A ex-presidente Dilma Rousseff, que teve seu mandato presidencial cassado, postula o registro de sua candidatura ao Senado, pelo estado de Minas Gerais. O assunto está em discussão no TRE-MG, sendo, portanto, muito oportuno um exame das normas que disciplinam a matéria.
O parágrafo único do artigo 52 da CF dispõe que a condenação se limitará à perda do cargo, “com inabilitação, por oito anos, para o exercício da função pública”. No entendimento unânime dos juristas que se manifestaram sobre o assunto, essa inabilitação é consequência inafastável da condenação pelo cometimento de crime de responsabilidade. Entretanto, como se sabe, no caso da cassação do mandato da então presidente Dilma Rousseff, o Senado, em sessão presidida pelo ministro Ricardo Levandowski, decidiu não aplicar essa penalidade. Contra esse fatiamento do texto constitucional foram apresentados diversos mandados de segurança perante o STF, os quais foram distribuídos à ministra Rosa Weber.
Ao negar a concessão de medida liminar (Medida Cautelar ao MS 34.394-DF), assim entendeu a ministra:
“O alegado receio de ineficácia do provimento final deve ser demonstrado a partir de um risco de dano específico e concreto. A mera especulação de notícias veiculadas em meios de comunicação quanto a eventual convite para o exercício de função pública, como argumentado, não traz prejuízo ou dano para o julgamento definitivo do mérito desta ação constitucional. Em resumo, a não demonstração do perigo da demora, consistente no risco de frustração da eficácia do pedido deduzido na ação, na hipótese, de procedência, ao final, é causa suficiente para a não concessão da liminar”.
Pois bem, no presente momento não se trata de mera “especulação”, mas, sim, de um caso concreto: o pedido de registro de candidatura de quem foi condenado pela prática de crime de responsabilidade.
Para melhor compreensão dos aspectos jurídicos da questão, convém examinar quais teriam sido os possíveis fundamentos dessa semi-impunidade. O processo de julgamento dos crimes de responsabilidade presidencial é tratado pela Lei 1.079, de 10/4/1950, cujo artigo 33 dispõe que, no caso de condenação, o Senado “fixará o prazo de inabilitação do condenado para o exercício de qualquer função pública”. Esse dispositivo deixa claro que seriam tomadas duas decisões: uma quanto à condenação e outra quanto à inabilitação.
Tal dispositivo era, então, perfeitamente ajustado ao texto da Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 1946, que, no parágrafo 3º, do artigo 62, assim dispunha: “§ 3º. Não poderá o Senado Federal impor outra pena que não seja a da perda do cargo, com inabilitação, até cinco anos, para o exercício de qualquer função pública, sem prejuízo da ação da Justiça ordinária”. Note-se o “com inabilitação”, deixando aberta apenas a quantificação. Portanto, embora houvesse a necessidade de duas decisões, é inquestionável que o condenado perderia o cargo e ficaria inabilitado para o exercício de função pública, não havendo possibilidade de absolvição quanto a essa decorrência necessária da condenação.
O texto constitucional em vigor efetivamente não comporta duas deliberações, mas somente uma, pois o prazo da inabilitação já está fixado no parágrafo único do artigo 52: “Com inabilitação, por oito anos, para o exercício da função pública”. Não há sombra de dúvida quanto ao fato de que o Senado tomará apenas uma decisão, condenando ou absolvendo, mas, no caso de condenação, não pode furtar-se (e este verbo é bem expressivo) ao fiel cumprimento da Constituição.
Conforme ensina Michel Temer, em obra de doutrina, a Constituição de 1946 está revogada e o artigo 33 da Lei 1.079/50 não foi recepcionado pela Constituição em vigor: “A ordem constitucional nova, por ser tal, é incompatível com a ordem constitucional antiga. Aquela revoga esta. Entretanto, não há necessidade de nova produção legislativa infraconstitucional. A Constituição nova recebe a ordem normativa que surgiu sob o império de Constituições anteriores se com ela for compatível” (Elementos de Direito Constitucional, 24ª edição, 4ª tiragem, Malheiros Editores, São Paulo, 2017, p. 40.). A recepção somente ocorre se houver compatibilidade, condição essa que não existe em face do texto constitucional vigente.
Não se questiona que as normas jurídicas comportam uma pluralidade de interpretações, cabendo ao intérprete buscar a melhor interpretação entre as possíveis. Mas é também absolutamente inquestionável que a lei ordinária deve ser interpretada à luz da Constituição, e não o contrário. No caso, não é possível aplicar a literalidade da lei ordinária, pois ela se choca com a racionalidade do texto constitucional, que, claramente, visa afastar da vida pública quem, abusando do mandato, cometeu crime de responsabilidade.
