A imunidade tributária, consoante doutrina majoritária que adotamos, representa uma limitação do poder de tributar, e como tal ela está inserida no texto constitucional concernente à outorga de competência tributária. A isenção situa-se no campo do exercício da competência tributária pelos entes federados de sorte que ela está inserida na legislação ordinária de cada entidade tributante.
A imunidade quando dependente de regulamentação só pode ser feita por lei complementar nos precisos termos do art. 146, II da CF.
É o caso da imunidade do ITBI nas hipóteses de “transmissão de bens ou direitos decorrentes de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil.” (art. 156, § 2º, segunda parte do inciso I da CF).
O Código Tributário Nacional, que veio à luz na vigência da Emenda nº 18/65, regulamentando a imunidade para apurar a atividade preponderante, dispôs nos §§ 1٥ e 2º, do art. 37:
“§ 1º Considera-se caracterizada a atividade preponderante referida neste artigo quando mais de cinquenta por cento da receita operacional da pessoa jurídica adquirente, nos dois anos anteriores e nos dois anos subsequentes à aquisição, decorrer de transações mencionadas neste artigo.
§ 2º Se a pessoa jurídica adquirente iniciar suas atividades após a aquisição, ou menos de dois anos antes dela, apurar-se-á a preponderância referida no parágrafo anterior, levando em conta os três primeiros anos seguintes à data da aquisição.”
A Lei nº 11.154/91 do Município de São Paulo reproduz os dispositivos dos §§ 1º e 2º do art. 37 do CTN em seu art. 4º e §§ 1º e 2º, porém, introduziu o § 3º com a seguinte redação:
“§ 3º Fica prejudicada a análise da atividade preponderante, incidindo o imposto, quando a pessoa jurídica adquirente dos bens ou direitos tiver existência em período inferior ao previsto nos parágrafos 1º e 2٥ deste artigo.” (Acrescentado pela Lei nº 13.402/02).
A matriz constitucional da regulamentação da imunidade do ITBI pelo CTN é a norma do § 2º, do art. 9º da Emenda nº 18/65 que assim prescreve:
“§ 2º O imposto não incide sobre a transmissão dos bens ou direitos referidos neste artigo, para sua incorporação ao capital de pessoas jurídicas, salvo o daquelas cuja atividade preponderante, como definida em lei complementar, seja a venda ou a locação da propriedade imobiliária ou a cessão de direitos relativos à sua aquisição.” (art. 9º, § 2٥).
Antes dessa Emenda, a Constituição de 1946 incluía expressamente no campo de tributação a incorporação de imóveis por subscrição de capital, nos seguintes termos:
“Art. 19 – Compete aos Estados decretar impostos sobre:
*I – propriedade territorial, exceto a urbana;
II – transmissão de propriedade causa mortis;
III – transmissão de propriedade imobiliária inter vivos e sua incdorporação ao capital de sociedades:”
Do exame de diferentes textos constitucionais pode-se concluir que houve uma evolução legislativa em relação à incorporação de imóveis por subscrição ou aumento de capital de pessoas jurídicas obedecendo à seguinte sequência:
(a) No regime da Constituição de 1946 a operação era tributada pelo imposto sobre transmissão de propriedade;
(b) No regime da Emenda 18/65 essa operação era imune do imposto sobre transmissão de propriedade imobiliária, ressalvada a hipótese de atividade imobiliária preponderante segundo definição da lei complementar;
(c) No regime da Constituição de 1988 essa operação passou a gozar de imunidade incondicional, ao contrário das incorporações imobiliárias resultantes de incorporação, fusão, cisão e extinção de pessoas jurídicas dependentes do requisito das inexistência de preponderância da atividade imobiliária por parte do adquirente.
O CTN por ter sido elaborado e promulgado com base na Emenda Constitucional nº 18/65 submeteu todas as hipóteses de imunidade à restrição nos casos de preponderância da atividade aí mencionada.
Da leitura do inciso I, do § 2º do art. 156 da Constituição de 1988 nota-se claramente que a imunidade tributária na hipótese de incorporação de bens imóveis ao patrimônio das pessoas jurídicas em realização de capital, não está sujeita às condições da lei complementar. Trata-se de caso de imunidade pura ou não condicionada, objeto de análise em trabalho anteriormente publicado.
