Como se sabe, em decorrência das disputas entre Estados e Municípios na partilha de impostos, o legislador constituinte de 1988 cindiu o chamado imposto sobre transmissão de bens imóveis e de direitos reais sobre imóveis, que era de competência impositiva estadual, em duas partes: (a) o imposto sobre transmissão causa mortis e doação de bens de qualquer natureza ficou inserida na competência do Estado (art. 155, I da CF); (b) o imposto sobre transmissão inter vivos, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos à sua aquisição ficou inserido na competência impositiva municipal (art. 156, II da CF).
O Estado teve reduzida a sua competência tributária em relação à ordem constitucional antecedente, quando toda operação sobre transmissão de imóveis e de direitos reais sobre imóveis era de sua competência. Agora, o Estado só pode tributar a transmissão causa mortis. Ampliou-se, porém, o objeto do imposto que passou a incidir sobre bens de qualquer natureza (imóveis ou móveis). O imposto ficou conhecido pela sigla ITCMD. O Município ganhou a competência impositiva sobre a transmissão de bens imóveis e de direitos reais sobre esses bens, porém, somente na modalidade de transmissão inter vivos e por atos oneroso. Esse imposto ficou conhecido pela sigla ITBI.
A competência para instituir esse imposto incidente sobre a transmissão de bens imóveis vem variando ao logo do tempo, ora sendo tributada pelo Estado, ora pelo Município, ora uma parte pelo Estado e outra parte pelo Município, como demonstramos na obra específica a respeito. [1]
O Código Tributário Nacional, Lei nº 5.172 de 25 de outubro de 1966, regula esse imposto sobre transmissão de bens imóveis e de direitos a ele relativos em seus artigos 35 a 42, quando o imposto era de competência tributária apenas do Estado. Não se adequou à nova realidade constitucional que não se limitou à cisão do imposto, mas prescreveu a imunidade específica do ITBI de forma diferente do que estava na ordem constitucional antecedente, como se constata do exame do § 2º, do art. 156 da Constituição Federal de 1988:
“O imposto previsto no inciso II: [2]
I – não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrentes de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil.”
O preceito constitucional prevê a imunidade pura (primeira parte do dispositivo) e a imunidade condicionada (segunda parte), mas não é o propósito deste artigo versar sobre essa questão já abordada em outros trabalhos. Relembre-se, apenas, que a expressão “isenção” ou “não incidência” quando utilizada no texto constitucional significa supressão de competência tributária sendo, portanto, sinônimas de imunidade, salvo em alguns casos específicos em que a “não incidência” tem o significado de restrição do alcance da norma definidora do fato gerador da obrigação tributária, como na hipótese prevista na letra b, do inciso X, do § 2º, do art. 155 da CF que objetiva favorecer o Estado destinatário, e não, beneficiar o contribuinte.
Retomando o tema deste artigo veremos que o arts. 36 e 37 do CTN, que regulamentam o imposto sobre transmissão de bens imóveis e de direitos a eles relativos, não foram recepcionados senão de forma parcial pela Constituição de 1988 que, em relação ao ITBI, instituiu a imunidade pura e a condicionada, conforme se verifica do texto retrotranscrito. A restrição quanto à imunidade condicionada refere-se unicamente à inexistência de atividade preponderante do adquirente na atividade imobiliária. Na transmissão decorrente de extinção de sociedade, salvo raras exceções, não haverá incidência do ITBI porque o pagamento das cotas sociais por meio de bens da empresa em extinção, via de regra, ocorre a favor de sócios pessoas físicas.
Entretanto, dispõem os arts. 36 e 37 do CTN:
“Art. 36. Ressalvado o disposto no artigo seguinte, o imposto não incide sobre a transmissão dos bens ou direitos referidos no artigo anterior:
I – quando efetuada para sua incorporação ao patrimônio de pessoa jurídica em pagamento de capital nela subscrito;
II – quando decorrente da incorporação ou da fusão de uma pessoa jurídica por outra ou com outra.
