Direito de reunião

Comentários de Acórdão do STF – Direito de reunião (RE nº 806.339)

Plenário Virtual –  04/12/20 00:00 1

V O T O – V O G A L

O Senhor Ministro Edson Fachin:

 Acolho o bem lançado relatório proferido pelo e. Ministro Marco Aurélio.

Como bem registrou Sua Excelência, a presente repercussão geral objetiva definir o alcance da exigência constitucional de prévio aviso à autoridade competente como pressuposto para o exercício do direito versado no artigo 5º, XVI, da Constituição Federal.

O dispositivo tem o seguinte teor:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

 (…)

XVI – todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente;”

Ao interpretar o referido dispositivo, o e. Ministro Ayres Britto, quando do julgamento da ADI 4.274, assentou que:

 “Desse dispositivo extrai-se a compreensão de que: a) ao fazer uso pronome “todos”, a Constituição quis expressar que o seu comando tem um âmbito pessoal de incidência da máxima abrangência, de sorte a não excluir ninguém da sua esfera de proteção; b) traduz-se o direito de reunião na faculdade de encontro corporal ou junção física com outras pessoas naturais, a céu aberto ou em via pública. Com a particularidade de ser um direito individual, porém de exercício coletivo (ninguém se reúne sozinho ou apenas consigo mesmo). Mais ainda, direito de conteúdo elástico, porquanto não restrito a esse ou aquele tema. Pelo que se constitui em direito-meio ou instrumental, insusceptível de censura prévia. Censura prévia que implicaria matar, no próprio nascedouro, não só esse direito-meio, como todos os direitos-fim com ele relacionados. Especialmente o direito à informação e de manifestação de pensamento (inciso IV do art. 5º da CF). Sem olvidar a liberdade de expressão e as diversas formas de seu exercício, inclusive a comunicacional (inciso IX do art. 5º da CF). Pensamento, expressão, informação e comunicação, tudo assim separadamente protegido e possível de concreto exercício por ocasião de uma passeata, um comício, um ato público. Sendo certo que todos esses direitos fazem parte do rol de direitos individuais de matriz constitucional (incisos IV, XIII e XIV do art. 5º da CF).”

 De modo semelhante, quando do julgamento da ADI 1.969, Rel. Ministro Ricardo Lewandowski, DJe 30.08.2007, o Tribunal julgou inconstitucional restrição a esse direito consubstanciada no Decreto Distrital que vedava a manifestação em locais determinados de Brasília, assim como aquelas que não tivessem caráter cívico-militar, religioso e cultural.

 Embora sejam precedentes relevantes para a definição do direito de reunião, não se depreende desses julgados o alcance da exigência de “prévio aviso à autoridade competente”. Assim, é necessário analisar, de forma mais detida, aquilo que consta do histórico processual da presente ação.

 Quando do julgamento do caso, o Tribunal a quo manteve a sentença (eDOC 3, p. 173), a qual, por sua vez, assentou (eDOC 3, p. 67):

 “Não bastasse o descumprimento do requisito do aviso prévio nele consignado (as entidades organizadoras, em outras palavras, deixaram de levar ao conhecimento da administração pública o propósito de realizar a manifestação), tem-se que desde as etapas preparativas do evento aqui impugnado, em razão do local e horário designados pelos seus organizadores, já havia indícios suficientes no sentido de delinear o abuso do exercício da garantia constitucional em questão. Despiciendo seria perquirir, dada sua obviedade, se as entidades que conduziram naquele dia o aglomerado de pessoas para ali atraídas tinham ciência de que o tráfego naquela rodovia teria seu fluxo obstruído. Tratando-se da BR 101, de longe principal eixo rodoviário que cruza o Estado, o profundo impacto sobre a locomoção de pessoas e sobre o transporte de mercadoria, inquestionavelmente, era sabido de antemão, ao passo que o “efeito surpresa”, demarcado pela omissão de notificação prévia, evidencia justamente a intenção de amplificar a visibilidade da manifestação a partir dos prejuízos daí decorrente para aquelas atividades regulares.

É bem verdade que a criação de mecanismos aptos a operacionalizar a fruição do direito de reunião é tarefa primordialmente a ser atribuída à Administração Pública. Não se pode olvidar, todavia, aliás como oportunamente salientado nesta decisão, que os organizadores de um evento desta magnitude, sobretudo quando propiciam a aglomeração de indivíduos em locais de grande circulação, não podem se esquivar de sua obrigação de respeitar os bens jurídicos que possam eventualmente ser atingidos em virtude do exercício da prerrogativa em tela. Impõe-se assim, bem se nota, uma ação conjunta de ambas as partes.

