- Introdução
Segunda metade do século XIX. Numa taberna suja e abafada de São Petersburgo, então capital do império russo, com o “rosto amarelo”, “pálpebras inchadas”, “olhinhos avermelhados”, embriagado e “tomado de melancolia”, encontrava-se Marmieládov. Perdera o emprego. Pernoitara por cinco vezes consecutivas nas lanchas de feno, junto de mendigos e vagabundos. Com vergonha de retornar ao lar – donde lhe esperavam mulher e crianças ainda pequenas –, entregara-se à bebida. Ali encontra Raskólnikov, um interlocutor com quem simpatiza e comparte o pensamento tão singelo quanto eloquente de que toda pessoa deve ter ao menos um lugar para onde ir: “… é preciso que qualquer um possa ir pelo menos a algum lugar. Porque há momentos em que é preciso ir pelo menos a algum lugar!”,[1] diz ele.
Vencido o trabalho, dobrado o estudo, desfrutado o lazer e, mesmo após não esvaída a bebedeira, todo indivíduo deveria ter um lugar para onde ir…
Indeléveis versos de João Cabral de Melo Neto denunciaram já as incontáveis vezes em que a busca por um tal lugar restou marcada pela tragédia: “Não é cova grande, é cova medida, é a terra que querias ver dividida”.[2]
Que lugar é esse, para o qual todo indivíduo deveria ter assegurado o direito de ir em busca de seu regaço? Haverá melhor sítio para tal desiderato que aquele concebido enquanto “asilo inviolável do indivíduo”, ao qual vedado o acesso de terceiros sem o consentimento do morador, a não ser em hipóteses manifestamente excepcionais?
A casa, assim consagrada no inciso XI do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, é o lugar para o qual todo indivíduo deveria ter assegurado o direito de ir.
Tal consideração, aplicada à realidade social, suscita múltiplas questões, que incluem desde a demanda social por moradia (CF/88, artigo 6º), passam pela análise do maior ou menor grau de intervencionismo estatal no que tange à sanha da especulação imobiliária, até as demandas individuais concernentes às diversas formas de aquisição da propriedade.
Aludida assim a dimensão de dignidade que a morada confere ao indivíduo, é preciso cuidar, entrementes, para que a realização de tal sonho não se transforme em fator de enorme desassossego.
Cumpre, pois, destacar que o presente artigo se dedica à análise de apenas um dos aspectos que revolve a aquisição da propriedade imobiliária e, mais especificamente, sua aplicação processual ante a necessidade de comparecimento ao Poder Judiciário: o contrato de promessa de compra e venda de imóvel, seu desfazimento e instrumentalização, enquanto título executivo extrajudicial, através de ação judicial de execução.
- Aspectos materiais do compromisso de compra e venda de imóvel e seu desfazimento
A mais tradicional forma de alienação da propriedade imobiliária se verifica pelo negócio jurídico de compra e venda.
Antes de se proceder à outorga da escritura de compra e venda de um imóvel e o consequente registro desse título translativo perante o Registro de Imóveis, é extremamente usual – notadamente quando pactuado o pagamento em parcelada forma – seja o negócio formalizado pela celebração de instrumento contratual de promessa de compra e venda de imóvel ou unidade imobiliária que, ao contrário do que mais apressadamente se poderia pensar, não se trata de contrato preliminar ou “contrato-promessa”, mas sim de contrato definitivo, haja vista que encerra já as declarações volitivas de vender e comprar, com todos os elementos concernentes ao ato,[3] que mais tarde serão objeto de mera reprodução na escritura definitiva de compra e venda.
A lei civil estabelece que, entre vivos, a propriedade imobiliária se transfere mediante o registro do título translativo perante o Registro de Imóveis (Código Civil, artigo 1.245). Não obstante, assegura ao promitente comprador direito real a sua aquisição mediante promessa de compra e venda, celebrada por instrumento público ou particular, registrado no Cartório de Imóveis, na qual não se tenha pactuado arrependimento (Código Civil, artigo 1.417).
