Para ex-secretário da Receita Federal, proposta que tramita na Câmara reduz pagamento de tributos para bancos e aumenta de pequenos, como empreendimentos do Minha Casa Minha Vida. Ele defende mudanças legais e administrativas para reduzir litígios
Anna Russi e Claudia Dianni
Correio Braziliense, 22/09/2019
Crítico das propostas de reforma tributária que tramitam no Congresso, que propõem substituir vários impostos por um único, do tipo Imposto sobre Valor Agregado (IVA), o ex-secretário da Receita Federal Everardo Maciel (1995-2002), hoje consultor, afirma que, no Brasil, o IVA afronta um princípio constitucional que impede emendar o pacto federativo, que garante autonomia a estados e municípios.
Para ele, a proposta da Câmara “tem a única preocupação de redistribuir carga, para desonerar os bancos de pagarem R$ 30 bilhões e tributar pequenos contribuintes, ao aumentar a carga tributária de uma incorporação do Minha Casa, Minha Vida em 3717%”, por exemplo.
Na opinião de Everardo, não é preciso acabar com o modelo de imposto sobre consumo adotado no Brasil, o ICMS, basta reduzir o número de alíquotas, e voltar a coordenar a sua operação, como ocorreu no passado, mas deixou de ser feito devido ao desconhecimento de um novo governo, que extinguiu a secretaria encarregada da tarefa, na reforma administrativa no início do governo de Fernando Collor, nos anos 1990.
Everardo admite a complexidade do sistema tributário, mas afirma que o problema não é exclusivo do Brasil. Na avaliação do especialista, o principal problema é o excesso de litígios, que somam R$ 3,3 trilhões, metade do PIB, situação que pode ser mitigada, acredita, pela integração administrativa e jurídica. Para isso, ele defende aprimoramentos legais no sistema tributário e não uma reforma Constitucional, ora em curso no Parlamento, e a adoção da sucumbência administrativa (quando a parte perdedora arca com os custos).
Ele defende a manutenção de incentivos fiscais, de forma regulamentada, para enfrentar o problema das desigualdades regionais, e acredita que boa parte dos problemas causados pela guerra fiscal será equacionado com a já promulgada Lei Complementar 160, de 2017 que trata de créditos tributários.
Sobre a obsessão do ministro da Economia, Paulo Guedes, de desonerar a Folha de Pagamento, ele concorda, pois a medida se tornará inócua já que, ela mesma, devido ao aumento excessivo da alíquota, tem empurrado o trabalhador para a informalidade. “É preciso encontrar uma nova forma de financiar a Previdência”, afirma. Defensor de um imposto sobre operações financeiras, como a CPMF, que geriu enquanto foi secretário, mas não como solução única, Everardo acredita que o país não está pronto para a modalidade, “precisa decantar” este tipo de tributo, e avalia que este não é um bom momento político para o tema.
Segundo Everardo, a discussão tributária está sendo feita “com a lanterna para trás”. O ex-secretário se inspira em soluções europeias que começam a tributar a informação, como fez a França, há semanas, com a adoção do Turnover Tax e como estuda, atualmente, o Reino Unidos, com o GAFAM, em referência ao Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft. “Esse é novo mundo”, disse, com entusiasmo, em entrevista ao Correio na tarde da última sexta-feira:
O senhor já criticou a reforma tributária. Qual é a sua reforma?
Bom, não existe uma reforma tributária. Reformar, como qualquer reforma, de qualquer coisa, requer um número infinito de possibilidades diferentes. Então, deixe-me dizer em uma linguagem bem simples: vamos fazer a reforma da sala da minha casa. Aí vai perguntar: mas qual reforma? porque você pode apresentar tantas soluções diferentes, um número inesgotável. Há reformas boas e há reformas ruins. Mas uma reforma não é intrinsecamente boa. Então, eu só posso falar de uma reforma e não a reforma. Eu não tenho uma reforma. Tenho uma maneira diferente de enxergar essas questões. Eu acho que temos que procurar soluções para os problemas e não buscar qual é o problema que se enquadra na minha solução. Eu gosto muito de um autor italiano – Luigi Pirandello -, que tem um livro que eu acho desesperador, que se chama “Seis personagens à procura de um autor”. O personagem não tem autor. Então, eu não gosto dessas soluções que estão procurando problemas. Qual é o problema que estamos falando? E diante do problema, eu posso dar uma resposta concreta. Reforma Tributária é um processo permanente de enfrentamento e resolução de problemas tributários. Não é uma fórmula mágica, uma solução universal e nem o remédio para todos os males do mundo. É muito fácil alguém chegar e fazer uma propaganda de um enlatado tributário. “Ora, o mundo inteiro adota isso e, portanto… Portanto nada! O mundo inteiro adota, mas eu tô falando do Brasil, não de Singapura, Malásia ou África do Sul. Para o Brasil, qual é o problema? Os problemas tributários são problemas que são também culturais.