Os tribunais superiores cada vez mais aplicam em suas decisões os princípios da racionalidade e da razoabilidade, muito bem explicitados por Hugo de Brito Machado: “O elemento formal permite sempre duas ou mais interpretações das normas, de modo que se impõe a consideração valorativa capaz de apontar soluções inspiradas nos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, que apontam para o ideal de justiça. Neste aspecto, aliás, também é invocável o princípio da razoabilidade, pois o Direito é fruto e instrumento da racionalidade humana” (Curso de Direito Tributário, 26ª edição, Malheiros Editores, 2005, ps. 129 e 131).
É indiscutível que a extensão da decisão proferida pelo Senado é limitada ao caso concreto e não muda o mandamento constitucional. Obviamente não tem a positividade de uma emenda constitucional. O benefício indevidamente concedido tem permitido que a ex-presidente desfrute das mordomias inerentes a essa condição, sem qualquer questionamento. A negativa de concessão da medida liminar consolidou esse “direito” de tal maneira que a condenada tem atuado politicamente, no Brasil e no exterior, como se nada tivesse acontecido, como se não tivesse sido condenada por crime de responsabilidade. Tal situação, pessoal e circunstancial, não retira a eficácia do mandamento constitucional, gerando, sim, a inabilitação para o exercício de função pública, em outras situações, como seria a nomeação para o exercício de cargo público, de carreira ou de provimento em comissão, ou mesmo para a direção de uma empresa estatal, ou, ainda, para exercer cargo de ministro de Estado.
Muito recentemente o ministro Luiz Edson Fachin mostrou que mesma situação jurídica pode ter diferentes efeitos, conforme o âmbito de sua aplicação. Com relação à deliberação do Comitê de Direitos Humanos da ONU sobre o ex-presidente Lula, ao votar no TSE, aceitou a sua aplicabilidade no âmbito eleitoral, mas, ao votar no STF, em matéria penal, pronunciou-se pela inaplicabilidade da mesma deliberação. No caso da ex-presidente Dilma, uma coisa é a deliberação num processo anfíbio, político administrativo, e outra coisa, muito distinta, é a deliberação a ser tomada, num processo exclusivamente judicial, no âmbito da Justiça Eleitoral.
Também é indiscutível que a simples omissão do STF não gera direito adquirido. O fato de ter sido negada a liminar não é a afirmação do “direito” ao exercício de função pública. As circunstâncias ou particularidades do caso levam a crer que os processos ficarão dormitando por oito anos, até que se promova seu arquivamento, sob alegação de perda do objeto. O corporativismo, que tem se evidenciado cada vez mais nessa corte, jamais permitirá que a patente agressão à Constituição, praticada por quem deveria defendê-la, seja formalmente declarada.
O comportamento errático e faccioso de alguns membros do STF tem gerado um desprestígio para a corte, o qual tem sido indevidamente alargado para abarcar o Poder Judiciário, que, no geral, tem cumprido sua missão. A nomeação para ministro do STF tem um enorme e preponderante componente político, gerando, em alguns casos, algo como o dever de gratidão, consistente em retribuir pelo favor concedido. No fatiamento da Constituição quando do julgamento da então presidente Dilma, isso ficou muito patente. Com efeito, não é possível acreditar na prática de simples erro grosseiro por quem tem gabarito para exercer o cargo de ministro da corte suprema e, no caso específico, tinha larga experiência no Judiciário e, acima de tudo, por indiscutível merecimento, é professor titular de Direito Público em uma das mais prestigiadas faculdades de Direito do país.
No momento em que este artigo está sendo escrito, não é possível saber qual será o comportamento dos desembargadores do TRE-MG no julgamento do pedido de registro da candidatura ao Senado pela requerente condenada pela prática de crime de responsabilidade. O que se espera é que esse tribunal cumpra o seu dever e faça com que o parágrafo único do artigo 52 da CF seja corretamente aplicado. Um erro não justifica o outro; o mau exemplo não deve ser seguido. É certo que o indeferimento causará um enorme estardalhaço, por parte dos mesmos grupos que continuam repetindo que o impeachment foi um golpe, mas o TRE-MG não deve ter medo de decidir. O desprestígio que abala o STF não pode abalar o elevado prestígio da corte mineira, mas isso vai depender do comportamento, altivo ou subserviente, de seus membros.
Adilson Abreu Dallari é professor titular de Direito Administrativo pela PUC-SP e consultor jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 13 de setembro de 2018, 8h