Garantismo, eficiência e eficácia na Lei nº 13.964

Adilson-Dallari

O Código de Processo Penal, Decreto-Lei nº 3.689, de 03/10/41, está em vigor há quase 70 anos. Somente agora descobriram que ele permite abusos de toda ordem nos inquéritos policiais. Não só o cerceamento de defesa, mas todas as violências possíveis contra os investigados, sem que o Poder Judiciário possa coibir tais práticas.

Pelo menos é isso que se depreende da Lei nº 13.964, de 24/12/19, na parte em que criou o juiz de garantias. Obviamente, se foi necessário criar um juiz especificamente para isso, é porque tais garantias não existiam ou não eram observadas.

No mínimo dos mínimos, é uma manifestação de desconfiança nos juízes que deveriam, até agora, cuidar das garantias, mas que estão sendo apresentados como omissos, parciais ou mesmo vingativos.

Este texto não é um estudo de direito processual penal. Tem o objetivo  de examinar as consequências práticas dessa medida, muito especialmente no tocante aos crimes de corrupção; prática institucionalizada pelo menos durante 15 anos. Em que medida o juiz de garantias ajuda, ou prejudica, o combate à corrupção?

Conforme já salientamos, nesta coluna, em artigo postulando “Por uma Assembleia Nacional Constituinte independente e exclusiva”, a Constituição Federal em vigor desde 1988 foi feita por parlamentares travestidos de constituintes, que legislaram para si mesmos.

Muitos desses parlamentares viveram (como vítimas e/ou autores) os tempos difíceis dos governos militares, em que havia censura, prisões arbitrárias, torturas, mortes, ocultação de cadáveres, de um lado, bem como atentados, sequestros, assaltos e assassinados do outro lado.

O fato é que os constituintes  trabalharam com os olhos no retrovisor, pretendendo evitar a repetição de tudo aquilo, mas sem se dar conta das significativas mudanças que estavam ocorrendo, no mundo todo, com o colapso da União Soviética, cujo símbolo principal é a queda do muro de Berlim, logo em 1989.

Em síntese, a preocupação com as garantias para acusados e presos foram estabelecidas para um mundo que não mais existia e que não mais poderia voltar a existir, dada a evidente mudança total no cenário político mundial. O Brasil de 1988 era totalmente diferente do Brasil de 1964.

Convém repetir que o enfoque deste estudo não está no direito processual penal, mas, sim, no funcionamento das instituições democráticas, muito especialmente na eficácia dos direitos e das garantias constitucionais do cidadão, das pessoas de bem, dos que trabalham e vivem honestamente, mas que são vítimas de uma criminalidade que atinge índices absurdos.

Pior que os crimes violentos, são os crimes contra o erário, que nem são percebidos pelas vítimas de uma péssima prestação de serviços públicos nas áreas de educação, saúde, transporte, segurança pública, infraestrutura em geral etc.

Para proteção dos acusados desses (e de outros) crimes, inclusive os já presos, foi criado o juiz de garantias, com a função exclusiva de controlar a legalidade da investigação criminal, decidindo sobre autorização de escutas, quebras de sigilo fiscal, bancário e de dados, operações de busca e apreensão, acordos de delação premiada, e todo um extenso rol de atividades e situações enumeradas nos 17 incisos do artigo 3º-B, do CPP, com a redação dada pela Lei nº 13.964/19, até o momento da recepção da denúncia ou da queixa.

Daí para a frente, o processo passa a ser de competência de outro juiz, de outra pessoa física, que cuidará da instrução e julgamento do processo. Essa separação é feita para garantir a imparcialidade do juiz julgador; para que, supostamente, ele não seja contaminado pelas decisões tomadas durante a investigação.

Nesse suposto motivo está necessariamente implícita uma acusação para os juízes que estavam atuando há quase 70 anos. Com a palavra as associações de magistrados.

Cabe registrar que as decisões proferidas pelo juiz de garantias não vinculam o juiz de instrução e julgamento e que os autos das matérias de competência do juiz de garantias não serão enviados ao juiz de instrução e julgamento.

Ou seja: fica perfeitamente delineado que, agora, serão necessários, dois juízes e dois processos distintos, o que vai ensejar a repetição de atos já praticados e uma infinidade de petições, embargos, recursos e todas as outras formas de protelação.

Obviamente, cada juiz responsável pelo desenvolvimento de cada uma dessas fases, vai precisar de uma infraestrutura, compreendendo espaços físicos, pessoal auxiliar e equipamentos.

Aliás, o §4º, do Artigo 3º-C, do CPP,  com a redação dada pela a Lei nº 13.964/19, dispõe, expressamente, que “fica assegurado às partes o amplo acesso aos autos acautelados na  secretaria do juízo de garantias”.

