Decreto das armas e o regulamento do direito à legítima defesa

Adilson-Dallari

Por Adilson Abreu Dallari

 30 de maio de 2019

 

Um dos assuntos mais comentados na imprensa, nos dias de hoje, é o Decreto nº 9.785, de 07/05/19, que regulamenta a Lei nº 10.896/2003, conhecida como Estatuto do Desarmamento. Essa designação é bastante equivocada, pois, como se sabe, na prática, essa legislação não desarmou a bandidagem e, desde sua edição, a criminalidade violenta só aumentou. O decreto agora emitido, regulamentando a referida lei, merece ser designado como Regulamento do Direito à Legítima Defesa, pois é disso que se trata.

A legítima defesa, além de ser um instinto básico elementar, é também um direito natural e, principalmente, um direito constitucional explícito. Com efeito, a Constituição Federal, ao garantir a segurança, a propriedade, a incolumidade pessoal, a inviolabilidade do domicílio e a dignidade da pessoa humana, implicitamente está assegurando os meios para que todas essas garantias possam ser efetivas.

Numa perspectiva estritamente jurídica, é certo que o Poder Público não pode criar restrições à liberdade individual senão na medida do estritamente necessário para proteger um interesse público, da coletividade. Atenta contra a ordem jurídica criar uma proibição sem correspondência com um interesse geral e que, ao contrário, dificulta ou impede a plenitude de direitos fundamentais expressamente garantidos. Nem se diga que, para isso existe a Segurança Pública, pois é óbvio que a polícia não pode estar em todos os lugares 24 horas por dia e que, nos termos do Art. 144 da CF, é dever de todos colaborar com os órgãos de segurança pública. Não por acaso, uma das atividades econômicas de grande importância e que qualquer pessoa pode perceber no dia a dia, é a segurança privada, cujo volume é de um verdadeiro exército, em operação diuturna no país inteiro.

A impropriamente chamada Lei do Desarmamento criou uma insuportável divisão entre brasileiros, na medida em que estabeleceu uma proibição geral, universal, da posse e do porte de armas, salvo para algumas pessoas, por ela especialmente contempladas. Mas essa proibição geral estava condicionada ao resultado de um referendo popular, conforme disposto em seu Art. 35, que se transcreve: “Art. 35. É proibida a comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional, salvo para as entidades previstas no art. 6o desta Lei. §1o Este dispositivo, para entrar em vigor, dependerá de aprovação mediante referendo popular, a ser realizado em outubro de 2005”. Essa proibição geral foi rejeitada pelo povo brasileiro, mas o resultado da consulta pública foi totalmente ignorada pelo governo federal e, principalmente, pelo Supremo Tribunal Federal.

Já tivemos oportunidade de discorrer, amplamente e fundamentadamente, sobre a inconstitucionalidade do desarmamento da população civil em artigo publicado neste mesmo informativo jurídico. Dessa publicação cabe transcrever um pequeno trecho, que se aplica totalmente aos questionamentos feitos ao recente Decreto presidencial: “A proibição de comercialização, objeto do referendo, estava umbilicalmente e incontestavelmente ligada à proibição geral de posse e porte de arma de fogo. Num simples exercício de lógica formal, fica claro que, uma vez derrubada a proibição de comercialização, não tinha sentido algum manter a proibição geral de posse e porte. Ou seja: entendem maliciosamente alguns que o referendo liberou a comercialização: vender pode, mas ninguém poderia comprar armas de fogo, salvo aqueles brasileiros mais iguais que os outros, comtemplados nas exceções constantes da lei”.[1]

Note-se, portanto, que o antigo regulamento da Lei nº 10.826/2003 foi elaborado com base numa suposta proibição geral de aquisição, posse e porte de armas, cuidando, basicamente, do exercício desses direitos apenas pelos privilegiados. O Decreto nº 9.785, de 07/05/19, regulamenta a mesma lei, mas com uma perspectiva completamente diferente e totalmente de acordo com o resultado do Referendo de 2005, dispondo sobre o exercício daqueles mesmos direitos por toda a população, acabando com a casta dos detentores exclusivos do direito à legítima defesa. É imprescindível que a constitucionalidade desse Decreto seja examinada sem preconceitos e sem a manipulação de estatísticas. A trágica realidade é que os índices de criminalidade violenta no Brasil são indecentes e que a sensação de insegurança pessoal é generalizada na sociedade.

