Kiyoshi Harada
- A PEC 45/19 – reforma tributária – acaba com três tributos Federais, um estadual e um municipal, unificando todos em um único imposto. Como ficará a arrecadação para estados e municípios caso essa proposta seja aprovada?
R: A PEC nº 45/19 representa a versão menos radical do que está na PEC nº 293-A/04. A PEC nº 45/19 mistura espécies tributárias diversas pertencentes a diferentes esferas impositivas unindo o IPI, a Cofins, o PIS, o ICMS e o ISS, dando origem ao IBS, um imposto não-cumulativo de incidência plurifásica com incidência por fora. Sua base de cálculo é de tal abrangência que levará décadas para a jurisprudência delimitar os seus contornos definitivos. O conceito de ICMS levou mais de duas décadas para final pacificação.
Não se sabe como compatibilizar a tributação por fora com um imposto não-cumulativo de incidência plurifásica, como o atual ICMS. A tributação por fora só é compatível com o regime de incidência em cascata como acontecia com o antigo IVV, ou, com a incidência monofásica (no começo ou no final do ciclo de comercialização). E se a tributação recair sobre o valor acrescido em cada operação, aí não há que se falar em crédito/débito como está na proposta sob exame.
A receita do IBS seria distribuída entre União, Estados, DF e Municípios “proporcionalmente do saldo líquido entre débitos e créditos do imposto atribuível a cada ente, nos termos da lei complementar” (§ 5º do art. 152-A).
A alíquota total do IBS será representada pela somatória das alíquotas federal, estadual e municipal. Cada ente federativo terá competência para alterar as alíquotas do IBS, mas, a competência tributária será da União, por meio de Lei Complementar que instituirá o Comitê Gestor Nacional integrado pelas entidades políticas tributantes com a função de editar regulamento do IBS, de gerir a arrecadação centralizada, de estabelecer critérios de atuação dos entes políticos na fiscalização do imposto, de operacionalizar a distribuição da receita do IBS, além de representar judicial e extrajudicialmente a União, Estados, DF e Municípios.
Não é preciso ser um especialista para antever o caos legislativo que provocará a atribuição de competência normativa a um órgão administrativo que, certamente, produzirá, em escala industrial, portarias, pareceres normativos, instruções, circulares, avisos etc. A atribuição de representação judicial a esse Comitê Gestor, também, mostra-se bastante problemática. Imagine três Procuradorias Fiscais atuando simultânea e conjuntamente em um determinado processo envolvendo discussão acerca de questões ligadas ao IBS.
Por outro lado, é muito complicado fixar alíquota uniforme para todas as mercadorias e serviços por parte dos diferentes Estados, e mais complicado, ainda, para os mais de 5.550 Municípios de diferentes estágios de desenvolvimento socioeconômico. Se cada um dos 5.550 Municípios alterarem as suas alíquotas segundo a realidade de cada um deles, o imposto dito uniforme em todo território nacional acabará se transformando em IBS local, somado ao IBS regional e ao IBS federal.
- Em sua opinião, o Brasil precisa passar por essa reforma no sistema tributário? Por quê
R: Na nossa opinião o Brasil não precisa de uma Reforma Tributária radical como a da PEC 45/19 que praticamente coloca de cabeça para baixo o Sistema Tributário Nacional vigente, que está fundado no princípio federativo protegido em nível de cláusula pétrea.
Abandonam-se os conceitos consolidados pela doutrina e jurisprudência ao longo de mais de 30 anos, para partir em busca de entendimento acerca do IBS, que representa um conceito em aberto, sem limites. Muitas tintas serão gastas até chegar a um consenso doutrinário e jurisprudencial mediante interpretação da expressão IBS a partir do texto constitucional.
A complexidade do Sistema Tributário Nacional não reside e nunca residiu na Constituição Federal. O que burocratiza o Sistema é a legislação infraconstitucional, notadamente, os atos complementares referidos no art. 100 do CTN, que são editados em escala industrial e com inusitado sadismo burocrático, que infernizam a vida dos contribuintes, tomando deles cerca de 2.600 horas anuais para cumprir todas as obrigações tributárias.