E quais são os problemas do Brasil no sistema tributário?
São muitos. Todo sistema tributário é uma fábrica de problemas, porque os sistemas tributários são construídos por decorrer de conflitos. O sistema tributário não se faz por download. Se põe uma questão, que envolve conflitos de interesse e de razão também, e a resolução desses conflitos se opera em casa política. Evidente que tem parâmetros técnicos, que são observados ou não. Se uma casa política diz que não quer observar, não observa e acabou. Vou dar um exemplo: o IVA. É um imposto adotado por grande parte dos países. O Brasil tem um modelo de IVA (o ICMS), que é bem diferente dos outros é verdade. Aí se diz assim “mas se adotar, nós vamos adotar um modelo dos países que prosperaram”. Não. Tem países que não prosperaram e têm IVA. Posso dar uma listagem aqui de uns cinquenta. E vou dar um contraexemplo de um país que é a maior potência do mundo, em qualquer aspecto que se queira dizer, que são os Estados Unidos, que não tem IVA. Portanto, isso não é uma resposta pronta de que se faz isso e asseguramos a salvação eterna.
Então, o IVA não resolve os problemas tributários do Brasil. Por quê?
Não, até porque o Brasil tem o ICMS. Poucos sabem a história do IVA, que concebido na década de 20 e implementado, pela primeira vez, no Japão, em 1949. Depois de pouco tempo, a solução foi recusada porque os interventores militares americanos, depois da segunda Guerra Mundial, disseram que tinha que ser algo igual à dos EUA, e não diferente. Como os EUA não têm IVA, logo, não teve. Depois a França fez uma tentativa, na segunda metade dos anos 50, mas fez um modelo limitado, não foi até a operação de varejo, ficava na operação de atacado. O Brasil foi o primeiro país do mundo que adotou até o varejo, que era o ICM, que depois virou o ICMS. Cometeu um erro. Compreensível, mas um erro, que foi atribuir o ICM à competência estadual. Isso criou muitos problemas na fronteira entres os estados. O Brasil é a primeira experiência mundial de utilização de um tributo, do tipo IVA até o varejo em uma competência estadual.
Houve outros depois?
Não. Depois ocorreram soluções parecidas, mas não iguais. Um IVA estadual e federal no Canadá, um IVA que tem gestão estadual na Alemanha, mas com legislação federal e, agora, a Índia tem um IVA estadual e federal. Há várias soluções.
Que tipos de problemas isso gerou para o Brasil?
Gerou problema em relação às ações interestaduais, que ficaram de difícil gestão.
Guerra fiscal?
Não, guerra fiscal é um fenômeno recente. Não existia. Eu fui secretário de Fazenda nos anos 1970 e nos anos 1980, isso não existia. Isso aconteceu por uma combinação de razões. A primeira foi a Constituição de 1988, que estabeleceu muitos parâmetros de liberdade aos estados no tratamento da matéria, diferentemente do que era antes. Antes só existia uma alíquota do ICM, agora são várias. E por uma série de outras razões ligadas à Constituição de 1988. Depois, uma outra razão de ordem administrativa: existia um órgão no ministério da Fazenda, que cuidava da coordenação do ICM. Na reforma administrativa do governo de Fernando Collor, no início dos anos 1990, porque alguém não entendeu o nome daquilo – realmente o nome era estranho – mas não importa o nome, e sim o que faça. O nome era Secretaria de Economia e Finanças, que cuidava dessa coordenação. Na verdade, o nome deveria ter sido Secretaria de coordenação do ICM. Enfim, alguém não entendeu para o que servia e foi extinta. A terceira razão é que a Constituição de 1988 disse que as regras de concessão de benefícios fiscais seriam estabelecidas por uma nova lei. Entretanto, enquanto não existisse essa nova lei, ficaria a antiga. A Lei Complementar 24 (convênio para concessão de isenção do ICMS), de janeiro de 1985. Essa lei só foi aprovada em 2017 (Lei Complementar 160). Melhorou, mas não está completamente resolvido. Então, perdeu-se a coordenação nacional.
