Nenhuma lei que se limita a reger relações entre os Estados de origem e de destino suscitou tantas controvérsias na seara do direito tributário como essa LC nº 190/2022, que se limitou a definir a Difal ao Estado de destino. Isso revela a necessidade de bem distinguir as relações do direito tributário que se desenvolve entre o fisco e o contribuinte e as relações de direito financeiro que regem as relações entre os entes políticos.
Cumpre antes de mais nada esclarecer o conceito de Difal: é a diferença de alíquotas entre a alíquota interna e a alíquota interestadual que varia de 7% até 12%, vale dizer, propiciam aos Estados de destino a tributação pela alíquota máxima de 11% e pela alíquota mínima de 6%.
Mercadorias destinadas a Estados das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste saem com alíquotas menores para propiciar maior margem de tributação pelos Estados menos desenvolvidos da Federação. Na saída dessas regiões para as regiões Sul e Sudeste acontece o contrário: saem com alíquotas maiores deixando menor margem de tributação para os estados destinatários.
Essa questão é regulada pelo inciso VII, do § 2º, do art. 155 da CF. Examinemos primeiramente a sua redação original:
“VII – em relação às operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final localizado em outro Estado, adotar-se-á:
a) a alíquota interestadual, quando o destinatário for contribuinte do imposto;
b) a alíquota interna, quando o destinatário não for contribuinte dele;”
Relativamente às operações interestaduais específicas para determinados produtos dispõem os incisos II e III, do § 4º, do art. 155 da CF:
II – nas operações interestaduais, entre contribuintes, com gás natural e seus derivados, e lubrificantes e combustíveis não incluídos no inciso I deste parágrafo, o imposto será repartido entre os Estados de origem e de destino, mantendo-se a mesma proporcionalidade que ocorre nas operações com as demais mercadorias; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 33, de 2001)
III – nas operações interestaduais com gás natural e seus derivados, e lubrificantes e combustíveis não incluídos no inciso I deste parágrafo, destinadas a não contribuinte, o imposto caberá ao Estado de origem; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 33, de 2001)
Verifica-se, portanto, que as normas do inciso VII, do § 2º e as dos incisos II e III, do § 4º guardavam perfeita harmonia: o primeiro (§ 2º) regendo operações com mercadorias em geral e o segundo (§ 4º) regulando operações com mercadorias específicas.
Acontece que sobreveio a EC nº 87/2015 conferindo nova redação ao inciso VII, do § 2º, do art. 155 da CF que ficou assim redigido:
“VII – nas operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final, contribuinte ou não do imposto, localizado em outro Estado, adotar-se-á a alíquota interestadual e caberá ao Estado de localização do destinatário o imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna do Estado destinatário e a alíquota interestadual”.
Logo, os incisos II e III desse § 4º perderam vigência ante disposição constitucional em sentido contrário conferido pela EC nº 87/2015, que deu nova redação ao inciso VII, do § 2º, do art. 155 da CF.
Nem se argumente que o inciso II e III do § 4º regem situações específicas voltadas para operações com gás natural, seus derivados, lubrificantes e combustíveis, ao passo que, o inciso VII, do § 2º, do art. 155 estabelece o regime de tributação para mercadorias em geral, pois, incogitável a ideia de uma regra excepcional nascer antes da regra geral.
A norma legal que abre exceção deve surgir depois da norma legal que fixa a regra geral, ou, na melhor das hipóteses, vir à luz concomitantemente, nunca antes.
Para dirimir conflitos de normas constitucionais, no caso, impõe-se a aplicação do critério temporal.
A regulamentação da nova redação conferida ao inciso VII suprarreferido ocorreu por meio de um Convênio, o de nº 93/2015, que foi declarado inconstitucional pelo STF, por implicar usurpação de competência privativa de lei complementar.
Realmente, a nova redação conferida ao citado inciso VII implicou alteração do sujeito ativo do imposto, a ser observado em todo o território nacional, atraindo a competência do legislador nacional (art. 146, III da CF).
Foi nesse cenário que surgiu a Lei Complementar nº 190 de 4-1-2022 conferindo a Difal ao Estado de destino, independentemente de o consumidor final localizado em outro Estado ser ou não contribuinte do ICMS.
Apesar de o projeto legislativo respectivo ter sido aprovado na primeira metade da segunda quinzena de dezembro de 2021 o Executivo só sancionou a lei no dia 4 de janeiro de 2022, criando toda essa confusão doutrinária e jurisprudencial em torno do prazo de sua vigência, o que revela falha na assessoria jurídica do Planalto que poderia ter recomendado a sanção ao final do exercício de 2021.