Faz-se urgente, pois, fazer uma reforma no nível infraconstitucional para conter a edição desses atos complementares, bem como limitar a produção de leis ordinárias que se alteram com uma constância incompatível com o princípio da segurança jurídica, que reside principalmente na estabilidade da legislação tributária.
Conveniente, outrossim, a fusão do PIS/COFINS, pois, apesar de o produto de sua arrecadação ter destinação diferente, tem o mesmo fato gerador. Da mesma forma convém unificar o IRPJ e a CSLL. A destinação da receita é tarefa da Lei Orçamentária Anual. Deve, outrossim, uniformizar o regime de tributação do PIS/COFINS, optando entre a tributação cumulativa e a tributação não-cumulativa e, nessa hipótese, adotar o mesmo mecanismo de crédito/débito (crédito financeiro) para a apuração do tributo devido, como acontece no atual ICMS, abolindo o atual regime de tributação que tantos empecilhos tem trazido.
No nível constitucional, bastaria algumas Emendas pontuais para: (a) vedar o emprego da medida provisória em matéria tributária, por violar o princípio da legalidade e conferir dinamismo caótico à legislação tributária; (b) proibir a tributação por dentro que contraria o princípio da transparência tributária e contribui para a inadimplência e sonegação fiscal, acabando, assim, com as intermináveis discussões em torno da exclusão do valor do tributo da sua própria base de cálculo e da base de cálculo de outros tributos; (c) vedar o efeito modulatório em matéria a tributação por infringir os princípios da legalidade, da isonomia, da capacidade contributiva e da vedação do efeito confiscatório, além de estimular a ação dos governantes na instituição ou majoração de tributos de forma inconstitucional; (d) por fim, colocar sob reserva de lei complementar a definição do fato gerador de contribuição social, obstando a instituição de impostos inominados sob a roupagem de contribuição social.
São emendas pontuais que em nada alteram a estrutura do Sistema Tributário Nacional, tão bem esculpido pelo legislador constituinte original de 1988, mas que conferem transparência e segurança jurídica, conferindo eficiência ao Sistema Tributário e aumentando o volume da arrecadação tributária, sem majorar as alíquotas ou a base de cálculo dos tributos.
- De que forma a eventual a aprovação da PEC nº 45/19 pode contribuir para o desenvolvimento dos negócios no país e para a redução das desigualdades sociais?
R: Penso que a eventual aprovação da PEC nº 45/19 não contribuirá para o desenvolvimento dos negócios no País, ou para redução de desigualdades sociais. Começa que a redução de desigualdades sociais não é matéria de competência tributária, cabente a outras esferas do poder com vistas a melhor redistribuição da renda nacional. Papel primordial dos tributos é o de propiciar recursos financeiros necessários para que o Estado cumpra seus fins.
A proposta sob exame, com a incorporação de inúmeras normas, quer a nível constitucional, quer a nível complementar, trará uma complexidade muito grande da legislação tributária, tornando mais difícil a operacionalização do Sistema Tributário Nacional, desencadeando uma série de problemas novos a serem dirimidos pelo já congestionado Poder Judiciário.
O certo é que a convivência dos dois sistemas tributários: o atual e o novo, por longos dez anos irá, sem dúvida alguma, implicar o aumento da carga tributária, exatamente, ao contrário do enunciado pelos seus defensores. Maior incentivo à produção somente pode ser obtido com a redução da carga tributária que irá gerar mais arrecadação, por conta do desaparecimento do enorme contingente de inadimplentes e de sonegadores fiscais que hoje alcançam cifras assustadoras. Só na esfera federal há um estoque de dívida ativa da ordem de R$1.8 trilhão. No momento de recessão econômica impõe-se baixar o nível de tributação para devolver oxigênio ao setor produtivo e propiciar a retomada do crescimento econômico. Tributos caros reduzem a produtividade e diminuem as receitas tributárias. Isso é demonstrado na conhecida Curva de Laffer.
Positivamente, este não é o momento adequado para fazer experiência com novo Sistema Tributário que eleva a carga tributária e burocrática e põe por terra noções e conceitos tributários consolidados, à dura pena, pela doutrina e jurisprudência de nossos tribunais.