Entretanto, a jurisprudência dos tribunais, apegada ao entendimento vigorante à época em que a imunidade do imposto na operação de incorporação de imóveis (não de uma pessoa jurídica por outra) ao patrimônio de uma pessoa jurídica como resultado da subscrição de capital dependia da inexistência de atividade imobiliária preponderante por parte da pessoa jurídica adquirente, ainda hoje, como se nota dos recentes julgados do E. TJESP, vem exigindo o requisito dessa atividade preponderante que a Constituição em vigor aboliu em relação à essa modalidade de transmissão da propriedade imobiliária:
EMENTA: “Reexame necessário. Ação declaratória de inexistência de relação jurídico-tributária. Imposto sobre transmissão “inter vivos” de bens imóveis. Alegação de imunidade por se cuidar de transferência de bem, decorrente de incorporação a patrimônio de pessoa jurídica, em realização de capital. Prova insuficiente para demonstrar que se não configura a exceção prevista na parte final do artigo 156, § 2º, I, da Constituição da República. Sentença alterada”. (Apelação nº 006537-76.2010.8.26.0223/TJSP, Rel. Des. Geraldo Xavier, 14ª Câmara de Direito Público, julgado em 06/11/2014).
EMENTA: “AGRAVO AÇÃO ORDINÁRIA ITBI referente à incorporação, pelo Banco Santander, de duas instituições financeiras, em 2007 – Município de São Paulo – Antecipação de tutela – Requisitos – Presença, pois: 1) Verossímil a alegação de que o incorporador não tem como atividade preponderante a compra e venda, locação, ou arrendamento mercantil dos bens incorporados; 2) Perigo da demora resultante da possibilidade de exigência indevida de imposto, dada a provável imunidade; 3) cuida-se de provimento antecipado reversível RECURSO DO MUNICÍPIO IMPROVIDO”. (Agravo de Instrumento nº 2163619-87.2014.8.26.0000/TJSP, Rel. Des. Rodrigues de Aguiar, 15ª Câmara de Direito Público, julgado em 30/10/2014).
EMENTA: “APELAÇÃO AÇÃO ORDINÁRIA ITBI, exercício de 2006 – Município de São Paulo – Capital social da autora integralizado por três imóveis – Imunidade tributária – Incidência, pois a autora não tem como atividade preponderante a administração de bens imóveis – Inexistência, ademais, de atos tendentes a dissimular a ocorrência do fato gerador, de modo que o comodato de tais imóveis à empresa controlada pela autora, por si só, não autoriza o afastamento da imunidade tributária – RECURSO PROVIDO”. (Apelação nº 0018615-25.2013.8.26.0053/TJSP, Rel. Des. Rodrigues de Aguiar, 15ª Câmara de Direito Público, julgado em 25/09/2014)
EMENTA: “APELAÇÃO – Anulatória. ITBI. Imóveis incorporados ao patrimônio da sociedade em integralização de capital. Sentença de procedência, reconhecendo imunidade prevista no artigo 156, § 2º, I da CF. Descabimento. Empresa que tem por atividade preponderante a locação de bens imóveis. Hipótese expressamente excepcionada da regra imunizante. Recurso provido”. (Apelação nº 0611886-07.2008.8.26.0053/TJSP, Rel. Des. João Alberto Pezarini, 14ª Câmara de Direito Público, julgamento em 09/10/2014)
EMENTA: “Agravo de Instrumento – Decisão que indeferiu pedido de liminar para suspender a inexigibilidade do crédito tributário – Imunidade do artigo 156, §2°, I do CF – Decisão administrativa que com base em nos documentos anexados pelo agravante e decisão do Auditor Fiscal indeferiu o pedido de não incidência do ITBI-V na transmissão dos imóveis, diante da constatação de receita operacional imobiliária superior a 50% da receita total da empresa agravante – Decisão de indeferimento da liminar mantida – Recurso não provido”. (Agravo de Instrumento nº 2043845.97.2013.8.26.0000/TJSP, Rel. Des. Cláudio Marques, 14ª Câmara de Direito Público, julgamento em 31/07/2014).
Por ser matéria pertinente à questão de ordem constitucional não há julgados do STJ enfrentando o mérito dessa imunidade tributária.
Feitos esses esclarecimentos, cabe examinar neste artigo se são válidas ou não as regras da regulamentação das atividades preponderantes previstas nos § § 1º e 2º do art. 37 do CTN.
Esses dispositivos, a nosso ver, não foram recepcionados pela Constituição de 1988 que não mais faz referência à definição da atividade preponderante por lei complementar. Assim sendo, os lapsos temporais fixados para a apuração da preponderância da atividade do adquirente imune são inconstitucionais. Esse é o primeiro posicionamento.
Ainda que superada a tese antes esposada, pela redação da Constituição Federal de 1988 apenas os casos de aquisição imobiliária decorrente de incorporação ou de fusão de uma pessoa jurídica por outra ou com outra, ou ainda, no caso de reversão dos bens imóveis ao sócio ou acionista que deu em pagamento de subscrição ou aumento de capital é que poderiam ser submetidos ao exame do requisito da preponderância de atividade, consoante se depreende do inciso II, do art. 36 e parágrafo único do CTN. Nada dispõe o Código sobre a hipótese de cisão parcial ou total.
