Desequilíbrio das contas públicas

Fala-se muito em desequilíbrio orçamentário. Preconizam-se inúmeras medidas que vão desde proposta de reforma tributária até programas de ajustes fiscais mediante cortes de despesas e aumento de receitas.

A proposta de reforma tributária nunca saiu do papel, porque a União não abre mão da fatia de 60% de participação no bolo tributário. Só uma Assembleia Nacional Constituinte poderá implementar essa reforma por meio de uma redefinição do pacto federativo no que tange à repartição das receitas derivadas.

O programa de ajuste fiscal, por sua vez, só tem funcionado efetivamente pelo lado do aumento da arrecadação tributária.

A diminuição de despesas públicas só tem ficado no discurso. Mais do que isso, na prática, a cada anúncio de corte de despesas segue-se a sua expansão, concentrada invariavelmente nos gastos com o pessoal. Dessa forma, órgãos, secretarias e ministérios sobrepostos gastam o grosso dos recursos em sua atividade-meio resultando em serviços públicos precários e ausência de investimentos em infraestrutura para assegurar o desenvolvimento econômico.

O art. 169 da CF manda observar os limites fixados em lei complementar a título de despesa com pessoal. E o art. 20 da Lei Complementar nº 101/00 – Lei de Responsabilidade Fiscal – fixou os seguintes limites:

  1. União: 50% da receita corrente líquida;[1]
  2. Estados: 60% da receita líquida;
  3. Municípios: 60% da receita corrente líquida.

É uma fábula de dinheiro público para azeitar a máquina pública que anda emperrada. Ninguém procurou investigar a causa ou as causas dessa pública e a notória ineficiência do serviço público, na contramão do que está proclamado no art. 37 da CF. Some-se a isso o nosso comprometimento com o serviço da dívida que atualmente beira a 67% do PIB, cerca de 3,3 trilhões.

Daí porque deduzidas as despesas com pessoal e os pagamentos dos juros da dívida pública pouca coisa resta para investimentos de que necessita o País, para assegurar o crescimento econômico indispensável, senão para a melhoria da qualidade de vida, pelo menos para manter o atual padrão que já não é bom para a sociedade em continuo crescimento demográfico. Ficar atirando a esmo, sem identificar as causas, não leva a lugar algum.

A causa primeira está no gasto excessivo com pessoal, 50% e 60% da receita corrente líquida, respectivamente, para a União e Estado/ Municípios. O pior é que esses percentuais são frequentemente superados porque os limites de despesas por Poder, que estão especificados no art. 20 da LRF, não veem sendo respeitados.

E porque não veem sendo cumpridos? Porque a Constituição contém um dispositivo que esvazia o objetivo principal da LRF, que é o de promover uma gestão fiscal responsável, não permitindo o desequilibro das contas públicas, como adiante veremos. Para isso a LRF previu inúmeros mecanismos de controle e fiscalização da execução orçamentária. Citemos um desses mecanismos previsto no art. 9º nos seguintes termos:

“Art. 9º Se verificado, ao final de um bimestre, que a realização da receita poderá não comportar o cumprimento das metas de resultado primário ou nominal estabelecidas no Anexo de Metas Fiscais, os Poderes e o Ministério Público promoverão, por ato próprio e nos montantes necessários, nos trinta dias subsequentes, limitação de empenho e movimentação financeira, segundo os critérios fixados pela lei de diretrizes orçamentárias.

  • 1º No caso de restabelecimento da receita prevista, ainda que parcial, a recomposição das dotações cujos empenhos foram limitados dar-se-á de forma proporcional às reduções efetivadas.
  • 2º Não serão objeto de limitação as despesas que constituam obrigações constitucionais e legais do ente, inclusive aquelas destinadas ao pagamento do serviço da dívida, e as ressalvadas pela lei de diretrizes orçamentárias.
  • 3º No caso de os Poderes Legislativo e Judiciário e o Ministério Público não promoverem a limitação no prazo estabelecido no caput, é o Poder Executivo autorizado a limitar os valores financeiros segundo os critérios fixados pela lei de diretrizes orçamentárias. (Vide ADIN 2.238-5)
  • 4º Até o final dos meses de maio, setembro e fevereiro, o Poder Executivo demonstrará e avaliará o cumprimento das metas fiscais de cada quadrimestre, em audiência pública na comissão referida no § 1º do art. 166 da Constituiçãoou equivalente nas Casas Legislativas estaduais e municipais”.

