Imbróglio jurídico em torno do socorro ao Estado do Rio

 

Como escrevemos em artigo anteriormente divulgado pela mídia, a União tem a faculdade de intervir nos Estados que se tornaram inadimplentes, suspendendo o pagamento de dívidas fundadas por mais de dois anos. São os casos dos Estados do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas gerais.

Contudo, a União prefere socorrer financeiramente o perdulário Estado do Rio de Janeiro que está literalmente quebrado financeiramente, sequer tendo recursos suficientes para pagamento da folha de servidores.

Só que apesar da boa vontade política, o setor jurídico da União vem levantando uma séria de dificuldades jurídicas, talvez, por excesso de cautela, tendo em vista o recente impeachment da Presidente por violação de lei orçamentária.

Para juristas do Planalto a violação de normas da LRF ensejariam crime de responsabilidade a justificar abertura do processo de impeachment. O equívoco é manifesto. A contrariedade às normas da LRF, que não tem a natureza de lei orçamentária, implica caracterização de crimes contra as finanças públicas tipificados na Lei nº 10.028, de 19 de outubro de 2000, sancionada na mesma data da LRF. São crimes comuns julgados pelo STF e não crime de responsabilidade (infração política) que é julgado pelo Senado Federal. Ressalvam-se as hipóteses dos incisos 5 a 12, do art. 10 da Lei nº 1.79/50 introduzidas pela Lei nº 10.028/00 que não têm pertinência com o presente trabalho.

O socorro financeiro, sem prévia alteração da LRF, implicaria violação de seus arts. 35 e 36. De confusão em confusão criou-se um verdadeiro imbróglio jurídico. Aventou-se a inusitada proposta de submeter a ajuda financeira ao Rio à previa homologação do STF com base em futura legislação modificativa a atual LRF, mesmo não dispondo sequer de um projeto legislativo a respeito. Tudo indica que está sendo articulado um movimento para invalidar a LRF em seus artigos mais importantes para a manutenção do equilíbrio das contas públicas. Nunca é demais lembrar as inúmeras tentativas feitas para desvirtuar o espírito dessa Lei de Responsabilidade Fiscal que veio à luz por imposição de organismos financeiros internacionais para por um cobro à então reinante política de gastança pública descontrolada.

Na verdade, não haverá nenhuma violação aos dispositivos apontados caso a União resolva auxiliar financeiramente o Estado do Rio.

Vejamos os comentários que fizemos sobre esses artigos em nossa obra[1].

“Art. 35. É vedada a realização de operação de crédito entre um ente da Federação, diretamente ou por intermédio de ­fundo, autar­quia, fundação ou empresa estatal dependente, e outro, inclusive suas entidades da administração indireta, ainda que sob a forma de novação, refinanciamento ou postergação de dívida contraída anteriormente.

  • 1º Excetuam-se da vedação a que se refere o caput as operações entre instituição financeira estatal e outro ente da Federação, inclu­si­ve suas entidades de administração indireta, que não se destinem a:

I – financiar, direta ou indiretamente, despesas correntes;

II – refinanciar dívidas não contraídas junto à própria instituição concedente.

  • 2º O disposto no caput não impede Estados e Municípios de comprar títulos da dívida da União como aplicação de suas disponibilidades”.

 

Art. 35, caput

 

O dispositivo do caput sob comento estabelece proibição de realizar operações de crédito entre si, direta ou indiretamente, ainda que, sob a forma de novação, refinanciamento ou postergação de dívida contraída ante­riormente.

Alguns autores, defensores desse dispositivo, sustentam que essa proibi­ção visa assegurar a manutenção do equilíbrio federativo que pode­ria ser distorcido por conta dessas operações creditícias. Muito ao contrário, essa norma proibitiva atenta contra os princípios da Federação do tipo cooperativo como à prevista na norma do art. 23[2] da CF. As entidades componentes da Federação, em matéria de opera­ções de crédito, não ­podem sujeitar-se a restrições outras que não sejam as impos­tas pelo Senado Federal (art. 52, incisos IV a IX, da CF). Qualquer outro dispo­sitivo infraconstitucional que interfira na liberdade de contratação de operações creditícias por parte dos Estados e Municípios, como o faz a norma sob comento, fere o princípio federativo, que é protegido por cláusula pétrea. A prevalecer tais restrições, apesar das exceções previs­tas em seus parágrafos, a União não poderia ter renegociado a dívida externa brasi­leira, nos moldes da reestruturação feita em 1994, quando ela assumiu as dívidas dos Estados e Municípios. E mais, a faculdade prevista no parágrafo único, do art. 160, da CF, no sentido de a União e Estados condicionarem a entrega de recursos financeiros provenientes da repartição de receitas tributárias ao prévio pagamento de seus crédi­tos, está a demonstrar exata­mente a possibilidade constitucional de uma entidade política ser credora de outra entidade política, inclusive, por força de operações de crédito realizadas entre elas. Conferir tratamento jurídico a um fenômeno essencialmente político não é, e nem pode ser, uma boa solução, pois, poderá resultar em um impasse político-insti­tucional. O dispositivo em questão seria viável se houvesse uma divisão equitativa do bolo tributário entre as entidades componentes da Federação.

Entretanto, a transgressão do preceito expresso no caput, em tese, ­importa em ato de improbidade administrativa, nos termos do arts. 10 e 11 da Lei n. 8.429/1992. Contudo, em relação a aventada ajuda financeira ao Rio, a aplicação dos arts. 10 11 retromencionados seria inconstitucional.

