Lei anticorrupção

Sumario: 1 Introdução. 2 O vício da responsabilização objetiva. 3 Os atos lesivos à administração pública nacional ou estrangeira. 4 Da responsabilização administrativa. 5 Acordo de leniência. 6 Da responsabilização judicial. 7 Conclusões.

1 Introdução

Para dar uma resposta à manifestação popular de junho de 2013 que contou com a participação de milhares de pessoas nos principais centros urbanos do País, o governo federal mobilizou suas forças políticas para acelerar e aprovar a toque de caixa a Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013 que dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, e dá outras providências. Essa lei ficou conhecida como lei anticorrupção.

Essa lei teve como base a legislação americana e britânica, incorporando a responsabilidade objetiva e colocando sob tutela a administração pública estrangeira também.

Ela entrou em vigor em 1º de fevereiro de 2014, mas só foi regulamentada pelo Decreto nº 8.420, de 18 de março de 2015. Por ser uma lei de natureza nacional, o Regulamento só terá aplicação no âmbito da Administração Pública Federal.

2 O vício da responsabilização objetiva

A responsabilidade objetiva que está expresso no seu art. 2º não pode subsistir em face do que dispõe a Constituição no capítulo concernente à Administração Pública no sentido de que “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa” (art. 37, § 6º da CF). A ordem jurídica vigente repele a responsabilização civil sem culpa subjetiva da pessoa física ou jurídica de direito privado, salvo se for concessionária ou permissionária de serviço público.

Esse artigo 2º é, pois, inconstitucional. Entretanto, poderá o STF conferir interpretação conforme com a Constituição declarando sua inconstitucionalidade sem redução de texto, a fim de exigir sempre a presença do dolo ou culpa.

3 Os atos lesivos à administração pública nacional ou estrangeira

O art. 5º da lei elenca os atos lesivos à administração pública, nacional ou estrangeira, a serem apurados no âmbito administrativo de cada ente federado e de cada Poder e no âmbito judicial. Não criou novas figuras infracionais. Incorporou o que já existe na legislação penal e na lei de licitação, como por exemplo: prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a agente público, ou a terceira pessoa a ele relacionada; comprovadamente, financiar, custear, patrocinar ou de qualquer modo subvencionar a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei; frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo de procedimento licitatório público; impedir, perturbar ou fraudar a realização de qualquer ato de procedimento licitatório público etc.

4 Da responsabilização administrativa

O art. 6º prescreve a aplicação das seguintes penalidades no âmbito administrativo que poderão ser aplicadas isolada ou cumulativamente:

I – multa, no valor de 0,1% a 20% do faturamento bruto do último exercício anterior ao da instauração do processo administrativo;

II – publicação extraordinária da decisão condenatória.

O art. 7º estabelece nove incisos enumerando os fatores a serem levados em conta para a dosagem da penalidade a ser aplicada, dentre os quais, o do inciso VIII consistente na existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica. Contudo, não estabeleceu a graduação das multas de acordo com os fatores mencionados, deixando a critério da autoridade administrativa. Em relação ao inciso VIII o parágrafo único, do art. 7º remeteu à regulamentação do Executivo.

O Decreto nº 8.420, de 18 de março de 2015, regulamentou a graduação da multa nos arts. 17 e 18. O art. 17 fixa nos incisos I a IV multa de 1% a 2,5%. O inciso V fixa a multa de 5% no caso de reincidência, ao passo que o inciso VI fixa para os casos de “contratos mantidos ou pretendidos com o órgão ou entidade lesado” multas de 1% a 5% em função do valor do contrato. O legislador palaciano fugiu dos parâmetros previstos no art. 7º da Lei que não prevê as hipóteses de reincidência, a continuidade delitiva, a tolerância ou ciência do corpo diretivo da empresa, nem a interrupção no fornecimento do serviço público. O art. 18 fez pior. Do resultado da soma dos fatores aleatoriamente estabelecidos no art. 17, esse art. 18 determina a subtração do faturamento bruto da pessoa jurídica em percentuais que variam de 1% até 4%, de conformidade com as motivações aí previstas, ou sejam, a não consumação da infração; a comprovação de ressarcimento do dano; o grau de colaboração da empresa com a investigação; a denúncia espontânea da infração antes da instauração do processo; e a comprovação de que a empresa possui e aplica o programa de integridade. A regulamentação atabalhoada da multa implicou sua redução sem amparo legal.