As disposições do art. 9º não têm aplicação em relação aos Poderes Legislativo e Judiciário e, também, em relação ao Ministério Público e a Defensoria Pública, por força do disposto no art. 168 da CF:

“Art. 168. Os recursos correspondentes às dotações orçamentárias, compreendidos os créditos suplementares e especiais, destinados aos órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública, ser-lhes-ão entregues até o dia 20 de cada mês, em duodécimos, na forma da lei complementar a que se refere o art. 165, § 9º” (Redação da EC 45/2004).

Os Poderes e os órgãos referidos nesse art. 168 têm seus recursos financeiros liberados em forma de duodécimos em todo dia 20 do mês, calculados sobre as verbas respectivas consignadas na Lei Orçamentária Anual – LOA. Pouco importa que pelo exame do balancete mensal a receita ficou aquém do estimado, ou que pelo exame do relatório bimestral da execução orçamentária, constatou-se que a realização de receita poderá não possibilitar o cumprimento das metas de resultado primário ou nominal. O repasse deve ser feito automaticamente a cada dia 20 do mês, porque assim determinado na norma constitucional, que paira acima das normas da LRF.

Há, pois, evidente conflito entre o objetivo principal perseguido pela LRF e o preceito constitucional do art. 168, que tem força de um orçamento impositivo, e não de um orçamento meramente autorizativo que resulta do exame sistemático das normas dos arts. 165 a 169 da CF. As hipóteses do art. 168 são excepcionais.

Só que a exceção do art. 168 da CF foi estendida pela EC nº 86/15 prescrevendo a liberação de recursos financeiros vinculados a verbas incluídas na LOA por meio de emendas parlamentares, limitadas a 1,2% da receita corrente líquida.

Assim, os parlamentares se beneficiam duplamente do excepcional caráter impositivo do orçamento. Nessa batalha de salve-se quem puder, quem não for membro de um dos Poderes acaba pagando a conta dos desarranjos administrativos e financeiros do Estado.

Ora, o orçamento não pode ser impositivo para uns e meramente autorizativo para outros. O princípio da isonomia determina a distribuição igualitária dos benefícios e do ônus, observado, é claro, o tratamento isonômico entre os iguais e tratamento diversificado entre os desiguais. Com os tributos acontece a mesma coisa. Hoje surgem até dúvidas para saber se a regra geral é a tributação, ou se é a não tributação, tamanho o número de incentivos fiscais que proliferam na legislação tributária das três esferas políticas: imunidade objetiva, imunidade subjetiva, imunidade recíproca, esta estendida para bens, serviços e negócios de empresas estatais, isenções objetivas e subjetivas, não incidência, redução de alíquota, redução da base de cálculo, concessão de crédito fiscal ou financeiro, isenção de peles de animais sem pelo, de produtos personalizados de “n” formas diferentes, de veículos até x cilindradas, de componentes de equipamentos de informática que atenda as especificações detalhadas com requintes de personalização etc. Agentes econômicos ligados a membros de Poder conseguem transferir o encargo tributário para outros sem proteção política, gerando um sistema tributário injusto, inseguro, burocrático e caótico que acaba afastando o nosso País do mercado de concorrência internacional, pois só para cumprir todas as obrigações tributárias, o contribuinte brasileiro gasta anualmente 2.600 horas. Não é por acaso o rebaixamento do Brasil no ranking mundial de competitividade perdendo no âmbito do Brics para a África do Sul e na esfera da América Latina, para o México.

Tudo isso vem acontecendo em frontal violação aos princípios da generalidade e da universalização da tributação.

Conclusão: se não eliminarmos a causa ou as causas do déficit sistemático das finanças públicas todo “esforço” governamental não passará de um paliativo. É como tentar agilizar a atuação do Poder Judiciário com elaboração de normas processuais sofisticadas de última geração, sem atentar para o fato de que cada pessoa que nasce é um litigante em potencial. Nem decuplicando o orçamento do Poder Judiciário, o problema do congestionamento do serviço público de administração da Justiça se resolverá. O problema é de ordem cultural, e não financeira. É preciso mudar a cultura do povo, responsável maior de todos os males.

 

* Jurista, com 31 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

 

[1] Somatório das receitas tributárias, patrimoniais, industriais, agropecuárias, de serviços e transferências correntes e outras receitas correntes, deduzidos os valores das transferências determinadas na CF.

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