Difal. Uma grande controvérsia sem sentido. Desde o advento da Lei Complementar nº 190, de 4-1-2022, instaurou-se uma grande controvérsia em torno da data de sua aplicação: dia 1-4-2022, data da publicação da citada lei complementar, ou, dia 1º-1-2023 em respeito ao princípio da anterioridade (art .150, III, b da CF).
Coisas óbvias, às vezes, precisam ser recapituladas. O princípio de anterioridade só tem aplicação nas hipóteses de instituição ou majoração de tributos segundo a dicção constitucional:
“Art. 150 … é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
[….]
III – cobrar tributos:
[…]
b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou;”
Assim, cumpre verificar se a LC nº 190/2022 instituiu um novo ICMS, ou seja, nova hipótese de incidência desse imposto, ou implicou sua majoração.
Ao invés de examinar o texto dessa lei complementar elaborado pelo confuso legislador ordinário que enxertou matéria estranha representada pelo seu 3º, é melhor examinar o cristalino texto constitucional do inciso VII, do § 2º, do art. 155 da Constituição:
“VII – nas operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final, contribuinte ou não do imposto, localizado em outro Estado, adotar-se-á a alíquota interestadual e caberá ao Estado de localização do destinatário o imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna do Estado destinatário e a alíquota interestadual;”
Como se verifica, esse inciso VII limitou-se a regular relações jurídicas entre entes da Federação, nada tendo a ver com os contribuintes.
Trata-se de matéria abrangida pelo Direito Financeiro que é o ramo de Direito Público que estuda a atividade financeira do Estado, sob o prisma jurídico, tendo por objeto a receita pública, a despesa pública, o orçamento público e o crédito público. Nenhuma relação tem com o sujeito passivo do tributo.
Por outro lado, Direito Tributário é o ramo do direito público que rege as relações substanciais e processuais entre o fisco e o contribuinte.
Ora, a LC nº 190/2020, que veio à luz para regular o inciso VII, do § 2º do art. 155 da CF, por exigência do STF, porque implica alteração do sujeito ativo do ICMS (art. 146, III, a da CF), não estabeleceu qualquer tipo de relação jurídica entre o fisco e o contribuinte, apesar da confusa e prolixa redação conferida:
“Art. 1º A Lei Complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996 (Lei Kandir), passa a vigorar com as seguintes alterações:
“Art. 4º …………………………………………………………………………………………….
§ 1º ………………………………………………………………………………………………….
§ 2º É ainda contribuinte do imposto nas operações ou prestações que destinem mercadorias, bens e serviços a consumidor final domiciliado ou estabelecido em outro Estado, em relação à diferença entre a alíquota interna do Estado de destino e a alíquota interestadual:
I – o destinatário da mercadoria, bem ou serviço, na hipótese de contribuinte do imposto;
II – o remetente da mercadoria ou bem ou o prestador de serviço, na hipótese de o destinatário não ser contribuinte do imposto.” (NR)
“Art. 11. ……………………………………………………………………………………..
………………………………………………………………………………………………….
II – ……………………………………………………………………………………………..
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c) (revogada);
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V – tratando-se de operações ou prestações interestaduais destinadas a consumidor final, em relação à diferença entre a alíquota interna do Estado de destino e a alíquota interestadual:
a) o do estabelecimento do destinatário, quando o destinatário ou o tomador for contribuinte do imposto;
b) o do estabelecimento do remetente ou onde tiver início a prestação, quando o destinatário ou tomador não for contribuinte do imposto.
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§ 7º Na hipótese da alínea “b” do inciso V do caput deste artigo, quando o destino final da mercadoria, bem ou serviço ocorrer em Estado diferente daquele em que estiver domiciliado ou estabelecido o adquirente ou o tomador, o imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna e a interestadual será devido ao Estado no qual efetivamente ocorrer a entrada física da mercadoria ou bem ou o fim da prestação do serviço.
§ 8º Na hipótese de serviço de transporte interestadual de passageiros cujo tomador não seja contribuinte do imposto:
I – o passageiro será considerado o consumidor final do serviço, e o fato gerador considerar-se- á ocorrido no Estado referido nas alíneas “a” ou “b” do inciso II do caput deste artigo, conforme o caso, não se aplicando o disposto no inciso V do caput e no § 7º deste artigo; e
II – o destinatário do serviço considerar-se-á localizado no Estado da ocorrência do fato gerador, e a prestação ficará sujeita à tributação pela sua alíquota interna.” (NR)
“Art. 12. …………………………………………………………………………………….