 

  • do art. 35

 

A proibição do caput, porém, não é absoluta, abrindo-se exceção para a contratação de operações entre a instituição financeira estatal e outro ente político (que não seja seu controlador), inclusive, suas autar­quias, desde que não se destinem ao financiamento de despesas correntes, ou ao refinanciamento de dívidas contraídas junto a própria instituição concedente.

Não estão abrangidas, pois, na vedação o financiamento de programas estaduais ou municipais, por instituições financeiras oficiais como o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal, o Banco Nacional de Desen­volvimento Econômico etc. Porém, não pode haver refinanciamento de dívida já contraída anteriormente perante essas instituições.

 

  • do art. 35

 

Sempre que o ente político emitir títulos de dívida pública, ­­colocan­do-os no mercado, importa na contração de dívida junto ao comprador, caracteri­zando uma operação de crédito. Assim, nos termos do caput, os Estados e Municípios não poderiam adquirir títulos da União. Daí a ressal­va desse § 2º a fim de facultar, de um lado, a aplicação das dispo­nibilidades dos entes públicos regionais e locais nos títulos da dívida pública da União, e de outro lado, não interferir no mecanismo de controle do meio circulante, através das manobras open market, operadas pelo Banco Central.

Assim, descabe falar-se em alteração da LRF. Poderia quando muito, se for o caso, pleitear junto ao Senado Federal a alteração do limite de endividamento do Estado do Rio, providência que não implica alteração do art. 35, nem do art. 36 adiante examinado.

O art. 36, por sua vez, prescreve:

 

“Art. 36. É proibida a operação de crédito entre uma instituição financeira estatal e o ente da Federação que a controle, na qualidade de beneficiário do empréstimo.

Parágrafo único. O disposto no caput não proíbe instituição financeira controlada de adquirir, no mercado, títulos da dívida pública para atender investimentos de seus clientes, ou títulos da dívida de emissão da União para aplicação de recursos ­próprios”

 

Esse dispositivo vai de encontro aos princípios da moralidade e da eficiência da Administração Pública, ao vedar, expressamente, operação de crédito entre o ente político e a instituição financeira estatal sob seu controle, o que assegura uma gestão fiscal responsável, objetivada pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Antes dessa proibição, era comum as instituições financeiras oficiais funcionarem como caixa auxiliar do tesouro das respectivas entidades políticas a que estavam vinculadas, principal­mente, no âmbito dos Estados membros. O Banespa, por exemplo, realizou tantas operações de crédito com o seu ente político contro­lador que acabou ficando literalmente “quebrado”. Foi preciso privatizá-lo. Dada a facilidade na realização dessas operações, nem sempre realizadas com transparência de sorte a possibilitar fiscalização eficiente, proliferou-se a criação de instituições financeiras oficiais no âmbito das entidades políticas regionais. Vários municípios, também, tentaram ­obter autorizações do Banco Central do Brasil para criação de suas instituições financeiras, mas, felizmente, elas não foram concedidas.

 

Parágrafo único do Art. 36

 

Duas ressalvas são feitas. A primeira delas permite aquisição pelas instituições financeiras, no mercado, de quaisquer títulos da dívida públi­ca, inclusive do ente político controlador, desde que seja para atender os investimentos de seus clientes. A Segunda ressalva diz respeito à aquisição de títulos da dívida pública da União para aplicação de seus recursos, hipótese em que as instituições financeiras estariam operando como ­simples investidoras, ou intermediárias de investidores particulares.

 

O art. 36 não tem menor pertinência com a pretendida ajuda financeira da União ao Estado do Rio. O Estado do Rio não poderia efetuar operação de crédito com o seu Banco estatal que, aliás, não existe. E se existisse, e efetivamente fizesse operação creditícia com essa instituição bancária estatal, só para fins de argumentação, nenhuma infração de natureza orçamentária existiria. Primeiro, porque a LRF não tem natureza orçamentária. Segundo, porque não há sanção prevista na Lei nº 10.028/00 para a hipótese de contrariedade a esse artigo 36. Sequer infração administrativa configura ao teor do art. 5º da Lei nº 10.028/00.

Concluindo, fica bem difícil entender tantos obstáculos jurídicos levantados para fazer a operação de socorro financeiro ao falido Estado do Rio de Janeiro. A grande verdade é que setores do governo nunca viram com bons olhos a LRF que funciona como uma camisa de força para evitar desperdícios financeiros do Estado. Sempre buscaram pretextos para tentar desfigurar essa LRF que, na prática, transformou-se em lei de irresponsabilidade fiscal. O limite global de despesas de pessoal nunca foi observado. A limitação de empenhos na hipótese do art. 9º, também, jamais foi executada. Os requisitos essenciais da responsabilidade na gestão fiscal, previstos no art. 11, igualmente, vêm sendo ignorados; pelo contrário, mensalmente, vêm sendo despejadas leis especiais e específicas que promovem exonerações fiscais de toda ordem causando um rombo de mais de R$ 40 bilhões ao ano. O que está por trás desse imbróglio jurídico?

 

SP, 1º-2-17.

 

* Jurista, com 32 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas.  Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito.  Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica.

[1] Cf. nosso Responsabilidade fiscal. São Paulo: Ed. Juarez de Oliveira, 2000, p. 163-167.

[2] O referido artigo confere competência comum à União, aos Estados, ao distrit9o Federal e aos Municípios nas matérias elencadas em seus incisos I a XII, atribuindo à lei complementar a tarefa de fixar as normas para a cooperação entre os entes políticos.

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