Levar a registro o instrumento contratual de promessa de compra e venda resguarda o promitente comprador de uma série de possíveis inconvenientes. A partir do registro, “surge para o promitente comprador o direito real de aquisição do bem, alcançando qualquer pessoa estranha ao negócio jurídico”,[4] de tal sorte que, caso o promitente vendedor negocie o imóvel com terceiros ou mesmo se recuse a outorgar a escritura definitiva ao promitente comprador, poderá este, no primeiro caso, exercer o seu direito de sequela em relação a terceiros, reavendo o bem de quem quer que injustamente o possua ou detenha e, no segundo caso, mover a competente ação de adjudicação compulsória.
Noutro giro, o direito do promitente comprador do imóvel somente se constituirá enquanto direito real na medida em que o contrato de promessa de compra e venda for pactuado com a chamada cláusula de irrevogabilidade, o que significa a impossibilidade de cessão, promessa de cessão e/ou arrependimento, por qualquer das partes contratantes (Código Civil, artigo 1.417, c.c. artigo 1.225, inciso VII).
Sob a ótica do direito do consumidor, cremos que o primeiro aspecto a ser considerado respeita ao fato de que, em regra, o instrumento contratual de promessa de compra e venda de imóvel constitui exemplo por excelência de contrato de adesão. Ao assiná-lo, o promitente comprador simplesmente adere a cláusulas estabelecidas unilateralmente pelo promitente vendedor do imóvel (geralmente uma construtora ou incorporadora), sem que lhe seja franqueado discutir ou modificar, substancialmente, o seu conteúdo (Código de Defesa do Consumidor, artigo 42).
Como medida de restabelecimento do equilíbrio contratual entre as partes (se é que em algum momento se acharam os contratantes em posição de equivalência, razão pela qual preferível falar em uma medida legal de mitigação do desequilíbrio contratual), a lei assegura que as cláusulas contratuais, notadamente as de conteúdo ambíguo ou contraditório, sejam interpretadas de maneira mais favorável àquele que simplesmente a elas adere (Código Civil, artigo 423; Código de Defesa do Consumidor, artigo 47).
A aquisição de unidade imobiliária, no cenário da relação de consumo, é deveras relevante, por mais de uma razão:
- inicialmente, como registrado, pela interpretação mais favorável das cláusulas contratuais conferida ao promitente comprador;
- em segundo lugar, pelo direito potestativo que este possui, ainda que se encontre em situação de inadimplemento, de pedir o desfazimento do negócio e a restituição das quantias pagas, “admitida a compensação com gastos próprios de administração e propaganda feitos pelo compromissário vendedor, assim como com o valor que se arbitrar pelo tempo de ocupação do bem”, conforme entendimento consolidado na Súmula n.º 01 do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo;
- em terceiro lugar, porquanto a restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador tenha de se verificar de maneira imediata – “integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento” -, na esteira do entendimento sumulado pelo Superior Tribunal de Justiça (Súmula n.º 543).
No que respeita ao desfazimento do negócio, encontrando-se no âmbito de uma relação típica de consumo, pode o promitente comprador do imóvel notificar o promitente vendedor acerca de tal interesse,[5] entendendo-se como resilida a avença a partir da data de efetivo recebimento da notificação, que possui natureza receptícia, o que significa dizer que se perfaz apta a produzir efeitos de pleno direito a partir da data de seu recebimento.
Segundo entendemos, a cláusula de irrevogabilidade acima mencionada não obsta o exercício de tal direito pelo promitente comprador, mormente quando o próprio instrumento contratual contiver previsão autorizando o rompimento do vínculo por qualquer motivo, incluindo transação, distrato ou trânsito em julgado de decisão judicial (apesar de insólita tal previsão, conflitando com a cláusula de irrevogabilidade, não raro se verifica, na prática).