Qual foi a consequência?
O estado faz o que quiser. Faz concessão de benefícios sem regra. Agora, significa dizer que se deve extinguir o ICMS? Não. Essa é uma visão preconceituosa. O Brasil tem profundas desigualdades regionais e de renda. A única forma de enfrentar essas desigualdades, como sempre se fez, inclusive no Brasil, é por meio da iniciativa privada. Isso significa dizer que precisa de incentivos fiscais.
Como o sistema tributário para atacar as desigualdades regionais?
O sistema tributário não resolve desigualdade regional, mas pode concorrer para mitigá-la. Incentivo fiscal é uma forma de fazer isso. Veja, por exemplo, a Zona Franca de Manaus. Tem problemas? Tem. Agora, ter problemas não significa dizer que ela deve ser extinta. O que vai ser dito aos 83 mil empregados no polo industrial de Manaus, que lá não pode mais ter incentivo fiscal? Como que, em uma circunstância como a que vivemos hoje, de discussão sobre a crise do clima, vamos dizer a essas pessoas que elas estão desempregadas? Vão devastar a Amazônia, ou então vão para as periferias das grandes cidades formando o cordão da criminalidade. Então, tínhamos que ter uma política de equilíbrio regional para o qual um dos instrumentos é incentivo fiscal. O mundo inteiro concede incentivos fiscais.
E como evitar a guerra fiscal?
Guerra fiscal é o incentivo fiscal praticado de forma ilegal. Há incentivos fiscais legais e há ilegais. Se a lei diz que pode, não é ilegal.
Teria que regulamentar a forma de conceder os incentivos?
Sim, é o que está na Constituição.
Então, do jeito que está bom?
Não estava muito ruim. A Lei Complementar 160, de 2017, criou um espaço para melhorar. É um encaminhamento dessa questão.
A grande discussão é que o sistema tributário brasileiro é complexo. Como simplificar?
Todo sistema tributário é complexo. Alíquota única para mim é teoria de terraplanismo tributário. Não tem nenhum país que tenha isso no mundo. Tem um na Nova Zelândia, que é uma ilha, é outro mundo. O sistema tributário de renda mais complexo do mundo é o dos EUA. Qual é o mais simples do mundo? O do Brasil. A tributação da renda no Brasil é a mais simples do mundo. A legislação é mais simples e muito pragmática.
Existem problemas de complexidade? Sim, agora, é preciso fazer uma distinção clara entre complexidade e operabilidade. Vou dar um exemplo: para respirar, você movimenta o sistema venoso, os pulmões, o cérebro, etc. É uma atividade extremamente complexa, mas você respira, de forma fácil. O relógio de pulso é um objeto extremamente simples, mas poucas pessoas sabem consertar um relógio de pulso, portanto é um objeto difícil. Então, há coisas que são complexas e fáceis e coisas que são simples e difíceis. O que temos que fazer é tornar nosso sistema tributário simples.
Como?
Isso é um problema administrativo. Tem que mudar a administração. A legislação de imposto de renda de uma pessoa física, por exemplo, não é uma legislação nem um pouco simples, mas ninguém tem dificuldade de declarar. Eu não conheço ninguém, desde os mais especializados para as pessoas mais simples. Por quê? Porque ela é fácil. E a imensa maioria das pessoas, que faz a declaração de imposto de renda, não tem conhecimento da legislação. Depende de uma iniciativa de ordem administrativa. Sem querer falar de mim, mas já falando, eu introduzi a internet e fiz esses modelos todos de imposto de renda. Estou dizendo que não existem problemas? Nem um pouco. Claro que existem problemas. Agora, todos têm problema. Reforma tributária, com esse nome que significa muitas coisas, é uma questão eterna e universal. Em todos os lugares que eu vou estão discutindo reforma tributária.
