Guerra fiscal continua na área do ICMS

Vários artigos sobre assunto já escrevemos. A única forma de acabar com as guerras fiscais deflagradas sob diferentes espécies incentivos fiscais concedidos unilateralmente por vários Estados da Federação é a de proibir constitucionalmente qualquer tipo de incentivo fiscal ou financeiro em matéria de ICMS. A experiência tem mostrado que estatuir requisitos legais para a validade desses incentivos fiscais não funciona. Nenhum Estado se dispõe a cumpri-los e o Judiciário tem demorado demais para condenar esses benefícios natimortos do ponto de vista jurídico.

O Governo do Estado de São Paulo acaba de editar o Decreto nº 58.918, de 27 de fevereiro de 2013 para neutralizar, ou tentar neutralizar a ação do astuto Estado fornecedor que insiste em conceder incentivos fiscais sem a intermediação do Confaz, como exigem a Constituição e a Lei complementar nº 24/75.

Esse Decreto, em síntese, exige o recolhimento do ICMS por meio de guia especial antes da entrada da mercadoria incentivada em seu território, no valor correspondente àquele que o remetente deixou de pagar por conta do incentivo concedido pelo Estado de origem. Alternativamente, exige que o destinatário paulista recolha o ICMS que o fornecedor deixou de pagar por conta do incentivo outorgado unilateralmente pelo Estado remetente.

O Decreto paulista irradia efeitos jurídicos fora de seu território ao ordenar que o contribuinte estabelecido em outro Estado promova o recolhimento do ICMS, antes da mercadoria ingressar no território paulista. E no que tange à obrigação dirigida ao adquirente situado em território paulista altera unilateralmente o aspecto temporal do fato gerador do ICMS, sem apoio na lei de regência nacional do imposto, no Convênio ou na Constituição Federal. Vale dizer, viola o principio da territorialidade da lei paulista, sem amparo na regra do art. 102 do CTN.

Parece que o fisco paulista desenvolveu o seguinte raciocínio: se o Estado de origem não quer cobrar o imposto integralmente eu, fisco do Estado de destino, fico com aquele imposto. Só que em direito tributário o fato de um Estado abrir mão da parcela do imposto que lhe cabe, constitucional e legalmente não implica acréscimo de competência impositiva de outro Estado. Aliás, no direito comum, também é assim. A renúncia de determinado direito por alguém não enseja apropriação desse direito por outro alguém.

Esse Decreto veio como sucedâneo à invalidação pelo Judiciário paulista do Comunicado CAT nº 36/2004 que, salvo melhor juízo, regulava adequadamente a questão do crédito do ICMS decorrente de incentivo fiscal unilateralmente concedido.

Realmente, o referido Comunicado prescrevia que o adquirente de mercadoria incentivada procedente de outro Estado só poderia creditar-se pelo efetivo montante do imposto pago e não pelo equivalente à alíquota de 12% que é o percentual correspondente às mercadorias destinadas ao Estado de São Paulo. Se na origem, o remetente pagou, por exemplo, apenas 6% o destinatário situado em São Paulo não poderia creditar-se de 12% a pretexto de que essa é a alíquota interestadual incidente nos termos de Resolução Senatorial, com respaldo na Constituição.

A Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta contra CAT nº 36/2004 não foi conhecida por entender a Corte Suprema que o ato atacado não se revestia de normatividade, caracterizando-se como um mero ato administrativo (Adin nº 3350-SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, Dje de 31-10-2008). Porém, o TJESP invalidou o referido comunicado CAT sob o fundamento de que a questão da glosa dos créditos não pode ser disciplinada por ato normativo subalterno, devendo a eventual irregularidade praticada pelo Estado de origem ser levada ao Poder Judiciário.

Penso que em termos de combate à guerra fiscal aquele Comunicado CAT nº 36/2004 apresentava aspectos jurídicos menos vulneráveis do que o Decreto sob comento, cuja inconstitucionalidade emerge com solar clareza.

Realmente, não é de todo indefensável a proibição de creditar o que não foi cobrado na operação anterior.

O princípio da não-cumulatividade impõe a compensação do que “for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal” (art. 155, § 2º, 7, da CF).

Pressupõe, pois, a incidência do imposto sobre mercadorias e serviços de conformidade com a legislação interna de cada Estado conformada com a legislação nacional (Lei complementar nº 87/96, Lei complementar nº 24/75 e Convênios).

Vale dizer, só não haverá incidência do imposto nos casos de isenções e demais incentivos fiscais regulados por convênio firmado pelos Estados (art. 155, § 2º, XII, g, da CF). Por óbvio, ressalva-se os casos de imunidade.

Ora, se determinado Estado concede isenção unilateral, sem intermediação do Confaz, não se poderá sustentar que o imposto está sendo “cobrado”, palavra que, como todos sabemos, significa incidência da norma jurídica de tributação, independendo, pois, do efetivo ingresso de dinheiro ao erário.

De fato, se a própria lei do ente político tributante diz que na saída de determinada mercadoria não há incidência do imposto no percentual fixado pela Resolução Senatorial, mas, apenas parcial, por causa do incentivo concedido, parece restar claro que não estamos diante de imposto cobrado na operação anterior por outro Estado, a não ser cobrado de forma parcial, forma essa não autorizada na lei de regência nacional. Em sendo parcial a incidência do imposto, parcial deve ser o crédito a ser reconhecido.

Mas essa questão, como decidiu a 7ª Câmara de Direito Público do E. TJESP, deve ser dirimida por meio de ação judicial competente. (Apelação Cível em MS nº 518.847.5/5-00).

Contra o V. Acórdão proferido nos autos do MS retrocitado, foi requerido perante o STF, a suspensão da segurança por parte do impetrante, Sindicado do Comércio Atacadista, Importador, Exportador e Distribuidor de Peças, Acessórios e Componentes para Veículos em Geral do Estado de São Paulo – SICAP. A Ministra Ellen Gracie, então Presidente da Corte Suprema, em longa decisão monocrática deferiu o pedido de suspensão de segurança enfatizando descaber o exame do mérito do Writ. Contudo, em sede de Agravo Regimental reconsiderou a sua decisão para negar seguimento ao pedido de suspensão, convencida de que a matéria discutida envolve exame prévio da legislação infraconstitucional pertinente (SS nº 3482 ASR/SP, Rel. Min. Presidente, Ellen Gracie, DJe de 1-3-2012).

A insegurança jurídica nessa matéria é permanente, pois não há até hoje decisão de mérito quanto à validade ou não da glosa do ICMS decorrente de incentivo fiscal concedido unilateralmente como dispunha o Comunicado CAT nº 36/2004. Mas, a inconstitucionalidade do Decreto nº 58.918/13 exsurge com lapidar clareza.

O certo é que a jurisprudência do STF inclina-se no sentido de vedar apenas os créditos decorrentes de incentivos unilateralmente concedidos pelos Estados sob forma de isenção e não incidência. Essa questão está sendo discutida no RE nº 28075, onde se reconheceu a existência de repercussão geral. Realmente, LC nº 24/75 extrapolou os limites da delegação constitucional ao regular o disposto no § 6º, do art. 23, da então vigente Constituição Federal de 1969 (Emenda 1/69) que submetia ao regime de convênios apenas a concessão ou revogação de isenções do ICMS. Não se referia a isenções, incentivos e benefícios fiscais como prescreve a letra g, do inciso XI, do § 2º, do art. 155, da
Constituição Federal vigente.

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