Para complicar mais ainda, o infeliz legislador nacional ao conferir a Difal ao Estado de destino fê-lo de forma dúbia e confusa, mediante introdução do § 2º, ao art. 4º da LC nº 87/96 nos seguintes termos:
“§ 2º É ainda contribuinte do imposto nas operações ou prestações que destinem mercadorias, bens e serviços a consumidor final domiciliado ou estabelecido em outro Estado, em relação à diferença entre a alíquota interna do Estado de destino e a alíquota interestadual:
I – o destinatário da mercadoria, bem ou serviço, na hipótese de contribuinte do imposto;
II – o remetente da mercadoria ou bem ou o prestador de serviço, na hipótese de o destinatário não ser contribuinte do imposto”.
A expressão “é ainda contribuinte” que inicia a redação do § 2º causa a impressão de que a norma estaria aumentando a carga tributária do remetente (vendedor) quando, na realidade, isso não ocorre.
A responsabilidade pelo pagamento do imposto pelo vendedor em caso de remessa de mercadoria a outro Estado destinado a consumidor final sempre existiu.
Antes da EC nº 87/2015 o remetente da mercadoria a consumidor final não contribuinte localizado em outro Estado efetuava o pagamento do imposto pela alíquota interna, isto é, 18%. A partir da EC nº 87/2015 a Difal passou a pertencer exclusivamente ao Estado de destino, independentemente de o consumidor final localizado em outro Estado ser ou não contribuinte do imposto. Não se vislumbra aí nenhuma relação de direito tributário, mas, apenas a de direito financeiro de interesse exclusivo dos Estados de destino e de origem.
A LC nº 190/2022 outra coisa não fez senão regular o disposto na EC nº 87/2022, por sua vez, disciplinado pelo art. 99 do ADCT que estabeleceu o regime de transição:
“Art. 99. Para efeito do disposto no inciso VII do § 2º do art. 155, no caso de operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final não contribuinte localizado em outro Estado, o imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna e a interestadual será partilhado entre os Estados de origem e de destino, na seguinte proporção:
I – para o ano de 2015: 20% (vinte por cento) para o Estado de destino e 80% (oitenta por cento) para o Estado de origem;
II – para o ano de 2016: 40% (quarenta por cento) para o Estado de destino e 60% (sessenta por cento) para o Estado de origem;
III – para o ano de 2017: 60% (sessenta por cento) para o Estado de destino e 40% (quarenta por cento) para o Estado de origem;
IV – para o ano de 2018: 80% (oitenta por cento) para o Estado de destino e 20% (vinte por cento) para o Estado de origem;
V – a partir do ano de 2019: 100% (cem por cento) para o Estado de destino.”
Logo, desde 2019 a Difal passou a pertencer integralmente ao Estado de destino quem quer que seja o consumidor final localizado em outro Estado, contribuinte ou não contribuinte do ICMS. Essa matéria é estranha ao direito tributário.
Não houve criação de novo imposto, nem majoração do ICMS vigente, únicas hipóteses de incidência dos princípios da anterioridade e da noventena (art. 150, I e III, b e c da CF).
Para simplesmente conferir a Difal ao Estado de destino o nebuloso legislador editou nada menos que 41 normas entre artigos, parágrafos, incisos e letras para tornar difícil a sua interpretação. Bastariam apenas dois artigos; a) um destinando a Difal ao Estado de destino em qualquer situação; e b) outro fixando o prazo de vigência da lei. Nada mais! Tudo o mais deve ser regulado pela legislação interna de cada Estado.
Apesar de não entrar na seara do direito tributário o descuidado legislador inseriu o art. 3º prescrevendo a aplicação da noventena. Trata-se de um jaboti ou de um anacoluto que não se articula com o conjunto de 41 normas editadas. Antes o jaboti era plantado apenas no projeto de conversão da Medida Provisória. Hoje, essa prática deletéria está se alastrando para todo o processo legislativo, até na elaboração de leis especiais.
Esse astuto jaboti causou estragos na doutrina e na jurisprudência do STF, dividindo as opiniões dos doutos.
O Ministro Alexandre de Morais foi o único que pronunciou a inconstitucionalidade desse estranho art. 3º, determinando a aplicação imediata da LC nº 190/2022, porque inocorreram a instituição de novo imposta, nem aumento do imposto existente (ADIs nºs 7066, 7070 e 7078). O insigne Ministro bem distinguiu as relações de direito financeiro das relações de direito tributário que no caso sob comento não existem. É irrelevante que o legislador complementar tenha prescrito a aplicação da noventena onde a Constituição não a prevê. Como limitação ao poder de tributar, a noventena, bem como, o princípio da anterioridade devem ter expressa previsão constitucional, sob pena de inibir a competência tributária dos entes políticos por meio de normas infraconstitucionais. É pacífico na doutrina que a competência tributária tem sede exclusivamente na Constituição, ao contrário da isenção que atua no plano infraconstitucional
O Ministro Dias Tóffoli, por sua vez, acolheu a noventena, sob o argumento de que cabe à lei complementar, assim como, à lei ordinária fixar o prazo de vigência da lei.