 Aos agentes públicos, no entanto, deixou-se de ofertar tanto a possibilidade, constitucionalmente lícita, de estabelecer os parâmetros necessários à fruição do direito de reunião, quanto a faculdade, igualmente amparada no Texto Maior, de, em sendo o caso, restringi-la ou deslocá-la para outro sítio adequado”.

Na sentença, o e. Juiz Federal de Primeiro Grau assenta que suas conclusões “têm como substrato a realização de um juízo de ponderação entre tal garantia e os demais bens jurídicos aludidos nesta decisão, bem como a constatação de descumprimento do preceito insculpido no art. 5º, XVI, da CF/88” (eDOC 3, p. 69). O dispositivo, então, foi lavrado nos seguintes termos:

 “Ante o exposto, julgo procedente o pedido, para ratificar integralmente a liminar e condenar as entidades requeridas no pagamento da multa fixada pelo provimento de urgência, diante de seu descumprimento, incidindo juros de mora (0,5% por cento ao mês) e correção desde o fato lesivo. Por igual, comino, para o caso de nova ameaça de turbação ou esbulho que interfira no uso regular do local descrito pela inicial, multa diária no valor de R$ 20.000,00 para cada uma das entidades rés” (eDOC 3, p. 72).

Embora o acórdão não discorra sobre o alcance da exigência constitucional de aviso prévio, na petição de recurso extraordinário, pugnase pelo afastamento da condenação ao pagamento da multa, ao fundamento de que o aviso prévio é mera informação para o exercício do direito de manifestação.

 É relevante, pois, a controvérsia suscitada nos autos e, para essa questão específica, são poucos os parâmetros que se extraem dos precedentes desta Corte. Por isso, são dignas de encômios as manifestações trazidas aos autos pelos amici curiae : a cláusula de abertura da Constituição, consubstanciada no art. 5º, § 2º, da CRFB, permite que as referências aos tratados de direitos humanos de que é parte a República Federativa do Brasil fixem parâmetros mais precisos para a interpretação da garantia constitucional. Isso porque, consabido, não deve o intérprete pressupor divergência entre um direito fundamental insculpido na própria Constituição e um direito humano consagrado nos tratados internacionais.

 Nos termos do próprio texto constitucional, o direito de reunião é direito de todos e deve ser exercido (i) de forma pacífica, (ii) independentemente de autorização, (iii) sendo exigido apenas prévio aviso.

De forma semelhante, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos prevê, em seu Artigo 21, o seguinte:

“O direito de reunião pacifica será reconhecido. O exercício desse direito estará sujeito apenas às restrições previstas em lei e que se façam necessárias, em uma sociedade democrática, no interesse da segurança nacional, da segurança ou da ordem pública, ou para proteger a saúde ou a moral pública ou os direitos e as liberdades das demais pessoas.”

 O Pacto de São José da Costa Rica, por sua vez, prevê, em seu Artigo 15, que:

“É reconhecido o direito de reunião pacífica e sem armas. O exercício de tal direito só pode estar sujeito às restrições previstas pela lei e que sejam necessárias, numa sociedade democrática, no interesse da segurança nacional, da segurança ou da ordem públicas, ou para proteger a saúde ou a moral públicas ou os direitos e liberdades das demais pessoas.”

Ao interpretar tais dispositivos, os órgãos internacionais de direitos humanos, assim como o próprio Supremo Tribunal Federal – conforme se depreende da eloquente definição feita pelo e. Ministro Ayres Britto –, têm sublinhado a estreita vinculação que existe entre o direito de reunião e o direito de expressão. Essa constatação permite afastar, de plano, qualquer interpretação que condicione o aviso prévio à realização de uma manifestação. Dada a primazia do direito de expressão, não é possível interpretar a exigência de prévio aviso como condicionante ao exercício do direito. Sobre a primazia da liberdade de expressão, sublinha Roberto Gargarella:

“É absolutamente certo (…) que o exercício de um direito não pode implicar a supressão de outros. De todo modo, no momento de fazer um balanceamento acerca de que peso deve ser assinalado a cada direito, deve-se ter em conta que o direito à liberdade de expressão não é um direito, mas, em todo caso, um dos primeiros e mais importantes fundamentos de toda a estrutura democrática. Isto é, em casos como os que examinamos, a liberdade de expressão não apenas merece ser tomado em contra como qualquer outro direito afetado, mas também – muito mais – requer uma atenção privilegiado: o socavamento da liberdade de expressão afeta diretamente o nervo principal do sistema democrático” (GARGARELLA, Roberto. El derecho a la protesta: El primer derecho . 1ª ed. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2005, p. 26, tradução livre).

