EC nº 109

Breve exame da EC nº 109, de 15-3-2021

Breve exame da EC nº 109, de 15-3-2021.

Essa Emenda, resultante da PEC Emergencial de nº 186/2019, contém a seguinte ementa que, por si só, dá a ideia do tamanho da mutilação da Constituição:

Altera os arts. 29-A, 37, 49, 84, 163, 165, 167, 168 e 169 da Constituição Federal e os arts. 101 e 109 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias; acrescenta à Constituição Federal os arts. 164-A, 167- A, 167-B, 167-C, 167-D, 167-E, 167-F e 167-G; revoga dispositivos do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e institui regras transitórias sobre redução de benefícios tributários; desvincula parcialmente o superávit financeiro de fundos públicos; e suspende condicionalidades para realização de despesas com concessão de auxílio emergencial residual para enfrentar as consequências sociais e econômicas da pandemia da Covid-19.

A pretexto de criar condições para a superação dos limites de despesas previstas na Lei Orçamentária Anual, a fim de possibilitar a reinstituição do auxílio emergencial para a população vulnerável, até o limite de 44 bilhões de reais, a citada Emenda, após sucessivas alterações, mutilou os dispositivos constitucionais pertinentes às finanças públicas (Capítulo II da CF – arts. 163 a 169). Utilizou-se da chamativa bandeira da inclusão social para cometer inúmeras maldades contra as finanças públicas, emplacando de lambuja um novo calote de precatórios, cujos recursos serão, certamente, utilizados para fins que não atendem ao interesse público, que passou a ser sinônimo de interesse pessoal dos detentores do poder político.

É de se lembrar que tradicionalmente normas orçamentárias de natureza constitucional ou infraconstitucional não vinham sendo observadas ao longo das décadas. É muito curioso que essa Emenda autorize extrapolar o limite das despesas previstas na Lei Orçamentária Anual de 2021 que, na data de sua promulgação, sequer havia sido aprovada pelo Congresso Nacional.  Sob o rótulo de “emergência” a PEC foi aprovada antes da LOA contrariando toda a lógica legislativa. Qual, afinal, o real objetivo perseguido pelos legisladores investidos do Poder Reformador?

A Emenda sob análise instituiu inúmeras regras voltadas aparentemente para a proteção da saúde financeira do Estado, porém, todas elas no nível utópico não passível de execução.

A cada descumprimento de preceito constitucional referente às finanças públicas gerando impactos negativos, segue-se a promulgação de uma Emenda para sua correção. Contudo, nem o Legislativo, muito menos, o Executivo têm vontade política para cumprir a Lei e a Constituição.  Por isso, a sucessão de Emendas jamais terá um fim, e a Carta Magna acabará tendo mais artigos do que o Código Civil.

O remédio para curar os males do orçamento não reside na falta de normas legais ou constitucionais, mas no seu descumprimento sistemático a gerar sucessivas emendas. Quanto maior a quantidade de normas constitucionais, maior o número de desobediências a preceitos da Constituição!

Por isso, a solução dos impactos negativos não reside na elaboração de instrumentos legislativos, mas, na obediência à ordem jurídica como um todo. Emendas como a de nº 109/2021 mais confunde do que resolve. Se não se cumpre as normas em vigor, por que elaborar outras?

Não satisfeito com a nova remexida no art. 167 da CF, que cuida das vedações na área orçamentária, o legislador constituinte estatuiu os arts. 167A a 167G criando normas com inusitado sabor burocrático, a inviabilizar sua aplicação. Ao decuplicar o número de normas, com remexida geral nos preceitos constitucionais voltados para a área de finanças públicas, é previsível o congestionamento do STF, fato que não deve ter passado desapercebido pelos legisladores constituintes derivados. São 121 novas normas inócuas, entre artigos, incisos, letras e parágrafos introduzidos por essa Emenda.

 A título ilustrativo cita-se o inócuo inciso XIV acrescido ao art. 167 da CF para vedar a criação de fundo público na hipótese aí descrita. Pergunta-se, por que, o legislador ordinário não regulamentou, até hoje, o disposto na parte final do inciso II, do § 9º, do art. 165 da CF que comete à lei complementar a tarefa de estabelecer as condições para a instituição e funcionamento de fundos? A resposta é óbvia: com o advento dessa lei complementar, aplicável em nível nacional, ficaria proibida criação de “n” fundos a todo instante, além de prejudicar os fundos hoje existentes, como o fundo partidário e o fundo eleitoral.  Partiu-se, então, para a política de deixar um campo aberto para instituição de fundos de quaisquer espécies, procedendo-se às proibições casuísticas do tipo retroapontado que em nada contribui para a correta aplicação de recursos financeiros públicos. É bom que se diga, fundos representam um obstáculo ao exercício do controle e da fiscalização da despesa pública, por ausência de elementos de despesa.

Mediante atuação promíscua e conveniente entre os Poderes mantém-se desprovido de eficácia normas voltadas para a proteção das finanças públicas.

Após constitucionalizar regras óbvias de manutenção do equilíbrio das contas públicas, a EC nº 109/2021 introduziu o art. 101 ao ADCT para dilatar o prazo de pagamento de precatórios para até o dia 31-12-2029, um dos objetivos resultante da ação oportunista de governadores que invocaram o estado de calamidade pública, como se, sem ela os precatórios fossem pagos tempestivamente. Esta é a 5ª moratória de precatórios e nada indica que um dia a Emenda da espécie, que oficializa o calote, irá cessar.

Por tudo isso, na visão de Roberto Campos a Constituição é “uma mistura de dicionário de utopias e regulamentação minuciosa de efêmero”; é, ao mesmo tempo, um hino à preguiça e uma coleção de anedotas; é saudavelmente libertária no político, cruelmente liberticida no econômico, comoventemente utópica no social; é um camelo desenhado por um grupo de constituintes que sonhavam parir uma gazela.” [1]

Eu ouso acrescentar à coletânea de frases do saudoso estadista Roberto Campos, o ingrediente da corrupção que está por trás dessas normas que, quando não explicitam o óbvio e ululante, introduzem preceitos nebulosos, dúbios e caóticos de impossível execução.

Quem for ler e interpretar os textos dessa Emenda 109/2021 ficará certamente desnorteado e bastante estressado em meio a tantas remissões a artigos, parágrafos, incisos e letras, impossíveis de serem vislumbrados simultaneamente na tela de um computador. Será preciso voltar ao antigo sistema de espalhar dezenas de textos normativos em uma extensa mesa de trabalho de cinco a seis metros de comprimento.

Já que a ordem é buscar solução legislativa para contornar o mal oriundo de descumprimento de normas é chegada a hora de aprovar uma Emenda proibindo a apresentação de PECs nos próximos dez anos, sob pena da perda de mandato.

 Há exemplos no mundo contemporâneo em que um Presidente foi destituído do cargo por ter tentado inovar a ordem constitucional, apresentando um projeto possibilitando a sua reeleição.

Aqui a PEC em causa própria foi patrocinada pelo governo FHC e essa chaga permanece até hoje, prejudicando o ato de governar a partir da segunda metade de cada mandato em que o ato de se reeleger sucede ao ato de governar. O estado atual é o reflexo disso que estamos falando. Com pandemia ou sem ela, nada muda. Toda a máquina governamental deve estar voltada para asfaltar o caminho da reeleição, custe o que custar!

SP, 5-4-2021.

Por Kiyoshi Harada


[1] A Constituição de 1988 na visão de Roberto Campos. Texto de Ney Pradodisponível no site WWW.haradaadvogados.com.br. Acesso em 30-3-2021.

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