Então o senhor acha que seria mais eficiente ir arrumando de forma gradual?
Em outras palavras, não jogar a criança com água suja na bacia. Separar as duas coisas. Tem vários problemas. Essa questão da guerra fiscal é um problema, que está sendo encaminhado e eu acho que a solução pode ser melhorada, mas já é um caminho. Existem muitas alíquotas de ICMS? sim, mas o contrário de muitas não é uma, são algumas. Mas por que tem muitas? Tem uma resposta técnica para isso. Tem uma combinação de alíquotas marginais com redução de base de cálculo que dá alíquotas efetivas grandes. Se eu tenho uma alíquota de 20% e faço a redução de base de cálculo de 50%, a alíquota fica 10%. Se posso combinar um com outro, dá um número grande. Como fazer? Proibir redução de base de cálculo. Isso reduz muitíssimo o número de alíquotas. E, sempre que possível, evitar mudanças constitucionais. A história das mudanças constitucionais tributárias no Brasil é uma história de desastres. Todas deram errado,
começando com a Constituição de 1988. Começa com “vamos fazer” e quando vai fazer destrói tudo. Os problemas tributários brasileiros essenciais não estão sendo tratados.
Quais são eles?
Primeiro, excessiva litigiosidade. Nós temos um volume de litígios no Brasil que correspondem a R$ 3,3 trilhões. Isso corresponde à metade do PIB. Resolver isso passa, necessariamente, por dois caminhos: uma mudança no processo tributário. Hoje ele é disfuncional, porque o processo tributário administrativo não se integra com o judiciário. Essa desintegração faz com que existam lançamentos sem sucumbência (perda da ação). E, no caso judicial, a exigência de garantias para a defesa pode ser extremamente elevada. Fazer a integração significa dizer: cuidado, se você fizer lançamento e estiver errado, paga. Hoje em dia não acontece nada, não há sucumbência administrativa (o perdedor arca com as despesas do vencedor). Funciona assim em muitos países. Dos quase 79 milhões de processos na justiça brasileira, no estoque do ano passado, mais de 31 milhões foram de execução fiscal. Isso dá 39% dos processos.
O segundo é resolver as grandes indeterminações conceituais. Quando tenho uma coisa que não sei com clareza, eu promovo uma briga. Se o fisco tem um entendimento, o contribuinte tem outro e o judiciário, outro, tem uma boa fonte de litígio. Os conceitos não estão determinados: planejamento tributário abusivo, substituição tributária de solução irregular de empresas, responsabilidade solidária de sócios, substituição tributária, o universo das taxas. Tem que dedicar-se à solução disso. Se a causa permanece, o problema não vai terminar nunca. Quase tudo é matéria de lei. Então, são mudanças legais, não constitucionais.
Para implementar o IVA, tem que mexer na constituição, no pacto federativo?
O pacto federativo não é suscetível de mudança. Eu peço licença para ler o artigo 60 parágrafo quarto da Constituição: Não será objeto de deliberação proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de estado. Não é que muda, é que ameaça. Não é que abole, é que tende abolir. Não é possível haver emenda constitucional para tratar disso. É isso que está sendo proposto.
Então, a proposta do IVA é inconstitucional?
Não o fato de propor o IVA, mas o IVA fere o núcleo de autonomia dos estados e municípios.
E se for um IVA dual (estadual e municipal), que é o que pretende o governo?
Primeiro que IVA é coisa do século passado, é coisa do atraso. Tem que olhar para frente e não para trás. Não é isso que se discute no mundo. IVA é imposto de cadeia produtiva, não entende a economia digital. IVA trata de questões que são cada vez menos relevantes na economia. A grande fonte de riqueza no mundo hoje é a informação, a gestão da informação.
O senhor acha que um imposto único sobre transações financeiras, nos moldes da CPMF, é o imposto do futuro?
Não. Esqueça a possibilidade de existir uma coisa única. É possível que ela seja também um tributo. Acho que falar em CPMF não é oportuno no momento. Ela tem que ser decantada, explorada, conhecida, bem debatida. A CPMF ainda é nova, porque as circunstâncias em que ela foi constituída no Brasil, certamente não são as mesmas, portanto, teria que pensar em novas circunstâncias, logo, em um novo desenho. Mas acho que não é o momento político para isso, porque foi tão mal posto o assunto, que ele ficou carregado de incompreensões, de preconceitos. Tem que deixar para outro momento. E isso só pode ser feito pelo governo. Então, se o governo não quiser, não vai ser feito. Como de costume, nós discutimos matéria tributária em mesa de bar. Não é o local.