Inquestionavelmente, haverá maior dispêndio de recursos, maior burocracia e maior tempo de tramitação.

O Código de Processo Penal, de 1941, veio sendo alterado ao longo de todo o tempo decorrido, merecendo especial destaque as alterações feitas após a promulgação da Constituição de 1988, cujo Artigo 5º abriga 27 incisos cuidando de matéria penal e processual penal, com um formidável rol de direitos e garantias para acusados e presidiários.

Ao que se saiba, esse conjunto normativo tem funcionado a contento, no sentido de que, salvo raríssimas exceções, não há abusos ou excessos por parte do Judiciário. Ao contrário, o que se tem observado é que o cipoal normativo vigente tem permitido protelações de toda ordem, gerando um número indecente de prescrições, especialmente para os detentores de foro privilegiado, tendo como resultado final a impunidade.

Em vez de combater esse mal, a instituição do juiz de garantias concorre para seu agravamento. Entre outros aspectos, que certamente serão examinados pelos especialistas em matéria penal e processual penal, pode-se observar o anacronismo dessa nova legislação, criando novos meios burocráticos de controle em plena era da informação, quando a tecnologia permite um controle mais eficiente e imediato dos atos das autoridades em geral, inclusive aquelas responsáveis pela apuração de crimes.

Caminhando em sentido contrário, o Congresso rejeitou o uso de vídeo conferência, que poderia dar maior rapidez, eficiência, segurança (especialmente em se tratando de acusados e réus presos) e sensível economia no desenvolvimento dos processos.

A operação “lava jato” não teria sido o sucesso que foi (e continua sendo) se não fosse a abrangência das apurações, permitida pelo uso de meios eletrônicos, além, claro, da coragem de seus operadores e do rigor do juiz no exame das provas produzidas.

Em síntese, a criação do juiz de garantias veio solucionar problemas inexistentes e agravar um câncer do cenário político administrativo brasileiro: a corrupção. É bom lembrar que essa figura não estava prevista no projeto original do Poder Executivo, o chamado “pacote anticrime” do ministro Sérgio Moro, mas foi introduzido pelo Legislativo, por proposta do deputado federal Marcelo Freixo (PSol-RJ), acolhida pelo grupo de trabalho encarregado da matéria e aplaudido pelo plenário, repleto de acusados de crimes de corrupção, entre outros. Obviamente, o interesse não estava na correta apuração, mas, sim, na maior possível protelação.

Não sem razão o ministro Luiz Fux, do STF, em medida cautelar, suspendeu por tempo indeterminado sua aplicação, em alentada e muito bem fundamentada decisão, nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.299, que, na verdade engloba vários pedidos, formulados por diversos partidos políticos, bem como pela Associação dos Magistrados do Brasil (AMB) e Associação dos Juízes Federais (Ajufe).

Na fundamentação de sua liminar, o ministro Fux alerta que não está julgando o mérito, mas apenas questões constitucionais como, entre outras, a invasão de competência privativa do Poder Judiciário, por conter normas de organização judiciária, com a inevitável reestruturação que acarretará nos serviços, sem que haja estimativa de impacto orçamentário e financeiro, como manda a Constituição Federal.

Além dos questionamentos aqui examinados, existem inegáveis problemas de ordem prática. O mais evidente é o que decorre do disposto no Parágrafo único, do Artigo 3º-D, do CPP, com a redação dada pela a Lei nº 13.964/19, determinando que “nas comarcas em que funcionar apenas um juiz, os tribunais criarão um sistema de rodízio de magistrados, a fim de atender às disposições deste Capítulo”.

Como será feito esse enigmático e inusitado rodízio? Impossível saber a resposta e, evidentemente, colocá-lo em funcionamento, antes que cada  tribunal disponha sobre isso, conforme suas peculiaridades.

Na perspectiva do Direito Constitucional e Administrativo, cumpre ressaltar a ofensa aos princípios da duração razoável dos processos, assim como da eficiência e da economicidade, que não se restringem ao aparelhamento burocrático do Executivo, mas que abrangem também todas as instituições públicas, e todos os Poderes da República.

O garantismo exacerbado (não o teórico, de Luigi Ferrajoli, mas a deturpação dele) tem muitos interessados; porém, interesses pessoais de setores ou grupos, profissionais, econômicos ou políticos, não se confundem com o interesse público.

O que o povo brasileiro deseja é a maior eficácia da legislação e de todas as estruturas de combate ao crime, ao contrário do que ocorre atualmente, com a quase certeza da impunidade, pelo menos para os mais abastados e bem posicionados.

A certeza da punição é o mais eficiente fator de combate à criminalidade em geral e, muito especialmente, à corrupção.

 

Adilson Abreu Dallari é professor doutor pela PUC/SP e consultor jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 13 de fevereiro de 2020, 8h00.

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