Cessão de crédito tributário viola Lei de responsabilidade Fiscal

A Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF – veio à luz com o objetivo de sanear as finanças públicas elegendo critérios rígidos para o endividamento dos entes políticos e para conter as despesas de pessoal. Assim, cuidou de atacar firmemente as duas despesas tradicionais que vinham provocando o desequilíbrio das contas públicas: o serviço da dívida e a folha de pessoal. Elegeu mecanismos rígidos de controle e fiscalização dessas despesas públicas. Até hoje nenhum desses dispositivos legais foi considerado inconstitucional, apesar de alguns deles atacados judicialmente.

Entretanto, Estados e Municípios pressionados por crescente demanda de serviços públicos, sem o crescimento proporcional das receitas públicas de natureza compulsória, buscam meios indiretos de obtenção de recursos creditícios procurando contornar a proibição legal de ultrapassar os limites de endividamento. Dessa forma, procuram romper a camisa de força em que foram metidos pela LRF que nos doze anos de vigência já trouxe resultados altamente positivos, buscando meios alternativos de obter recursos financeiros para cumprir o plano de ação governamental.

Estados e Municípios estão lançando mão da negociação de crédito tributário como se este não fosse um bem público indisponível, inegociável e irrenunciável, porque existe como instrumento indispensável à realização dos fins do poder público em cada exercício.

As Prefeituras estão se valendo da Resolução nº 33/06 do Senado Federal para contornar a proibição do art. 38, IV da LRF que veda a operação de crédito por antecipação de receita (ARO), no último ano de mandato do governante. Essa Resolução, na verdade, encomendada pelo Município de São Paulo, permite ceder a instituições financeiras a sua dívida ativa consolidada, para cobrança mediante endosso-mandato, obtendo a antecipação da receita até o valor de face dos créditos. Tal ato envolve terceirização do serviço de cobrança da dívida ativa afrontando o art. 37, XXII da CF.

Outrossim, não é atribuição do Senado Federal regular a cessão da dívida ativa consolidada dos entes políticos. Sua função se esgota na fixação dos limites globais para o montante da dívida consolidada das entidades políticas e estabelecimento de limites globais e condições para o montante da dívida mobiliária dos Estados do DF e dos Municípios, nos termos dos incisos VI e IX, respectivamente, do art. 52 da CF.

Os Estados, por sua vez, com base no Convênio ICMS nº 104/02 do Confaz editaram leis que permitem a cessão onerosa de créditos tributários sob o regime de parcelamento para as Sociedades de Propósitos Específicos ou a Fundos de Investimento em Direitos Creditórios ou qualquer outra entidade que vier a ser criada mediante autorização legal.

No Estado de São Paulo foi aprovada a Lei nº 13.723/09 que permite a cessão onerosa de créditos tributários parcelados do ICMS, do IPVA e do ITCMD à Sociedade de Propósito Específico, à Companhia Paulista de Parcerias ou Fundo de Investimentos em Direitos Creditórios.

Nos termos dessa lei a cessão não transfere a prerrogativa de cobrança dos créditos tributários que permanece com a Procuradoria Geral do Estado, implicando apenas a cessão do direito autônomo de receber o crédito cedido diretamente do contribuinte-devedor, nos respectivos vencimentos. Tanto é que inadimplido o crédito cedido este volta para a Fazenda cedente para promover a sua cobrança judicial.

O engenhoso mecanismo previsto na Lei nº 13.723/09, que prevê a cessão onerosa do direito de receber o crédito tributário sob parcelamento sem alterar a sua natureza jurídica, nem modificar a sujeição ativa do tributo mascara autêntica operação de crédito. Salta aos olhos que não pode haver cessão de crédito em que o cedente deixe de transmitir a titularidade ativa da relação creditícia ao cessionário.

Por isso, essa cessão peculiar se encaixa no conceito de operação de crédito previsto no art. 29, III da LRF:

“Compromisso financeiro assumido em razão de mútuo, abertura de crédito, emissão e aceite de título, aquisição financiada de bens, recebimento antecipado de valores provenientes da venda a termo de bens e serviços, arrendamento mercantil e outras operações assemelhadas, inclusive com o uso de derivativos financeiros.”

Criou-se, na verdade, nova modalidade de operação de crédito por Antecipação de Receita Orçamentária – ARO – não autorizada pela Constituição Federal (art. 165, § 8º), nem prevista no art. 38 da LRF segundo o qual a ARO se destina unicamente para suprir a deficiência de caixa durante o exercício, só podendo ser realizada a partir do décimo dia do início do exercício para ser liquidada até o dia dez de dezembro de cada ano.

A lei sob comento permite a cedente receber no ato da cessão e de forma antecipada todo o montante do crédito tributário sob o regime de parcelamento. É uma espécie de antecipação de receita tributária sem previsão constitucional e sem regulamentação na LRF nos termos retrorreferidos.

A Lei nº 13.723/09 padece do vício de inconstitucionalidade tanto quanto o Convênio ICMS nº 104/02 do Confaz que extrapolou o âmbito de sua atribuição com suposto amparo na LC nº 24/75 que versa sobre concessão de incentivos fiscais do ICMS.

As operações de crédito da espécie violam os dispositivos da LRF notadamente os artigos 32, 36, 37, II e 38.

Apesar das tentativas dos governantes de esvaziar o conteúdo da LRF esta vem sobrevivendo aos “trancos e barrancos”. O último ataque dos governantes recaiu sobre o art. 14 da lei, sob a alegação de que ele não permite a implementação da política de desoneração tributária o que não é verdade. O que esse dispositivo proíbe é a concessão de benefício fiscal aqui e acolá, sem a consideração da renúncia tributária na estimativa de receita da Lei Orçamentária Anual e sem adoção de medidas de compensação para manter o equilíbrio orçamentário.

Aliás, nunca se pensou em diminuir a carga tributária, pelo contrário, a ação dos governantes sempre tem sido na direção do aumento da imposição tributária como se isso fosse o único mecanismo possível para equilibrar as finanças públicas. Nunca de pensou em cortar despesas improdutivas. O que se vem praticando até hoje é a política de aliviar a carga tributária de um e exacerbar a de outro. Isso tem um nome diferente do de desoneração tributária.

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