A união de dois poderes contra outro poder não é uma novidade dos dias atuais. Ela vem de longa data.
Uma dessas situações é o que aconteceu com a manutenção da contribuição social de 10% ao FGTS que é manifestamente inconstitucional por configurar um imposto inominado, sem a observância dos requisitos previstos no inciso I, do art. 154 da CF, como veremos.
Quando uma lei causa danos à sociedade em geral não cabe aos membros dessa sociedade exigir do Estado a indenização respectiva pela simples razão de que cada autor deverá propiciar ao Estado os recursos financeiros necessários para fazer a reparação geral. Mas, se determinada lei prejudica apenas determinadas pessoas ou determinados setores da sociedade, conhecida por essa razão como lei de efeito concreto, cabe ao prejudicado ingressar com a ação indenizatória contra o Estado. Nesse caso cumpre à sociedade como um todo representada pelo Estado, efetuar a indenização de alguns de seus integrantes diretamente prejudicados pela lei discriminatória.
Entretanto, quando um contingente considerável de empregados em todo o território obtém decisões judiciais condenatórias contra o Estado que não possam ser atendidas por dotações próprias há necessidade de se buscar fontes alternativas de receitas.
Foi o que aconteceu com o advento dos Planos Verão e Collor I, nos anos de 1989 e 1990. Não atualizaram os recursos do FGTS administrados pela Caixa Econômica Federal como deveriam ter feito. Daí as condenações judiciais em massa.
Para fazer face ao pagamento dessas condenações judiciais, em 2001 foi aprovada a Lei Complementar nº 110/2001 instituindo a contribuição social pelos empregadores em caso de despedida de empregado sem justa causa, à alíquota de 10% sobre o montante de todos os depósitos devidos, referentes ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS, durante a vigência do contrato de trabalho, acrescido das remunerações aplicáveis às contas vinculadas. Obedeceu aos mesmos moldes da multa de 40% prevista § 1º, do art. 18 da Lei nº 8.036/90 para casos de despedidas injustas, a fim de serem levantadas pelo empregado a título de indenização. Por isso, essa contribuição social foi logo apelidada de adicional de multa, embora tivesse a natureza jurídica bem diversa.
Embora sem prazo certo de vigência, essa contribuição tinha implícita sua arrecadação temporária, ou seja, até que fossem repostas as atualizações monetárias sonegadas pelo Plano Verão no período de 1-12-1988 a 28-2-1989 (16,64%) e pelo Plano Collor I no mês de abril de 1990 (44,8%).
Acontece que em julho de 2012 liquidaram-se todos de débitos resultantes de decisões judiciais repondo-se nas contas vinculadas dos empregados aqueles índices sonegados de 16,64% e 44,8% pelos Planos Verão e Collor I, respectivamente, pelo que o Conselho Curador do FGTS solicitou ao governo a extinção daquela contribuição social de 10%.
Entretanto, o governo passou a utilizar aqueles recursos excedentes recolhendo-os ao Tesouro Nacional, com a finalidade de melhorar o chamado superávit primário.
Não há dúvida que a partir de julho de 2012 aquela contribuição social criada com a finalidade específica de corrigir monetariamente os recursos do FGTS por determinação judicial passou a ter a natureza de imposto, um tributo destinado a cobrir os gastos gerais do Estado.
Daí a acertada extinção pelo Congresso Nacional, por meio do PLC nº 200/2012, daquela contribuição social que passou a ser inconstitucional, material e formalmente, por caracterizar-se como um imposto inominado submetido à observância dos requisitos no inciso I, do art. 154 da CF, ou seja: a) instituição mediante lei complementar; b) o novo imposto não pode ser cumulativo; e c) o fato gerador e a base de cálculo do novo imposto não podem ser os mesmos dos discriminados na CF.
Correta foi à decisão do Parlamento extinguindo um tributo de manifesta inconstitucionalidade.
As razões de veto, centradas na necessidade de desenvolver programas sociais como “Minha Casa, Minha Vida” não podem se sobrepor aos princípios constitucionais tributários
Outrossim, absolutamente impertinentes as razões fulcradas na Lei de Responsabilidade Fiscal, pois a extinção daquele adicional de 10% se deu em razão da extinção da despesa à qual se achava vinculada a receita.
A política de inclusão social há de estar inserida no âmbito da política do governo, compatibilizando as necessidades da sociedade com as possibilidades econômicas e jurídicas de transferências de riquezas para o erário. E isso significa eleger prioridades que, por sua vez, significa corte de despesas desnecessárias, como por exemplo, despesas com número excessivo de Ministérios e Secretarias com status de Ministério, com cargos em comissão que superam o número de servidores efetivos submetidos ao controle hierárquico, com as fantásticas viagens internacionais de diferentes autoridades, com uso indiscriminado de jatos da FAB para assuntos pessoais das autoridades etc.
Otimizando a infraestrutura material e pessoal verificar-se-á que muita coisa pode ser feita com recursos até modestos.
Hoje, existem inúmeras Agências Reguladoras como a ANATEL, ANEEL, ANP, ANTT, ANTAQUA, ANA, ANCINE, ANVISA, ANS e ANAC com autonomia administrativa e independência financeira, pois são elas caracterizadas como autarquias especiais, que poderiam resultar no enxugamento de órgãos e de pessoas nos Ministérios a que estavam subordinados, mas que continuam inchando como se tivessem aumentado a suas atribuições após a criação dessas Agências Reguladoras importadas dos Estados Unidos.
Não se pode criar um imposto novo vinculado a programas sociais, ferindo o princípio que veda a vinculação do produto de arrecadação de impostos a fundos, órgãos ou serviços, e ainda mais com a violação do art. 154, I da CF.
A Constituição e as leis orçamentárias e a de Responsabilidade Fiscal não permitem tamanha discricionariedade do Executivo.
Os programas de inclusão social devem necessariamente ser incluídos entre as prioridades do plano de ação governamental refletido nas LDO e na LOA. Não podem ser sacados do bolso de colete.
Concluindo, o veto aposto ao projeto legislativo que extinguia o adicional de 10%, porque já cumprida a missão que ensejou a sua criação, com as posteriores decisões do STF julgando constitucional a cobrança desse adicional (RREE nº 878313, j. 18-8-202 e nº 1317786, j. em 4-2-2022) implicou a união de dois poderes contra o Legislativo para manter um tributo manifestamente inconstitucional.
Razões político-financeiras do Estado prevaleceram sobre as razões jurídico-constitucionais, da mesma forma que razões políticas prevalecem sobre a liberdade de expressão assegurada como direito fundamental do cidadão protegida por cláusula pétrea, como temos visto nas votações do TSE.
Na verdade, não cabe ao Judiciário essa discricionariedade na aplicação ou inaplicação de preceito constitucional vigente.
SP, 24-6-2024.
* Texto publicado no Migalhas, edição nº 5.878, de 25-6-2024.