Parágrafo único. O imposto não incide sobre a transmissão aos mesmos alienantes, dos bens e direitos adquiridos na forma do inciso I deste artigo, em decorrência da sua desincorporação do patrimônio da pessoa jurídica a que foram conferidos.
Art. 37. O disposto no artigo anterior não se aplica quando a pessoa jurídica adquirente tenha como atividade preponderante a venda ou locação de propriedade imobiliária ou a cessão de direitos relativos à sua aquisição.
§ 1º Considera-se caracterizada a atividade preponderante referida neste artigo quando mais de 50% (cinqüenta por cento) da receita operacional da pessoa jurídica adquirente, nos 2 (dois) anos anteriores e nos 2 (dois) anos subsequentes à aquisição, decorrer de transações mencionadas neste artigo.
§ 2º Se a pessoa jurídica adquirente iniciar suas atividades após a aquisição, ou menos de 2 (dois) anos antes dela, apurar-se-á a preponderância referida no parágrafo anterior levando em conta os 3 (três) primeiros anos seguintes à data da aquisição.
§ 3º Verificada a preponderância referida neste artigo, tornar-se-á devido o imposto, nos termos da lei vigente à data da aquisição, sobre o valor do bem ou direito nessa data.
§ 4º O disposto neste artigo não se aplica à transmissão de bens ou direitos, quando realizada em conjunto com a da totalidade do patrimônio da pessoa jurídica alienante.”
Como se vê, além de se omitir acerca da fusão e da cisão, o parágrafo único do art. 36 impõe uma limitação inexistente no texto constitucional, ao restringir o gozo da imunidade à hipótese de desincorporação dos bens incorporados pela mesma pessoa do adquirente. A prevalecer a redação do parágrafo único citado não poderia haver imunidade caso não houvesse no patrimônio da pessoa jurídica incorporada bens conferidos pelo sócio em realização de capital. Nem seria possível a imunidade, também, nas hipóteses de cisão ou de extinção das sociedades.
Ora, sabemos que a imunidade deve ser regulada por lei complementar (art. 146, II da CF). Só que regular não implica ampliação, nem restrição da hipótese de imunidade estabelecida pelo legislador constituinte.
Outrossim, prescrever que caracteriza atividade preponderante a que se refere o texto constitucional, quando mais de 50% da receita operacional da pessoa jurídica adquirente decorrer de transações imobiliárias nos dois anos anteriores à aquisição, como prescreve o § 1º, do art. 37 do CTN nos parece razoável. Agora, não é razoável a projeção desse cálculo percentual para os dois anos seguintes ao da aquisição, como determina o preceito sob exame, que se refere a “nos dois anos anteriores e nos dois anos subsequentes à aquisição.” Mais irrazoável, ainda, o § 2º que estende para três anos posterior à aquisição a pesquisa quanto à preponderância da atividade imobiliária na hipótese de o adquirente iniciar a atividade após a aquisição ou menos de dois anos antes dela. Exacerbando o abuso legislativo, o § 3º, do art. 4º da Lei nº 11.154/91 do Município de São Paulo prescreve que o imposto incidirá quando ficar prejudicada a análise de atividade preponderante por não se enquadrar o adquirente no prazo de dois anos anteriores à aquisição, nem no prazo de três anos posteriores à aquisição.
Essas exigências do CTN e da legislação municipal são inconstitucionais.