O que se discute na Europa hoje. A França aprovou, há dois meses, um imposto sobre a informação. Não é bem, nem serviço. Chama turnover tax, imposto sobre receita bruta. Integra a base de cálculo, a receita de publicidade das empresas de responsabilidade da informação digital, trabalhando no âmbito da informação digital multiplicado pelo número de utilizadores. Está sendo discutido no Reino Unido, na Inglaterra recebeu o apelido de GAFAM, que significa Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft. A Austrália criou o Google Tax. Ou seja, esse é um mundo novo. Criaram impostos novos, não tem nada parecido no mundo. Essa é a discussão moderna.
O Brasil não está olhando para a modernização da tributação?
Não, está olhando com um farol para trás.
Uma curiosidade: o que favoreceu a implementação de um imposto sobre transações na época que o senhor era secretário?
Porque a gente teve muito cuidado em fazer as coisas. Por exemplo, fazer com que ela incidisse em apenas uma ponta das operações, era só no débito. Isso não impedia que a pessoa fizesse aplicações. Eu presumo que, no crédito e débito, você foge do setor financeiro, porque, quando as pessoas defendem isso, é apenas para aparentar reduzir a alíquota. Põe a alíquota maior em uma ponta e pronto. A gente garantiu que nos salários e nas aposentadorias, iguais ou inferiores ao salário mínimo, não tivesse incidência da CPMF. Nós tivemos o cuidado de deixar que as entidades imunes não fossem alcançadas. E, sobretudo, não fizemos com que ela incidisse nas operações interbancárias. Isso é uma diferença brutal. Agora, eu acho que, apenas arrecadatório, hoje, não cabe porque a carga tributária está muito alta. Então, em uma circunstância em que fosse instrumento de compensação, seria uma coisa razoável, mas não é o momento.
Não existe fórmula mágica, mas o que tornaria o sistema tributário mais justo?
Não existe justiça tributária. É um conceito muito subjetivo. O regressivo ou progressivo não existe. O sistema tributário tem que ser eficiente. Agora, há princípios que têm que ser observados, como a capacidade contributiva. Eu não posso tributar uma pessoa da mesma forma que uma pessoa que tem a renda muito alta. Agora, quando diz “tributamos mais o consumo do que a renda”, falso. Primeiro que não é verdade isso. Dizer que mais consumo é mais regressivo, e mais renda é mais progressivo, isso é uma coisa escolar, de aluno de primeiro ano de direito tributário. Depende da forma como você tributa a renda e como tributa o consumo. Não existe uma forma padrão da forma de tributo de renda e consumo.
Se coloca o PIS e Cofins como se fosse tributação de consumo, não é. É de renda. A tributação de consumo é analítica, ela alcança um bem, um serviço, até uma informação, que não é o caso, ainda. A outra tributação é sintética, ela alcança a empresa, ente, não a parte. O Pis/Cofins tem duas formas de tributação: o regime cumulativo e o não cumulativo. O regime é igual o imposto de renda, não tem diferença nenhuma. Só difere a alíquota, que só difere em quanto tempo você paga, não o que se paga. Se eu passo isso para o lado da renda, tributo mais a renda. Logo, tenho mais progressividade? Falso, não tem nada a ver. É uma maneira medíocre de olhar isso.
O senhor não é a favor de tributar dividendos. Qual é o caminho para tributar mais os ricos e menos os pobres?
Primeiramente, só quem paga imposto é pessoa física. Pessoa jurídica só recolhe imposto. Quem paga é o contribuinte de fato, quem recolhe é o contribuinte de direito.
