pouco resta para as despesas de investimento, comprometendo a qualidade de vida das gerações futuras.
4 Burocracia infernal
A carga tributária violenta aliada à carga burocrática compromete o desenvolvimento da economia, fazendo com que os nossos produtos percam a competitividade nesse mundo globalizado.
De nada adianta a política de desoneração das exportações de produtos e mercadorias se o peso da tributação interna e a burocracia encarece a produção. Ignorando essa realidade o legislador instituiu a desoneração do ISS na exportação de serviços. Confesso que não sei como transportar um bem imaterial para o exterior, nem como fazer o serviço viajar para o exterior. Mas, está na lei complementar nº 116/03 que é intributável a exportação de serviços para o exterior (art. 2º, I)[3].
O vício burocrático em matéria tributária vem quase que dobrando o encargo tributário. As horas gastas com o cumprimento das obrigações tributárias acessórias e para o cálculo correto dos tributos a serem recolhidos com o concurso de advogados, contadores e administradores é simplesmente impressionante. Fala-se em 2.600 horas por ano para o contribuinte cumprir todas as suas obrigações tributárias. É muito desperdício de tempo!
Centenas de instrumentos normativos subalternos vem sendo despejados periodicamente pelos três níveis impositivos, notadamente pela União: decretos, pareceres normativos, instruções normativas, atos declaratórios interpretativos, portarias, circulares, memorandos, ordens internas etc., que infernizam a vida do contribuinte. Para exemplificar, apenas para regular o PIS/COFINS a IN nº 1.911/19 da RFB contém 766 artigos, quando o Código Tributário Nacional, que regula onze dos treze impostos previstos, além de conter normas gerais de direito tributário, dirimir conflitos tributários e regular a imunidade, contém apenas 218 artigos. Nada mais é preciso falar.
Por conta dessas burocracias, segundo o relatório do Fórum Econômico Mundial, no início de setembro de 2013 o Brasil ocupava a 56ª posição no ranking mundial de competitividade de um total de 148 Países. No ano de 2019, do total de 141 Países pesquisados o Brasil ficou em 71ª posição.
Se formos analisar a fundo a causa dessa burocracia venal veremos que ela tem muito a ver com a corrupção que impera no País. A questão da burocracia não é tratada na mídia como é a questão da corrupção que frequenta as manchetes de jornais e revistas diariamente. Porém, a corrupção está por trás dessa burocracia. É a máxima: “dificultar para colher facilidades.”
Existem um verdadeiro cipoal de normas subalternas para o exercício, por exemplo, do direito de crédito do ICMS para transferi-lo ao fornecedor por conta do preço dos produtos adquiridos, que culminam no visto do agente fiscal no documento de transferência do crédito. Só que o agente não cumpre o prazo alegando “acúmulo de serviços”. Mandado de segurança impetrado contra ato omissivo do agente fiscal, apesar de deferido liminarmente para suprir o visto faltante, não tem dado resultado prático porque os fornecedores não aceitam a transferência do crédito sem o visto do agente fiscal.
Não sei ao certo se é a burocracia que gera a corrupção, ou se é esta que gera a burocracia. Mas, uma coisa é certa: ambas andam juntas como irmãs siamesas.
Os microempresários e os empresários de pequeno porte conseguiram a implementação do preceito constitucional que determina a simplificação de suas obrigações tributárias. Surgiu primeiramente o Simples nas três esferas políticas, ao depois surgiu o Simples Nacional, o Supersimples. Só que hoje, como decorrência da ação dos burocratas, essa legislação ficou supercomplicada. Constantes remendos legislativos que criam exceção dentro das regras excepcionais, além de prever inúmeras tabelas e diferentes alíquotas e outros penduricalhos, tornou o sistema bastante confuso e de elevado custo operacional. É a vitória da cartilha que assim rege: para que facilitar se podemos complicar e obter vantagens?
O custo da burocracia é muito elevado! Se computarmos os prejuízos advindos da corrupção que ela enseja, o custo será maior ainda!
Porém, esse custo parece ser invisível, pois ninguém se dispõe a combater a burocracia. O governo militar se apercebeu disso e chegou a criar a Ministério da Desburocratização comandado por Hélio Beltrão. Surgiu como resultado da atuação desse Ministério a Reforma Administrativa aprovada pelo Decreto-lei nº 200, de 25-2-1967 que foi implementado em suas fases iniciais. Hoje, não há vontade política em dar continuidade à implementação de outras etapas previstas na Reforma Administrativa e por conta disso, a burocracia reina no setor público, representando um sério obstáculo ao desenvolvimento de atividades econômicas já sufocadas pelo peso da carga tributária direta.
5 Conclusão
O doentio vício da burocracia extremada está firmemente arraigado no seio do funcionalismo, cuidadosamente alimentado e cultivado pelos detentores do Poder nas suas três esferas.
Por isso, o discurso do Presidente Jair Bolsonaro de não atrapalhar quem está produzindo, seguido da sanção da Lei de Liberdade Econômica – Lei nº 13.874/19 –, infelizmente, não vem produzindo os resultados esperados.
Enquanto o País não mudar a sua cultura da burocratização não há reforma tributária que possa devolver ao setor produtivo a tranquilidade e segurança jurídica para o desenvolvimento de suas atividades.
[1] Tem-se a impressão de que houve a mudança da toga pela Fazenda que tudo é permitido fazer, inclusive, ditar a política criminal tributária, independentemente do que dispõe a legislação penal tributária.
[2] Paralelamente às duas propostas de reforma está tramitando em regime de urgência na Câmara Federal projeto legislativo originário do Senado que cria a faixa de tributação de 37% no IR e institui a tributação de 20% na distribuição de lucros e dividendos, fazendo com o Brasil seja o único País do Planeta a tributar duplamente o lucro, perfazendo o inusitado percentual total de 35%, somando-se a alíquota incidente na pessoa jurídica e aquela incidente na pessoa física.
[3] Sobre a interpretação desse inciso I, do art. 2º da LC nº 116/03 ver o comentário no nosso livro ISS doutrina e prática, 2ª ed.. São Paulo: Atlas, 2014, p. 76-81.