Entendo que a graduação do valor da multa entre o percentual mínimo e o percentual máximo do faturamento bruto da empresa está sob reserva de lei. Na sua ausência, somente o Judiciário poderá fixar essas multas. Sua aplicação por autoridade administrativa poderá ser invalidada pelo Poder Judiciário mediante provocação do interessado.

Aparentemente, o Executivo valeu-se da faculdade prevista no parágrafo único, do art. 7º que em relação ao inciso VIII, referente à existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, aduitoria e incentivo à denúncia de irregularidades, remete à regulamentação do Poder Executivo. Não há faculdade para regulamentar os demais incisos, os incisos I a VII e IX, muito menos, com a total abstração dos fatores previstos nesses incisos como fez legislador palaciano.

A instauração e o julgamento de processo administrativo para apuração de responsabilidade de pessoa jurídica cabem à autoridade máxima de cada órgão ou entidade dos Poderes Executivo, Judiciário e Legislativo, que agirá de ofício ou mediante provocação, observados o contraditório e ampla defesa.

Em outras palavras, de regra, a instauração e direção do processo caberá a um Ministro de Estado que exerce uma função mais política do que técnica, por isso mesmo, às vezes, envolvidos em episódios escandalosos. O certo seria a criação de um órgão imparcial para a instauração e julgamento do processo administrativo de responsabilização da pessoa jurídica. É certo que a lei previu a competência concorrente da Controladoria-Geral da União que atuará sempre que o Ministro da área tiver qualquer envolvimento nos fatos a serem apurados, ou para avocar os processos instaurados para exame de sua regularidade ou para corrigir-lhes o andamento. Acontece que o Chefe da CGU tem o status de Ministro e exerce, também, uma função política relevante, além da técnica. Não confere à pessoa jurídica investigada aquela segurança jurídica que decorre do julgamento efetivado por um órgão imparcial, como CADE, CARF etc.

Da maneira como está regulado, o processo administrativo para apuração dos atos de corrupção praticados pela pessoa jurídica, a própria instauração e julgamento do processo poderá descambar para a prática de atos corruptivos, pois a margem de discrição conferida à autoridade administrativa não tem limites na lei.

5 Acordo de leniência

O art. 16 introduz a figura do acordo de leniência a ser celebrado pela autoridade máxima de cada órgão ou entidade pública com a pessoa jurídica responsável pela prática de atos previstos nesta Lei que colabore efetivamente com as investigações e o processo administrativo de sorte a possibilitar a identificação dos demais envolvidos e obtenção célere de informações e documentos que comprovem o ilícito sob apuração.

Esse acordo somente poderá ser celebrado se preenchidos cumulativamente os três requisitos adiante mencionados:

(a) a pessoa jurídica seja a primeira a se manifestar sobre seu interesse em cooperar para a apuração do ato ilícito;

(b) a pessoa jurídica cesse completamente seu envolvimento na infração investigada a partir da data de propositura do acordo;

(c) a pessoa jurídica admita sua participação no ilícito e coopere plena e permanentemente com as investigações e o processo administrativo.

A celebração do acordo de leniência isentará a pessoa jurídica da pena de publicação extraordinária da decisão condenatória; da proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas e de instituições financeiras públicas; bem como implicará redução da multa em até 2/3 do valor previsto no inciso I, do art. 6º.

O acordo de leniência interrompe a prescrição dos atos ilícitos prevista na Lei e poderá reduzir a multa prevista em até 2/3, mas não exime a pessoa jurídica de reparar integralmente o dano causado à administração pública. Esse acordo poderá ser firmado, também, em relação aos atos ilícitos previstos na Lei nº 8.666/93 (Lei de Licitações) com vistas à isenção ou atenuação das sanções previstas nos seus arts. 86 a 88.