Evidentemente, armas não matam. Matar, ou não, depende de quem tem a posse e faça uso de qualquer arma. Mais que isso, as armas não foram feitas primordialmente ou principalmente para matar, mas, sim para evitar a violência. Desde Roma antiga já se dizia: si vis pacem, para bellum; ou seja, se você quer a paz, prepare-se para a guerra. Isso significa, e sempre significou, que a função primordial das armas é a dissuasão. A criminalidade violenta aumentou exponencialmente no Brasil, desde a edição do famigerado Estatuto do Desarmamento, porque essa lei assegurou aos criminosos que as vítimas estariam desprotegidas, funcionando, na prática, como uma lei de estímulo ao crime.

Já é mais do que tempo de se perceber que a interpretação da Lei nº 10.826/2003 deve amoldar-se à realidade emergente. Ela deve ser interpretada, de maneira evolutiva, para que cumpra efetivamente seu papel de instrumento de dissuasão, amoldando-se melhor às garantias constitucionais acima referidas. A doutrina exalta a necessidade da interpretação constitucional evolutiva: “Por fim, mas não menos importante, é de se destacar que a norma jurídico-constitucional é o resultado do trabalho de interpretação. Para que se consiga chegar a ela, é preciso saber como pode (deve) ser interpretado o texto da Constituição. Porém, a interpretação constitucional não é tarefa mecânica e abstrata, como se o sentido e o alcance da norma pudessem ser revelados por meio da aplicação de uma sequência predefinida de técnicas formais – independentemente de sua materialidade e papel desempenhado no respectivo espaço-tempo. Mais: a interpretação/aplicação constitucional não é nem declaratória nem estática, mas sim constitutiva, que sempre precisa evoluir e se transformar”.[2]

Novamente recorrendo à doutrina, cabe lembrar a importantíssima lição do inesquecível Geraldo Ataliba, no sentido da absoluta necessidade de que a interpretação de qualquer norma jurídica seja feita de maneira sistemática: “Qualquer proposta exegética objetiva e imparcial, como convém a um trabalho científico, deve considerar as normas a serem estudadas, em harmonia com o contexto geral do sistema jurídico. Os preceitos normativos não podem ser corretamente entendidos isoladamente, mas, pelo contrário, haverão de ser considerados à luz das exigências globais do sistema, conspicuamente fixadas em seus princípios”.[3]

Em síntese, a apreciação da Constitucionalidade do Decreto nº 9.785, de 07/05/19, não deve ser feita apenas em face da literalidade dos termos da lei por ele regulamentada, mas, sim, com a noção de que a própria norma legal deve ser interpretada em consonância com os direitos e garantias fundamentais afirmados pela Constituição. É sob essa perspectiva que se insiste em dizer que o Decreto em questão não é apenas o regulamento de uma lei isolada, mas, sim, é, verdadeiramente, o Regulamento do Direito à Legítima Defesa.

 

 

[1] CONJUR, Interesse Público, “Lei do Desarmamento estabeleceu terrível distinção entre brasileiros”, 17 de maio de 2018

[2] EGON BOCKMANN MOREIRA, “Exploração Privada dos Portos Brasileiros: Concessão Versus Autorização”, in Revista de Direito Administrativo Contemporâneo, Ano 1, maio-junho, Revista dos Tribunais, 2013, p.33

[3] GERALDO ATALIBA, “República e Constituição”, RT, 1985, p. 152

 

Adilson Abreu Dallari é professor titular de Direito Administrativo pela PUC-SP e consultor jurídico. Revista Consultor Jurídico, 30 de maio de 2019, 8h00

 

 

Relacionados