Na mesma linha de interpretação, registrou a Comissão Interamericana, no Informe da Relatoria para a Liberdade de Expressão, que “a finalidade da regulamentação do direito de reunião não pode ser a de criar uma base para que a reunião ou manifestação seja proibida”. Por essa razão, ainda de acordo com a Comissão, “a regulamentação que estabelece, por exemplo, o aviso ou notificação prévia tem como objetivo informar as autoridades para que tomem as medidas voltadas a facilitar o exercício do direito sem embaraçar de maneira significativa o desenvolvimento normal das atividades do resto da comunidade”. Noutras palavras, porque não há uma autorização prévia, o único sentido possível para a exigência de aviso prévio é precisamente o de permitir que o poder público zele para que o exercício do direito se dê de forma pacífica e que não frustre outra reunião no mesmo local. Para tanto, basta que a notificação seja efetiva, isto é, permita ao poder público realizar a segurança da manifestação ou reunião.

 Deve-se reconhecer que tal interpretação exige das autoridades públicas uma postura ativa, afinal, manifestações espontâneas não estão proibidas nem pelo texto constitucional, nem pelos tratados de direitos humanos. Assim, a inexistência de notificação não torna ipso facto ilegal a reunião.

 Tampouco se depreende do texto constitucional qualquer exigência relativamente à organização: a liberdade de expressão e reunião pode, com efeito, assumir feição plural e igualitária, não sendo possível estabelecer, como regra, uma organização prévia. Assim, não há como exigir-se que a notificação seja pessoal ou de algum modo registrada, porque implica reconhecer como necessária uma organização que a própria Constituição não exigiu.

Nessa ordem de ideias, o Relatório do Relator Especial para o direito à reunião pacífica e à associação Maina Kiai assentou que deve haver uma presunção de legalidade das reuniões e manifestações pacíficas. Isso implicaria em reconhecer, em seu sentir, que, caso não seja possível a notificação, os organizadores não devem ser punidos por sanções criminais ou por sanções administrativas que resultem multa ou prisão.

Ademais, ainda de acordo com Maina Kiai, a notificação só faria sentido para grandes manifestações, onde um certo grau de ruptura é antecipável. Nesses casos, a notificação deveria ser dirigida a apenas uma única autoridade, sem que, para tanto, exija-se um prazo prévio demasiadamente longo. A notificação seria, ainda, simples, preferencialmente online, com informações relativas à data, horário, duração e localização, com detalhes de contato das entidades organizadoras. Seriam inadmissíveis, dessa forma, as exigências relativas à identificação prévia de todos os organizadores ou dos participantes, ou à fundamentação do exercício do direito.

Muito embora tais considerações sejam úteis para casos futuros em que a exigência da notificação prévia é formulada, é preciso ter-se conta que, no presente caso, a interpretação do Tribunal a quo, segundo a qual é ilegal a reunião se não precedida de notificação, afronta o direito constitucionalmente assegurado, impondo, por conseguinte, o provimento do recurso extraordinário. Ademais, é relevante observar que a ponderação levada a efeito pelo Tribunal a quo tampouco autorizaria a procedência do interdito proibitório.

Em uma sociedade democrática, o espaço público não é apenas um lugar de circulação, mas também de participação. Não por acaso, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, no Relatório sobre Segurança Cidadã e Direitos Humanos, assentou que, conquanto o exercício do direito de reunião possa causar distúrbios na rotina normal da vida, ou ainda que afete a liberdade de circulação, “tais distúrbios são parte da mecânica de uma sociedade plural em que interesses divergentes e às vezes conflitantes coexistem e encontram os fóruns em que podem se expressar”. Noutras palavras, há um custo módico na convivência democrática e é em relação a ele que eventual restrição a tão relevante direito deve ser estimada. Ante as circunstâncias do caso concreto, expressa pela curta interrupção do fluxo da rodovia, a restrição estabelecida pelo juiz de primeiro grau longe está de obedecer ao critério da estrita necessidade. Como, novamente, adverte Maina Kiai:

“Acesso ao espaço público significa concretamente que os organizadores devem ser capazes de utilizar as ruas, rodovias e quarteirões para conduzir (estática ou em movimento) reuniões pacíficas” (A/HRC/23/39, par. 66, tradução livre).