………………………………………………………………………………………………….
XIV – do início da prestação de serviço de transporte interestadual, nas prestações não vinculadas a operação ou prestação subsequente, cujo tomador não seja contribuinte do imposto domiciliado ou estabelecido no Estado de destino;
XV – da entrada no território do Estado de bem ou mercadoria oriundos de outro Estado adquiridos por contribuinte do imposto e destinados ao seu uso ou consumo ou à integração ao seu ativo imobilizado;
XVI – da saída, de estabelecimento de contribuinte, de bem ou mercadoria destinados a consumidor final não contribuinte do imposto domiciliado ou estabelecido em outro Estado.
………………………………………………………………………………………………….” (NR)
“Art. 13. ……………………………………………………………………………………..
………………………………………………………………………………………………….
IX – nas hipóteses dos incisos XIII e XV do caput do art. 12 desta Lei Complementar:
a) o valor da operação ou prestação no Estado de origem, para o cálculo do imposto devido a esse Estado;
b) o valor da operação ou prestação no Estado de destino, para o cálculo do imposto devido a esse Estado;
X – nas hipóteses dos incisos XIV e XVI do caput do art. 12 desta Lei Complementar, o valor da operação ou o preço do serviço, para o cálculo do imposto devido ao Estado de origem e ao de destino.
§ 1º Integra a base de cálculo do imposto, inclusive nas hipóteses dos incisos V, IX e X do caput deste artigo:
………………………………………………………………………………………………….
§ 3º No caso da alínea “b” do inciso IX e do inciso X do caput deste artigo, o imposto a pagar ao Estado de destino será o valor correspondente à diferença entre a alíquota interna do Estado de destino e a interestadual.
………………………………………………………………………………………………….
§ 6º Utilizar-se-á, para os efeitos do inciso IX do caput deste artigo:
I – a alíquota prevista para a operação ou prestação interestadual, para estabelecer a base de cálculo da operação ou prestação no Estado de origem;
II – a alíquota prevista para a operação ou prestação interna, para estabelecer a base de cálculo da operação ou prestação no Estado de destino.
§ 7º Utilizar-se-á, para os efeitos do inciso X do caput deste artigo, a alíquota prevista para a operação ou prestação interna no Estado de destino para estabelecer a base de cálculo da operação ou prestação.” (NR)
“Art. 20-A. Nas hipóteses dos incisos XIV e XVI do caput do art. 12 desta Lei Complementar, o crédito relativo às operações e prestações anteriores deve ser deduzido apenas do débito correspondente ao imposto devido à unidade federada de origem.”
“Art. 24-A. Os Estados e o Distrito Federal divulgarão, em portal próprio, as informações necessárias ao cumprimento das obrigações tributárias, principais e acessórias, nas operações e prestações interestaduais, conforme o tipo.
§ 1º O portal de que trata o caput deste artigo deverá conter, inclusive:
I – a legislação aplicável à operação ou prestação específica, incluídas soluções de consulta e decisões em processo administrativo fiscal de caráter vinculante;
II – as alíquotas interestadual e interna aplicáveis à operação ou prestação;
III – as informações sobre benefícios fiscais ou financeiros e regimes especiais que possam alterar o valor a ser recolhido do imposto; e
IV – as obrigações acessórias a serem cumpridas em razão da operação ou prestação realizada.
§ 2º O portal referido no caput deste artigo conterá ferramenta que permita a apuração centralizada do imposto pelo contribuinte definido no inciso II do § 2º do art. 4º desta Lei Complementar, e a emissão das guias de recolhimento, para cada ente da Federação, da diferença entre a alíquota interna do Estado de destino e a alíquota interestadual da operação.
§ 3º Para o cumprimento da obrigação principal e da acessória disposta no § 2º deste artigo, os Estados e o Distrito Federal definirão em conjunto os critérios técnicos necessários para a integração e a unificação dos portais das respectivas secretarias de fazenda dos Estados e do Distrito Federal.