“Compromissos de compra e venda são resolúveis”, tem decidido o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ao admitir a denominada denúncia vazia ou imotivada do contrato,[6] anotando que “Embora, no comum das vezes, seja prevista cláusula de irretratabilidade no contrato, tratando-se de inequívoca relação de consumo, afigura-se abusiva a extirpação da possibilidade de arrependimento por parte do compromissário comprador”.[7]
III. O instrumento contratual de promessa de compra e venda de imóvel como título executivo extrajudicial e o aparelhamento da ação de execução
Sob o aspecto formal, indiscutível que o instrumento particular de promessa de compra e venda de imóvel, assinado pelas partes e por duas testemunhas, da mesma forma que aquele celebrado por instrumento público e igualmente assinado pelos contratantes, se afigura enquanto título executivo extrajudicial, ao teor dos incisos II e III do artigo 784 do Código de Processo Civil.
Substancialmente, para que se revele apto a conferir suporte seguro à propositura da ação de execução, o título executivo deve encerrar obrigação que se revista dos atributos de certeza, liquidez e exigibilidade (Código de Processo Civil, artigo 783).
Comumente, os contratos de promessa de compra e venda de imóvel especificam e delimitam as obrigações de ambas as partes, principais e acessórias, em linhas gerais assim sumariadas: para o promitente comprador, efetuar o pagamento devido com observância dos valores, prazos e formas pactuadas; para o promitente vendedor, efetuar a entrega do bem, revestido de todas as suas características, restituindo as quantias pagas por concreção da hipótese de rescisão contratual, descontadas aí multa e encargos contratuais, sendo que a identificação, de plano, deste conteúdo obrigacional, denota a necessária certeza da obrigação.[8]
Por seu turno, a liquidez obrigacional resulta da determinabilidade do seu conteúdo econômico, da possibilidade de, pelo próprio título executivo, extrair-se o quanto devido. Exatamente por isso, “Não perde liquidez a obrigação (…) se é preciso acrescentar encargos, como juros, correção monetária e multa, fixada no título, pois basta uma simples subtração ou adição para que se apure o montante”,[9] ao teor do disposto no parágrafo único do artigo 786 do Código de Processo Civil.
Já a exigibilidade prende-se à ausência de impedimento legal para que o credor busque a satisfação de uma obrigação vencida, não dependente de condição, termo ou outra limitação. E é precisamente sobre este último atributo que se tem apegado construtoras e incorporadoras imobiliárias no afã de frustrar o manejo da competente ação de execução.
Recentemente, tivemos oportunidade de atuar em relação processual na qual os promitentes compradores de duas unidades imobiliárias, insatisfeitos com significativa desvalorização patrimonial experimentada por decorrência do empreendimento, notificaram a construtora e promitente vendedora acerca da intenção de desfazer o negócio, sujeitando-se à devolução das quantias até então pagas, no prazo de 90 (noventa) dias, deduzida multa contratual no percentual de 20% (vinte por cento) sobre as parcelas adimplidas, tudo consoante previsões contratuais expressas.
Ocorre que, regularmente recebida a notificação rescisória e, esgotado o prazo para tanto previsto, a promitente vendedora não cuidou efetuar a restituição dos valores pagos, o que ensejou a propositura de ação de execução por quantia certa, pelos promitentes compradores, para que se cumprisse tal desiderato.
Os argumentos de defesa deduzidos por intermédio de embargos à execução consistiram em que o título executivo extrajudicial carecia de exigibilidade na medida em que seria supostamente necessário, anteriormente à propositura da ação de execução, o desfazimento do negócio mediante a celebração de distrato contratual ou decisão judicial transitada em julgado que acolhesse pedido de rescisão do contrato.
Em última análise, a promitente vendedora pretendia submeter os promitentes compradores a evento futuro e incerto, consistente na formalização de distrato contratual ao tempo que melhor lhe aprouvesse, ou então relegar-lhes à via de processo de conhecimento simplesmente para aí obterem o mesmo resultado já obtido dantes por ocasião do envio e recebimento da notificação rescisória.