Como que a pessoa física é tributada? de quatro maneiras: IPTU, atividade laboral e como aplicador (sistema financeiro ou nas empresas). Nas empresas, quem paga é o sócio, quem recolhe é a empresa. Dividendo é o que sobrou depois da tributação. Eu posso tributar no dividendo, ou antes ou nos dois. Ao diminuir a tributação da empresa e aumentar a do dividendo, eu não entendo o que se está fazendo. Pode tributar os dois, mas para que? É mais fácil aumentar a alíquota do tributo da empresa, é como se fosse uma tributação na fonte, do sócio. Tributar só na empresa evita sonegação. Existe uma coisa chamada Distribuição Disfarçada de Lucros (DDL). É uma forma de sonegação clássica de dificílima apuração. Você é dono de empresa e, como o dividendo, é tributado. Eu compro o meu carro em nome da empresa. Fiz uma DDL. Esse fenômeno tem no mundo todo só não tem no Brasil, onde teve um único caso de 1996 para cá.
O Brasil sempre foi criticado por não tributar dividendos e comparado aos países da OCDE, que tributam.
O Brasil foi o primeiro país do mundo que fez arrecadação de tributos pela rede bancária, foi, na minha administração, o primeiro país que usou internet na arrecadação tributária. O Brasil foi o primeiro país que fez fusão de tributos internos com a aduana. O fato de existir na OCDE não me diz nada. Eu tenho que saber se é certo ou errado, se é bom ou ruim. Eu não tenho que fazer uma coisa porque países da OCDE fazem. Eu estou cansado de ouvir teoria tributária feita com cortina de fumaça para esconder interesses.
Mas como fazer ricos pagarem mais impostos?
Na verdade, no Brasil, apenas 7% da população economicamente ativa paga imposto. Temos 93% de isentos, são os pobres. Isso pelo Imposto de Renda. Temos o mais alto nível de isenção do mundo. A indexação foi uma das maiores fontes de renda desse país. Com a indexação, as empresas tinham direito à correção monetária no patrimônio líquido do balanço. Em outras palavras, quanto maior a empresa, em patrimônio líquido, maior a correção. Quanto maior a inflação, maior a correção. Se você combina inflação alta com patrimônio alto, ninguém paga imposto. Isso foi um dos maiores instrumentos de concentração de renda concebidos que eu já vi na história. O Brasil tinha, acabou em 1995. E simplificou profundamente a apuração de impostos. Tanto que o FMI dizia que o Brasil tem a legislação de IR de mais difícil apuração do mundo e um ano depois o Brasil fez a maior revolução nessa questão.
Então, isto não é um projeto de Reforma. É um projeto que tem uma única preocupação: redistribuir carga, para desonerar banco, desonerar o grande contribuinte e tributar pequeno contribuinte. Com essa (proposta) que está lá na Câmara, profissional autônomo e pessoa física têm um aumento de carga tributária de 471%; uma sociedade uniprofissional de advocacia e engenharia, de 546%; uma escola com lucro presumido, 211%; um aumento de 1102% para uma incorporação imobiliária; uma incorporação do Minha Casa, Minha Vida, 3717%. Isso tudo para livrar os bancos do pagamento de R$ 30 bilhões anuais.
E a desoneração da folha de pagamento?
A tributação da folha de pagamentos, como contribuição patronal, foi adotada no mundo todo, mas a alíquota era baixa. No Brasil, também, era de 8%, mas, com o déficit da Previdência, foi obrigado a ir subindo e pegar o trabalhador autônomo. Ela ficou como obstáculo de contratação. É por isso que aparece o fenômeno da “pejotização” (contrato como pessoa jurídica), que é uma alíquota absurda de 20%. A área do trabalho está mudando de uma forma assustadora no mundo todo. Apesar de o Brasil estar longe, esse fenômeno, da modernização da natureza do trabalho, é universal. As pessoas estão saindo do emprego para formas não empregatícias. Esses fatos se somam a isso. Então, tributar folha de pagamento vai acabar tributando vento. Precisa arranjar outra forma de financiamento da Previdência
Se você fosse chamado para participar do governo, aceitaria?
Não. Eu já disse não mais de uma vez que fui convidado em 2003. Eu gosto muito disso, faço com muito prazer. Mas eu vou ter que sair em algum dia e eu tenho que fazer isso enquanto estou bem. Tenho que sair enquanto querem que eu fique. É duro? É. Mas tenho que sair enquanto estou mais novo e posso voltar a atividade. Eu sempre estou disposto, qualquer que seja o governo, a opinar e a ajudar, mas não volto.
SP, 22-9-19.
* Everardo Maciel – Ex Secretário da Receita Federal do Brasil