É que o fato gerador do ITBI é a transmissão de bem imóvel ao sócio em pagamento das cotas sociais por meio de uma escritura pública, ma hipótese de extinção da sociedade, o que é raro, porque normalmente as sociedades são constituídas por sócios pessoas físicas. A aquisição dessa propriedade ocorre com o registro dessa escritura no registro imobiliário competente por força do disposto no art. 1.245 do Código Civil. Ora, a situação de imunidade tributária deve ser verificada antes ou no ato do registro da escritura aquisitiva do imóvel. Não é razoável supor que deva o ato de registro ficar em suspenso até o decurso de dois anos a contar da lavratura da escritura pública de transmissão do bem imóvel, pois quase a totalidade da legislação dos Municípios condicionam o registro à prova do pagamento do ITBI. Ainda que se entenda que o imposto é pago após o registro o adquirente teria que aguardar por dois anos para saber se o fisco irá ou não reconhecer a imunidade, fato que atenta contra o princípio da razoabilidade, que se coloca como um limite à ação do próprio legislador.
A parte do § 1º, do art. 37 que exige a apuração de preponderância da atividade imobiliária do aquirente nos dois anos posteriores à data da aquisição, bem como o § 2º que condiciona o adquirente a não iniciar atividade imobiliária após a aquisição, não foram recepcionados pela ordem constitucional vigente. Igualmente, não recepcionado o § 4º, do art. 37 do CTN que exclui da imunidade a hipótese de transmissão da totalidade de bens da pessoa jurídica incorporada ou fusionada. No caso de extinção da pessoa jurídica, que sequer é regulada no CTN, apenas parte da transmissão de bens em pagamento de cotas sociais seriam cobertas pela imunidade.
É preciso adequar os dispositivos do CTN à nova realidade constitucional. A alteração trazida pela Constituição de 1988 não se limita a separar a parte cabente na competência do Estado da parte inserida na competência tributária do Município. No que se refere à imunidade do imposto houve uma alteração sensível. A Constituição de 1988 condicionou o gozo da imunidade ao fato de a pessoa jurídica adquirente não exercer a atividade imobiliária de forma preponderante.
As normas do CTN, também não haviam sido recepcionadas na sua integridade pela Constituição de 1967/69 que dispunha no § 3º, do art. 24:
“§ 3º – O imposto a que se refere o nº I não incide sobre a transmissão de bens incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica nem sobre a fusão, incorporação, extinção ou redução do capital de pessoas jurídicas, salvo se estas tiverem por atividade preponderante o comércio de seus bens e direitos, ou a locação de imóveis.”
Verifica-se que aquele texto de 1967/69 continha uma amplitude até maior do que o texto atualmente vigente que deixou de se referir expressamente sobre a hipótese de redução de capital. Contudo, a redução de capital, no nosso entender está contida na dissolução de sociedade, ou seja, dissolução parcial estando, portanto, abrangida pela imunidade.
Ao que tudo indica os artigos 36 e 37 do CTN procuraram regular a imunidade desse imposto previsto na Emenda nº 18/65, cujo art. 8º, § 2º assim prescrevia:
“§ 2º O imposto não incide sobre a transmissão dos bens ou direitos referidos neste artigo, para sua incorporação ao capital de pessoas jurídicas, salvo o daquelas cuja atividade preponderante, como definida em lei complementar, seja a venda ou a locação da propriedade imobiliária ou a cessão de direitos relativos à sua aquisição.”
Como se verifica, a fusão a que se refere o art. 36 do CTN não estava contemplada no texto da Emenda 18/65, então vigente. O CTN peca, pois, por excesso em relação à Constituição de 1946 com a redação conferida pela Emenda 18/65 e peca contra o texto da atual Constituição por omissão, como antes apontada.
Assinale-se, por fim que por força do disposto no art. 110 do CTN o perfeito entendimento do imposto conhecido pela sigla ITBI requer o domínio de conceitos de direito civil acerca da noção de bem imóvel por natureza ou acessão física, sua forma de transmissão; de direitos reais sobre imóveis, distinguindo aqueles destinados à garantia; de noções sobre incorporação, cisão, fusão e extinção de pessoas jurídicas etc. Daí a grande importância do direito civil no âmbito do direito tributário, como sempre enfatizamos.
[1] Cf. nosso ITBI doutrina e prática. São Paulo: Atlas, 2010.
[2] ITBI.