Outrossim, nunca é demais relembrar que a incorporação de bem imóvel ao patrimônio da pessoa jurídica decorrente do pagamento de capital subscrito absolutamente nada tem a ver com a figura jurídica da incorporação definida na lei de sociedade anônima, Lei nº 6.404/76 que prescreve em seu art. 227:
“Art. 227 A incorporação é a operação pela qual uma ou mais sociedades são absorvidas por outra, que lhes sucede em todos os direitos e obrigações.”
A fusão e a cisão estão definidas nos arts. 228 e 229, respectivamente. Entretanto, doutrina e jurisprudência vêm confundindo incorporação de imóvel decorrente de subscrição de capital com a incorporação definida na Lei nº 6.404/76 que implica absorção de uma empresa pela outra.
Pior ainda é a Lei municipal de nº 11.154/91 que determina a cobrança do ITBI na hipótese de não poder apurar a preponderância da atividade considerando os lapsos temporais mencionadas no art. 4º que, repita-se, são coincidentes com aqueles previstos no CTN.
Evidentemente, esse dispositivo municipal inovou a regulamentação cabente exclusivamente à lei complementar, de aplicação no âmbito nacional, incidindo em gritante inconstitucionalidade.
Ainda que considerados válidos os dispositivos do CTN para apuração da preponderância de atividade teremos um problema de ordem prática não abordado pela generalidade dos autores.
A maioria das legislações municipais, a exemplo do art. 12 da Lei nº 11.154/91 do Município de São Paulo, adota o regime de recolhimento do ITBI antes da lavratura da escritura aquisitiva de compra e venda, e não no ato do registro quando se opera efetivamente a transmissão da propriedade imobiliária.
Como compatibilizar esse regime de recolhimento no ato da outorga da escritura de compra e venda, com o exame da preponderância da atividade de compra e venda de imóveis nos dois anos anteriores e nos dois anos posteriores à aquisição?
Ora, a aquisição que se dá com a celebração do contrato de compra e venda do imóvel, por escritura pública ou por instrumento particular equivalente constitui exatamente o marco inicial da contagem do prazo de dois anos antes dela e depois dela.
A certificação de imunidade pela inexistência de atividade preponderante de compra e venda de imóvel, ou de sua locação ou de arrendamento mercantil só poderá ser dada, se for o caso, decorridos dois anos da data da escritura ou instrumento particular equivalente. Isso significa que a escritura aquisitiva fica sem registro até o advento da condição, qual seja a inexistência de atividade preponderante nos dois anos seguintes à data da aquisição. Se o notário recusar-se a lavrar a escritura sem prévio pagamento do imposto, em obediência à legislação municipal em desconformidade com a disposição do art. 35, I do CTN que elege como fato gerador do ITBI a transmissão da propriedade imobiliária, o qual somente ocorre com o registro do título de transferência no registro imobiliário competente (art. 1.245 do CC), o interessado terá que percorrer a morosa via da ação judicial para obter a medida liminar para adquirir o imóvel sem prévia prova de quitação do imposto.
Dentro da ordem jurídica global, o prazo bienal previsto no CTN só pode ser aplicada em relação ao passado, isto é, inexistente a atividade preponderante nos dois anos anteriores à data de escritura aquisitiva reconhece-se a imunidade, a fim de possibilitar o registro dessa escritura no registro imobiliário competente. Não sendo o ITBI um imposto de incidência mensal descabe a figura da suspensão da imunidade de que cogita o § 1º, do art. 14 do CTN. Muito menos cabe a figura da revogação da imunidade, porque imunidade configura garantia fundamental do contribuinte protegida por cláusula pétrea. O cmprimento do requisito para gozo da imunidade dever ser aferida no momento da escritura aquisitiva ou de seu registro mediante exame dos objetivos estatutários. Se ao depois, isto é, dois anos após a aquisição sem pagamento do ITBI for constatado que a adquirente praticou atividade preponderante referido no aludido dispositivo legal a questão deve ser examinada à luz do art. 135 do CTN que responsabiliza pessoalmente o sócio gerente ou o administrador pelo pagamento de tributos decorrentes da prática de atos com excesso de poderes ou com infração de lei, contrato ou estatutos.
Infelizmente, a inobservância do princípio da hierarquia vertical das leis – legislação municipal afrontando dispositivos do CTN que, por sua vez, violam preceitos constitucionais – tem criado empecilhos de monta no cumprimento de obrigações tributárias dificultando a vida dos contribuintes e encarecendo o custo dos produtos e serviços.
SP, 1-12-14.
Jurista, com 28 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.