Por essas razões, seja porque a ausência de notificação prévia não implica necessariamente a ilegalidade da manifestação, seja porque a concessão do interdito não obedece ao teste da estrita necessidade e proporcionalidade, é procedente o presente recurso extraordinário.

Ante o exposto, dou provimento ao recurso para afastar a condenação ao pagamento da multa cominatória e dos honorários fixados, invertendo-se, por conseguinte, a sucumbência. É como voto. Proposta de tese: A exigência constitucional de aviso prévio relativamente ao direito de reunião é satisfeita com a veiculação de informação que permita ao poder público zelar para que seu exercício se dê de forma pacífica ou para que não frustre outra reunião no mesmo local

Comentários

Trata-se de Recurso Extraordinário interposto pelos sindicalistas para reverter a decisão do TRF5 que acolheu a decisão proferida pelo Juiz Federal de primeira instância condenando-os ao pagamento da multa, juros moratórios de 0,5% ao mês e verba honorária.

Os sindicalistas organizaram um protesto contra a transposição do Rio São Francisco causando o bloqueio de trecho da Rodovia BR 101 no Município de Propiá (SE). Essa manifestação havia sido proibida por uma medida liminar do TRF5 que atendeu ao pedido formulado pela União, a fim de não prejudicar o tráfego de veículos.

Os sindicalistas ignoraram a ordem judicial e promoveram a manifestação, resultando na condenação judicial em primeira instância, por descumprimento de ordem judicial, decisão essa mantida em segunda instância.

O Recurso Extraordinário foi provido por maioria de votos segundo o voto do Ministro Edson Fachin retrotranscrito. Seguira seu voto os Ministros Luís Barros, Rosa Weber, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli. O Ministro Marco Aurélio, Relator desproveu o Recurso sendo seguido pelos Ministros Alexandre de Morais, Luiz Fux, Nunes Marques e Gilmar Mendes.

Por escassa maioria, o Plenário do STF flexibilizou a interpretação do inciso XVI, do art. 5º da CF estabelecendo uma vinculação entre o direito de reunião e o direito de expressão o que afasta qualquer idéia de condicionamento da reunião ao aviso prévio à autoridade competente.

Transcrevamos os dispositivos constitucionais pertinentes para melhor exame:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

 (…)

IV é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

(…)

XVI – todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente;”

Lida isoladamente o inciso XVI, do art. 5º da CF não há como dispensar a prévia comunicação da reunião à autoridade competente, pois isso está expresso em sua parte final.

Todavia, se entender que a reunião de protesto contra a transposição do Rio São Francisco é uma forma de manifestação livre do pensamento (inciso IV, do art. 5º da CF) que deriva diretamente do caput do art. 5º que assegura a todos o direito à liberdade, segue-se que aquele inciso XVI deve ser lido com restrição, pois não pode contrariar o comando constitucional expresso no caput.

À primeira vista pode parecer que a desobediência frontal à determinação do Tribunal Regional Federal da 5º Região, que expediu a ordem proibindo a manifestação na referida Rodovia Federal, não poderia restar impune.

Todavia, se mediante interpretação sistemática dos dispositivos constitucionais aparentemente em conflito, chegou-se à conclusão de que o direito de reunião está ligado à liberdade de pensamento, por óbvio, descabe exigir-se a previa comunicação à autoridade competente.

Assim sendo a proibição emanada da medida liminar expedida pelo TRF5 não poderia surtir efeito, por violadora de prerrogativa constitucional prevista em nível de cláusula pétrea.

Outrossim, conforme tese proposta pelo voto vencedor, a exigência constitucional de aviso prévio relativamente ao direito de reunião é satisfeita com a veiculação de informação que permita ao poder público zelar para que seu exercício se dê de forma pacífica ou para que não frustre outra reunião no mesmo local.

No caso, a autoridade competente tomou conhecimento prévio da reunião tanto é que requereu a sua interdição.

SP, 18-1-2021.

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