No âmbito do Poder Executivo Federal o órgão competente para firmar o acordo de leniência é a Controladoria-Geral da União. Ela também é o órgão competente nos casos de atos lesivos praticados contra administração pública estrangeira. É o que prescreve o § 10, do art. 16 em aparente conflito com o disposto no caput que confere à autoridade máxima de cada órgão a incumbência para celebrar acordo de leniência. Ora, a autoridade máxima de um órgão do Poder Executivo é o Ministro de Estado. O Ministério é sempre um órgão composto que abriga outros órgãos. Por exemplo, o Ministério da Fazenda é composto da Secretaria da Receita Federal que é composto por Superintendências Regionais, por sua vez compostas por várias Delegacias da Receita Federal. Posto que a CGU sabidamente não é o órgão máximo da administração pública, esse § 10 só pode ser aplicado no caso ser atos lesivos praticados no âmbito de órgãos diretamente ligados à Presidência da República. Nesses casos, ao invés de o acordo ser celebrado pelo Presidente da República, excepcionalmente é celebrado pelo titular da Controladoria-Geral da União.

Finalmente, é importante não confundir acordo de leniência de que trata a lei sob comento, com a delação premiada prevista na legislação penal e outros diplomas legais que cuidam de infrações de natureza penal.

6 Da responsabilização judicial

O art. 19 prevê a apuração de responsabilidade pelas infrações previstas no art. 5º da Lei pelo Poder Judiciário mediante ação judicial proposta pelos órgãos de representação judicial, hipótese em que poderão ser aplicadas as seguintes penalidades:

I – perdimento dos bens, direitos ou valores que representem vantagem ou proveito direta ou indiretamente obtidos da infração, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé;

II – suspensão ou interdição parcial de suas atividades;

III – dissolução compulsória da pessoa jurídica;

IV – proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público, pelo prazo mínimo de 1 (um) e máximo de 5 (cinco) anos.

Curiosamente a aplicação das multas de 0,1% a 20% do faturamento bruto da pessoa jurídica a quem é imputada a prática de ato ilícito acha-se subtraída da esfera judicial. Exatamente onde é necessária a intervenção do Judiciário, porque a Lei não definiu a graduação dessas multas, ficou à discrição da administração a dosagem do seu valor, dando margem de dúvida quanto a lisura do processo administrativo, porque não há obediência ao princípio constitucional do devido processo legal. Entretanto, o art. 20 faculta ao juiz a aplicação da multa pecuniária, desde que constatada a omissão das autoridades administrativas competentes para promover a responsabilização administrativa. Porém, não em todas as ações judiciais, mas somente naquelas ajuizadas pelo Ministério Público. Nas ações judiciais afloradas pelos órgãos de representação judicial dos entes políticos (Advocacia-Geral ou Procuradoria-Geral) o juiz não terá a faculdade de aplicar a pena pecuniária pela prática das infrações previstas no art. 5º.

7 Conclusões

A aplicação da responsabilidade objetiva ao pé da letra conduzirá a uma situação de inconstitucionalidade. Caberá à cúpula do Judiciário proceder à interpretação conforme com a Constituição, sem redução de texto para salvar a Lei sob comento.

A discricionariedade conferida a autoridade administrativa para a dosagem da multa pecuniária, agravada pela regulamentação contra os parâmetros objetivos previstos na Lei, poderá acarretar a invalidação judicial da penalidade pecuniária aplicada.

A lacuna da Lei, os dispositivos dúbios e o casuísmo utilizado pelo legislador fez com que o processo legislativo descambe para a arbitrariedade legislativa, violando o princípio da razoabilidade.

Assim sendo, não é de se esperar um combate efetivo aos atos de corrupção praticados pelas pessoas jurídicas de direito privado envolvidas com o poder público (empreiteiras de obras e serviços).

* Jurista, com 30 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

Site: www.haradaadvogados.com.br

E-mail: kiyoshi@haradaadvogados.com.br

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