A sentença proferida pelo MM. Juízo da 3ª Vara Cível da Comarca de São Paulo reputou clara a exigibilidade da obrigação cominada à promitente vendedora, de devolver aos promitentes compradores as prestações pagas, com dedução da multa contratual, no prazo avençado de 90 (noventa) dias, registrando não ser razoável impor-lhes uma espera para a rescisão contratual como fundamento para atrasar o pagamento devido.
Não é demais recordar que, enquanto o processo de conhecimento se orienta para resolver uma crise de certeza entre as partes, o processo de execução se perfaz vocacionado à resolução de uma crise de satisfação. Portanto, se o interesse do promitente comprador se circunscreve a exigir o cumprimento de uma obrigação contratual expressa, nada obsta o manejo direto da competente ação de execução lastreada no instrumento contratual de promessa de compra e venda de imóvel.
- Conclusão
Peculiaridades do caso concreto poderão ditar a necessidade de o promitente comprador do imóvel acionar o Poder Judiciário mediante a propositura de ação de conhecimento, caso a pretensão a ser deduzida se ache atrelada à revisão de cláusula reputada abusiva, à recomposição do equilíbrio econômico-financeiro contratual, à rescisão contratual em si (caso esta se afigure dependente da demonstração de inadimplemento culposo de alguma obrigação a cargo do promitente vendedor) ou a qualquer outro aspecto relacionado a uma crise de certeza.
Se, por outro lado, o vínculo negocial puder ser resolvido por iniciativa direta do promitente comprador, mormente no âmbito de uma relação de consumo, seja pelo exercício do direito de arrependimento, seja porque o instrumento contratual autorize o desfazimento do vínculo por qualquer outro motivo, bastará seja o promitente vendedor notificado, expressamente, acerca da pretensão resolutória, servindo a ação de execução para que seja satisfeita qualquer obrigação remanescente, à qual não faltará exigibilidade na medida em que não sujeita a qualquer cláusula condicionante de eficácia do negócio.
* Especialista em Direito Constitucional pela PUC-SP e advogado associado do escritório Harada Advogados Associados.
[1] Essa uma das cenas iniciais da célebre obra de Fiódor Dostoiévski, Crime e castigo (São Paulo: Ed. 34, 2001, p. 28-43. Tradução, prefácio e notas de Paulo Bezerra).
[2] Morte e vida severina; e, Outros poemas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007, p. 108.
[3] NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado. 7. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 1.061.
[4] HAJEL, Flávia Nassif Jorge. In: Código civil interpretado: artigo por artigo, parágrafo por parágrafo. MACHADO, Antônio Cláudio da Costa (org.); CHINELLATO, Silmara Juny (coord.). 2. ed. Barueri, SP: Manole, 2009, p. 1.114.
[5] Neste particular, dispõe o artigo 473 do Código Civil que “A resilição unilateral, nos casos em que a lei expressa ou implicitamente o permita, opera mediante denúncia notificada à outra parte”.
[6] Apelação n.º 1014105-63.2016.8.26.0564, 7ª Câmara de Direito Privado, Relator Desembargador Luiz Antonio Costa, Julgamento: 12/04/2017.
[7] Apelação n.º 0008973-55.2011.8.26.0002, 9ª Câmara de Direito Privado, Relator Desembargador Mauro Conti Machado, Julgamento: 08/03/2016.
[8] Consoante lição de Alexandre Freitas CÂMARA, “Por certeza do direito deve-se entender a necessidade de que do título executivo transpareça a definição de seus elementos. Seria, assim, certo o direito se definida a natureza da relação jurídica e de seu objeto.” (Lições de direito processual civil. 19. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 199, v. II).
[9] GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Direito processual civil esquematizado. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 730.