Em tese assiste razão ao ilustre Ministro, tanto é que a LINDB prescreve que salvo disposição em contrário a lei entra e vigor 45 dias após a sua publicação.
Logo, o legislador poderia ter fixado o prazo de 15, 20, 30, 45, 60 ou 70 dias, ou seja, um prazo reputado necessário para a adaptação ao novo regime de recolhimento do imposto, se é que isso é necessário. O contribuinte, na verdade, não precisa nem de 5 dias para alterar o destinatário do imposto que recolhe, muito menos o Estado destinatário para passar a arrecadar mais imposto. Afinal, não é preciso ficar planejando a arrecadação do imposto aumentado que decorre de lei. A rotina arrecadatória permanece imutável.
Contudo, o que aconteceu foi a expressa determinação de aplicar o princípio tributário previsto na alínea c, do inciso III, do art. 150 da CF (noventena) que deu azo à interpretação no sentido de que implícito estaria o princípio da anterioridade. Limitação implícita do poder de tributar é matéria que não encontra guarida na doutrina do direito tributário. A tese é revolucionária e flexibiliza o princípio maior da competência tributária.
Abriu a divergência o Ministro Edson Fachin sustentando que o “novo Difal” deve obedecer ao princípio da anterioridade implicitamente contido no princípio da noventena, igualmente, aplicável ao caso sub judice. Seu voto foi seguido pelos Ministros André Mendonça, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski e Rosa Weber. O Ministro Gilmar Mendes pediu vista do processo e posteriormente votou acompanhando a tese do Ministro Dias Tóffoli, a fim de postergar a cobrança da Difal para a partir de abril de 2022.
É impressionante como um jaboti ou um anacoluto inserido pelo descuidado legislador causou tantas divergências de interpretação de normas de direito financeiro, que nada têm a ver com o direito tributário.
Repita-se, a LC nº 190/2022 limita-se a regular as relações jurídicas entre os Estados de origem e de destino, como acentuado pelo Ministro Relator, Ministro Alexandre de Moraes.
Não cabe falar em nova relação jurídica entre contribuinte e o Estado de destino, como sustentado por parte da doutrina e parte dos julgadores, mas, sim em relação jurídica existente entre o contribuinte e o fisco estadual que sempre existiu. O relacionamento do contribuinte com o fisco estadual abrange, obviamente, sua relação tanto com o Estado de origem quanto com o Estado de destino. Não cabe falar em nova relação jurídica do contribuinte com o Estado de destino. Ao se admitir como correto semelhante raciocínio se um dos Estados sofrer um desmembramento estaríamos diante de uma nova relação jurídica contribuinte/novo Estado, a ensejar a aplicação do princípio da anterioridade e da noventena.
O estrago feito pelo jaboti plantado pelo legislador nacional foi terrível. Ensejou o surgimento de três diferentes teses no STF; a) aplicação imediata da LC 190/22; b) aplicação da LC nº 190/22 após a noventena; e c) aplicação da LC 190/22 somente a partir de 1º de janeiro de 2023 (tese majoritária).
A tese majoritária inaugurou nova doutrina do direito tributário: a existência de princípio constitucional implícito, o da anterioridade, que não encontra eco na boa doutrina tributária. Exceção ao poder de tributar deve ser expressa. Isso me parece elementar, com a devida vênia de raríssimos estudiosos que pensam o contrário.
Em meio a esse cipoal de confusões a Ministra Rosa Weber pediu destaque fazendo com que o julgamento voltasse à estaca zero.
Fez bem a Ministra Presidente da Corte Suprema. Perante o Plenário físico será possível debater melhor a questão e dirimir as contradições, expurgando os equívocos decorrentes da confusão entre normas de direito financeiro e normas de direito tributário que no, caso sob exame, não existem.
Com a devida vênia não cabe falar em nova relação jurídica entre o contribuinte e o Estado destinatário a alude o douto Ministro Edson Fachin, pois, o Estado destinatário é o mesmo ente político titular da competência impositiva do ICMS. Diferente a hipótese se a lei complementar sob exame tivesse determinado o pagamento do ICMS ao Município ou à União, só para argumentar. Aí caberia falar em nova relação jurídica entre o contribuinte e novo destinatário do imposto.
Cumpre registrar, por derradeiro, que por ocasião do novo julgamento, a partir de fevereiro de 2023, a aplicação do princípio da anterioridade restará prejudicada.
Todavia, é importante que o STF firme posição a respeito, para servir de precedente a outros casos semelhantes que possam surgir no futuro. É de suma importância que a Corte Suprema diga claramente se a Constituição Federal abrigou ou não o princípio implícito da anterioridade, para limitar a competência dos entes políticos tributantes. Na nossa opinião não!
O princípio da segurança jurídica reclama o pronunciamento definitivo da Corte Suprema sobre essa importante questão que surgiu no julgamento da Difal.
SP, 15 de dezembro de 2022.
Por Kiyoshi Harada