Sumário: 1 Introdução. 2 Exame da Pec 438/01.
1 Introdução
Dentro do movimento nacional e internacional de preservação e valorização da dignidade humana, o nosso País, a partir de 2012, foi tomado por edições de medidas legislativas de combate ao trabalho semelhante ao de escravo nas três esferas políticas, gerando dúvidas e incertezas para a sociedade em geral pelas graves sanções previstas a serem aplicadas sem a observância do devido processo legal.
Na área penal transitam diversos projetos de lei no Congresso Nacional alterando o art. 149 do CP para melhor qualificar a conduta consistente na “redução a condição análoga à de escravo” encampando a conceituação adotada pela convenção nº 29 da Organização Internacional do Trabalho.
Na esfera da administração tributária dos Estados e dos Municípios há leis e projetos legislativos prevendo pena de cassação da inscrição cadastral de empresa onde tenha constatada a aquisição de produtos fabricados com o emprego de mão de obra semelhante à de escravo. Na esfera do Município de São Paulo projeto semelhante foi apresentado, prevendo a pena de cassação do alvará de funcionamento da atividade econômica exercida. Nenhuma dessas propostas legislativas definem o que seja trabalho semelhante ao de escravo.
No âmbito da União vigora a Portaria Interministerial de nº 2, de 12 de maio de 2011, que disciplina a inclusão do nome do empregador no Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo, a chamada “lista suja.” E a Instrução Normativa de nº 91, de 5 de outubro de 2011, dispõe sobre a fiscalização para erradicação do trabalho em condição análoga à de escravo podendo resultar na aplicação de sanções de diferentes tipos, como bloqueio de financiamentos, vedação de contratar operações de exportação, suspensão de suas operações etc. inviabilizando o prosseguimento das atividades empresariais.
Os vícios formais e materiais desses instrumentos normativos são visíveis, porém, do ponto de vista político é bem difícil a propositura de uma ação de natureza coletiva, porque, bem ou mal, eles objetivam combater o emprego de mão de obra degradante para o ser humano. E a defesa da dignidade do homem está na pauta de preocupação do mundo inteiro.
2 O exame da Pec nº 438/01
Dentro desse quadro retratado no item anterior o Senado Federal iniciou a discussão no ano de 2013 da PEC nº 438/01 que mediante alteração do art. 243 da CF inclui a desapropriação sem pagamento de qualquer tipo de indenização de propriedades rural ou urbana onde forem constatada a exploração de trabalho escravo, conforme texto abaixo transcrito:
“Art. 1º O art. 243 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação:
Art. 243. As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º.
Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho escravo será confiscado e reverterá a fundo especial com a destinação específica, na forma da lei. (NR)
Art. 2º Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data da sua publicação.”
Para exame da Proposta de Emenda quanto à sua constitucionalidade sob o aspecto legislativo e material convém lembrar a regra inserta no inciso IV, do § 4º, do art. 60 da CF referente a direitos e garantias individuais.
A Emenda pode alterar ou acrescer qualquer dispositivo constitucional salvo adentrar no núcleo protegido por cláusulas pétreas, constituído pelo elenco nominado no citado § 4º, do art. 60: I – forma federativa de Estado; II – o voto direto, secreto, universal e periódico; III – a separação dos poderes; IV – os direitos e garantias individuais.
Não cabe a deliberação de proposta de emenda tendente a abolir qualquer uma das matérias elencadas nos incisos I a IV do citado § 4º, do art. 60 da CF. Qualquer proposta de emenda, além de observar os requisitos previstos no caput do art. 60 da CF não poderá adentrar nas matérias protegidas por cláusulas pétreas.
O poder de alterar, de emendar é um poder subalterno que não se confunde com o de constituir, próprio do legislador constituinte originário que detém o poder limitado e inaugural ressalvados apenas aqueles limites de natureza metajurídico.
O Poder Constituinte Derivado Reformador ou o Poder de Revisão, ao revês, deve obediência ao processo legislativo estabelecido pela Constituição em seu art. 60, vedada a deliberação sobre matérias elencadas no seu § 4º.
Assim, no caso, incumbe verificar se o direito de propriedade a ser extinto pela forma preconizada na PEC sob análise configura ou não um direito individual protegido por cláusula pétrea.
Os direitos individuais, também conhecidos como direitos fundamentais do homem representam a delimitação de uma área de atuação autônoma do indivíduo, onde ao Estado não é dado intervir. Nessa área delimitada o Estado só pode atuar negativamente. Por isso, direitos fundamentais não são apenas aqueles enumerados no art. 5º da CF como, aliás, ressalvados no seu § 2º. Tudo que representar um ‘NÃO’ contra o poder político do Estado configura direito fundamental. Essas noções são pacíficas na doutrina e na jurisprudência.
Feitos esses esclarecimentos preliminares transcrevamos os textos constitucionais envolvidos no exame desta matéria:
art. 5º, XXII: é garantido o direito de propriedade;
art. 5º, XXIII: a propriedade atenderá a sua função social;
art. 5º, XXIV: a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição;
art. 170: A ordem econômica, fundada valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
III – função social da propriedade;
Art. 184: Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei;
Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
…
III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores;
Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes.