§ 4º Para a adaptação tecnológica do contribuinte, o inciso II do § 2º do art. 4º, a alínea “b” do inciso V do caput do art. 11 e o inciso XVI do caput do art. 12 desta Lei Complementar somente produzirão efeito no primeiro dia útil do terceiro mês subsequente ao da disponibilização do portal de que trata o caput deste artigo.
§ 5º A apuração e o recolhimento do imposto devido nas operações e prestações interestaduais de que trata a alínea “b” do inciso V do caput do art. 11 desta Lei Complementar observarão o definido em convênio celebrado nos termos da Lei Complementar nº 24, de 7 de janeiro de 1975, e, naquilo que não lhe for contrário, nas respectivas legislações tributárias estaduais.”
Art. 2º Fica revogada a alínea “c” do inciso II do caput do art. 11 da Lei Complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996 (Lei Kandir).
Art. 3º Esta Lei Complementar entra em vigor na data de sua publicação, observado, quanto à produção de efeitos, o disposto na alínea “c” do inciso III do caput do art. 150 da Constituição Federal.
Brasília, 4 de janeiro de 2022; 201º da Independência e 134º da República.”.
Para simples regulamentação do inciso VII, do § 2º, do art. 155 da CF que se limitou a deferir a Difal ao Estado de destino, o legislador complementar editou 41 normas entre artigos, incisos, parágrafos e alíneas. E plantou a semente da confusão ao inserir a extravagante norma do art. 3º (noventena) somente aplicável nas relações entre o fisco e contribuinte.
Daí porque imprescindível o exame dessa matéria à luz do princípio da hierarquia das normas, vale dizer, a partir do cristalino texto do inciso VII, do § 2º, do art. 155 da CF que sabidamente não trata de relações entre o fisco e o contribuinte.
A LC nº 190/2022 que regulamenta aquela norma constitucional não tem, nem pode ter natureza de norma tributária.
É verdade, que na hipótese de venda a consumidor final não contribuinte do imposto localizado em outro Estado o remetente arcará com o pagamento da Difal a favor do Estado de Destino.
Contudo, é preciso lembrar que as reduções de alíquotas interestaduais que variam de 7% a 12% não foram estabelecidas a favor dos contribuintes, mas sim a favor dos Estados consumidores.
Logo, não se pode falar em aumento tributário, desde que a alíquota não ultrapasse àquela fixada para as mercadorias e serviços em geral, que no caso do Estado de São Paulo é de 18%.
Tanto é assim que a redação original do inciso VII, do § 2º. Do art. 155 da CF determinava expressamente a adoção de:
a) alíquota interestadual quando o destinatário for contribuinte do imposto; e
b) alíquota interna, quando o destinatário não for contribuinte do imposto.
Quis o legislador constituinte derivado de 2015 atribuir ao Estado de destino a diferença de alíquota entre a interna e a interestadual.
A única diferença é que o remetente da mercadoria ao invés de pagar 18% para o Estado de origem ele passa a repartir esse imposto: paga ao Estado de origem pela alíquota interestadual, e recolhe a difal a favor do Estado de destino. Não há aumento tributário.
Não é por outra razão que a parte final daquele art. 3º que prescreve a noventena é objeto da ADI impetrada pelo Estado de Alagoas que requereu a declaração de sua inconstitucionalidade.
Entretanto, essa matéria que é das mais singelas ganhou foro de uma grande discussão doutrinária envolvendo cursos, seminários, palestras e lives que só servirão para alimentar uma montanha de litígios judiciais.
A simples distinção entre o Direito Financeiro e o Direito Tributário é suficiente para afastar o mar de confusão em que está se transformando essa questão da Difal.
Essa discussão se assemelha àquela em torno da natureza jurídica do lançamento tributário: procedimento administrativo como está no art. 142 do CTN, ou, um ato jurídico administrativo. Ignora-se o fato de que a palavra “lançamento” não é unívoca: ela tanto expressa ato de lançar, como o resultado desse ato de lançar que é o lançamento propriamente dito, isto é, ato jurídico administrativo que constitui definitivamente o crédito tributário por meio do procedimento de lançamento. Procedimento do lançamento não se confunde com o seu resultado que é o lançamento, um ato jurídico-administrativo.
No caso sob exame a confusão gira em torno das relações jurídicas de direito financeiro e de direito tributário.
SP, 31-1-2022.
* Texto publicado no Portal Migalhas do dia 9-2-2022, edição nº 5.282.
Por Kiyoshi Harada