Advogado integrante da Harada Advogados Associados
Camarada Maiakóvski, permita-me apresentar:
sou cidadão brasileiro e preciso lhe falar!
Minha forma não é cubista, nunca fui a Moscou;
apologético czarista, folga-te que não sou.
Só o que necessitas saber é o que lhe vou adiantar:
sou um infeliz credor de precatório alimentar.
Não furto linhas alheias, não cometo peculato;
nada devo a credores, muito mo deve o Estado.
Se te foras dura a resenha com o cidadão fiscal de rendas,[2]
pena causar-te-á ouvir de precatórios e gregas calendas.
Imagina-te numa fila, com uma senha na mão;
no papel está escrito: “Devo, não lho nego não.”
Gritam, lá pra frente: “Receberão todos, segundo ordem cronológica!”
Lá pra trás murmuram: “Matar-te-á a espera, na fila teratológica…”.
Com um decênio de atraso chego, então, à fila inglória.
Café e rosquinhas me oferecem, em troca de moratória.
Um pregoeiro me aborda, propondo-me um leilão:
“Negociando braços e pernas, pagam-te de antemão”.
Decanta-me outro, aos ouvidos, direta negociação:
“O Leviatã te receberá em pessoa, cidadão;
uma pouca de dignidade sua inclusa na alienação,
acerta-se um deságio médio e está garantido o pão.
Mete-se logo, obreiro amigo, nesse excreto de acordo direto,
ou aguarda que te venha aqui buscar algum seu tataraneto”.
Confesso-te: esmoreceram aqui minhas pernas, camarada;
acabou-se o café, as rosquinhas, a fila andou minguada.
Enquanto ao lado cogitavam um remendo constitucional,
riam-se, na choldra, os juros, superando o principal.
Quem pagará por isso, senão o combalido Estado?
Mas este não sou eu, você, o empregador e o proletariado?
Precatório, eu, uma vela acenderei, num pires de louça crestado.
Congelará antes a vodca, camarada, de o precatório ser quitado?
SP, agosto de 2017.
[1] Vladímir Maiakóvski (1893-1930), como escreveu Haroldo de Campos, “é o maior poeta russo moderno, aquele que mais completamente expressou, nas décadas em torno da Revolução de Outubro, os novos e contraditórios conteúdos do tempo e as novas formas que estes demandavam” (Maiakóvski. Poemas. 7. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2006). Coincidentemente, neste 2017, completa 100 anos a conhecida Revolução Russa.
[2] Em 1926, Maiakóvski escreveu o poema “Conversa sobre poesia com o fiscal de rendas”, no qual aborda o papel do poeta na sociedade proletária e questiona a exação fiscal que se impunha então à atividade literária. Dentre outras coisas, a poesia e sua matéria-prima (a “palavra-prima”) não poderiam ser equiparadas a outras matérias e mercadorias objeto da tributação estatal.