§ 4º – É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:
I – parcelamento ou edificação compulsórios;
II – imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;
III – desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.
Verifica-se dos textos retro transcritos que a propriedade privada insere-se no âmbito dos direitos fundamentais. Contudo, a garantia dessa propriedade não é absoluta. Aliás, não existem direitos absolutos.
A própria Constituição ressalva as hipóteses de desapropriação por necessidade ou utilidade pública mediante o pagamento prévio da justa indenização (art. 5º, XXIV da CF). Portanto, o caráter perpétuo da propriedade não mais subsiste no nosso ordenamento jurídico.
Outrossim, a Constituição introduziu a função social como fundamento do regime jurídico da propriedade (arts. 5º, XXII e 170 inciso III) que difere do sistema de limitação da propriedade, conforme exposto no item 1.5.2. A propriedade privada sofreu, pois, transformação em seu regime jurídico passando a atrelar-se ao conceito de justiça social, força orientadora dos atos humanos para a realização do bem comum, no entender da doutrina social da Igreja.
Tanto é que descumprida a função social a propriedade privada poderá ser desapropriada por interesse social para fins de reforma agrária mediante pagamento prévio da justa indenização em títulos da dívida agrária, resgatáveis no prazo de até vinte anos (art. 184 da CF).
Na hipótese de o proprietário de imóvel urbano descumprir a função social da cidade, mantendo-a ociosa ou de forma subutilizada poderá sofrer a desapropriação mediante o pagamento da prévia e justa indenização em títulos da dívida pública aprovada pelo Senado Federal para resgate no prazo de dez anos (inciso III, do § 4º, do art. 182 do CF). Nessa hipótese, a desapropriação deverá ser precedida de duas medidas tendentes ao comprimento das funções sociais: (a) parcelamento do solo ou edificação conforme o caso; (b) lançamento do IPTU progressivo no tempo até a aplicação da alíquota máxima de 15%. Somente fracassadas essas duas medidas é que surgirá para o Município a faculdade de desapropriação nos termos antes anunciados.
Em todas essas hipóteses de desapropriação há pagamento prévio da justa indenização em dinheiro, ou em títulos da dívida agrária ou da dívida pública, conforme o caso.
Tanto a propriedade que cumpre a função social como a que não cumpre essa função social não pode sofrer confisco. Apesar de a função social configurar fundamento do regime jurídico da propriedade a sua inobservância, por si só, não permite o confisco da propriedade.
A única hipótese de desapropriação sem pagamento de indenização (em dinheiro ou em títulos públicos) refere-se à propriedade rural nociva, isto é, aquela onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas (art. 243 da CF). No caso, a gleba desapropriada será destinada a assentamento de colonos, para o cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos. O cultivo de plantas para produção de produtos medicamentosos poderá envolver o plantio de plantas psicotrópicas. Porém, nesse caso não se tratará de plantação ilegal, mas de plantio autorizado pelo Poder Público competente.
A proposta da Emenda sob exame estendeu a desapropriação à área urbana mediante alteração da redação do art. 243 da CF inserindo a expressão “ou a exploração de trabalho escravo” e destinando a propriedade desapropriada “à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização do proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º.”
A proposta de Emenda contém vícios formal e material incontornáveis, pois, apesar de determinar a observância no que couber do art. 5º da CF onde está assegurado o direito de propriedade com as restrições desenhadas pelo legislador constituinte original, o novo texto a ser aprovado permite o confisco da propriedade urbana ou rural, ultrapassando os limites das ressalvas ao direito de propriedade assegurado em nível de cláusula pétrea.
Ora, o Poder Constituinte Derivado Reformador não tem o poder de alterar os limites da garantia constitucional da propriedade fixados pelo Poder Constituinte Originário. Em matéria que implica agravamento das restrições ao direito de propriedade o Poder Constituinte Derivado Reformador sequer tem competência para deflagrar o processo legislativo de emenda.
Ainda que se considere válida a nova redação que se pretende conferir ao art. 243 da CF a desapropriação aí referida dependerá de lei ordinária prescrevendo o regime jurídico da desapropriação, bem como definindo o que se entende por trabalho escravo. Salvo melhor juízo não é suficiente a tipificação prevista no art. 149 do CP “reduzir alguém a condição análoga à de escravo”, ou a definição de trabalho forçado ou obrigatório a que alude a Convenção nº 29 da OIT ratificado pelo nosso País em 25-4-1957.
O termo “trabalho escravo” é amplo. A fixação de seu alcance e conteúdo não pode ficar a critério subjetivo do aplicador da lei. A lei deverá definir com clareza o significado exato do trabalho escravo como condição para a desapropriação sem pagamento de qualquer espécie de indenização que, como antes afirmamos, não pode ser introduzida por meio de Emenda Constitucional.