- Em sua opinião, o texto da PEC 45/19 precisa de adequações? Em que pontos?
R: Em que pese a boa intenção de seus autores, o ideal seria deixar para outro momento essa proposta inovadora de reforma e partir para uma reforma no nível infraconstitucional. Tentar emplacar uma reforma radical em um momento de conturbação político-institucional e econômica não trará bons resultados.
Contudo, para responder à indagação eu diria que a PEC nº 45/19 deve optar entre tributação por fora e em cascata e a tributação não-cumulativa de incidência plurifásica e por dentro, como acontece com o atual ICMS. Como está no texto não me parece exequível.
A competência impositiva da União, porém, com a possibilidade de Estados e Municípios modificarem as suas respectivas alíquotas deve ser repensada, pois os Municípios situados nos mais diversos pontos do território nacional são bastantes heterogêneos em termos de desenvolvimento socioeconômico e tecnológico. Municípios existem em que nem uma décima parte dos diversos itens de serviços previstos na lista anexa a Lei nº 116/03 são prestados.
Ao invés de manter um federalismo com acentuado grau de centralização é preferível que a União assuma ostensivamente a competência tributária abrangendo a instituição do IBS e a sua fiscalização e arrecadação, para ulterior repartição do produto de sua arrecadação entre as entidades políticas regionais e locais.
- Caso haja mais algum ponto que o senhor julgue ser importante mencionar, sinta-se à vontade para discorrer sobre o assunto.
R: Por tudo isso, julgamos inoportuno a implantação de uma Reforma Tributária tão profunda quanto a representada pela PEC nº 45/19. Por igual motivo entendemos que, também, não deve ser aprovada a PEC nº 293-A/04 que unifica 10 tributos em torno do IBS, cujo relatório já foi aprovado na Comissão Especial da Câmara dos Deputados.
Existe, outrossim, mais 11 propostas de Reforma Tributária aguardando designação de pauta na Câmara dos Deputados, sendo que, a pior delas é representada pela PEC nº 17/91, que implanta o imposto único, incompatível com a forma Federativa do Estado Brasileiro.
A Reforma Tributária é tarefa árdua que envolve necessidade de conhecer em profundidade o sistema jurídico-constitucional peculiar de nosso Estado, além de experiência prática diária no trato com a matéria tributária para identificar as virtudes do Sistema em vigor a serem preservadas e os defeitos a serem eliminados. Requer, também, que o autor ou autores da proposta conheçam a fundo a jurisprudência dos Tribunais Superiores, detectando os pontos mais polêmicos que estão ocupando 60% do espaço do Judiciário só com questões tributárias, a fim de propor alterações para eliminar o foco dessas discussões intermináveis que estão se multiplicando em proporções dantes nunca vistas. Logo, o STF estará se ocupando exclusivamente com questões tributárias.
Reduzir quantidades de tributos não é sinônimo de simplificação tributária. O foco da reforma deve ser o de aprimorar o Sistema Tributário existente, sem destruí-lo. Se o problema for de aplicação, e tudo indica que é, nenhuma reforma tributária terá o condão de alcançar os resultados almejados por seus formuladores. Imperativo que se mude o hábito de conferir solução legislativa a todos os entraves, às dificuldades e aos problemas que surgem no dia a dia, muitos deles decorrentes de inaplicação de preceitos legais e constitucionais. Nenhuma norma jurídica é auto operativo. Alguém precisa arregaçar as mangas e botar a mão na massa. É preciso trabalhar mais e legislar menos.
A uniformização de alíquotas e a proibição de incentivos fiscais do IBS, como previstas na PEC nº 45/19 estão presentes no Sistema Tributário vigente em relação ao ICMS. No entanto, as guerras fiscais continuam firmes como rochas, e as alíquotas deixaram de ser uniformes em todo o território nacional: variam de 18%, 20%, 25%, 30% e 35%.
Enfim, é preciso mudar a cultura do descumprimento de normas legais e constitucionais para a cultura da obediência às leis, começando pelo Estado que as elabora.
SP, 22-5-19.