Limites da coisa julgada

Limites da coisa julgada em matéria tributária*

A coisa julgada em nosso sistema jurídico é imexível, porque protegida por cláusula pétrea que impede a discussão de emenda constitucional tendente a aboli-la.

Realmente, dispõe o art. 5 º da CF inserido no Título II que versa sobre direitos e garantias fundamentais que:

“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros resistentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, nos termos seguintes:

[…]

XXXVI. a Lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.”

Essa garantia fundamental é protegida pela disposição do inciso IV, do § 4º, do art. 60 da CF conhecida como cláusula pétrea, nos seguintes termos:

“§ 4º. Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolição

 […]

IV – os direitos e garantias individuais.”

Coisa julgada, segundo o § 3º, do art. 6º da LINDB, outra coisa não é senão a decisão judicial de que não caiba recurso. Esgotados os recursos cabíveis ou não interpostos no prazo legal a decisão judicial transita em julgado, gerando a chamada coisa julgada.

Não há, a nosso ver, autorização constitucional para, por via de interpretação ou por meio de produção legislativa, alterar o conteúdo e o alcance da coisa julgada.

Assim, não nos parece caber ao STF, guardião da Constituição, por via de interpretação construtiva e inovadora, passar por cima da coisa julgada subtraindo-lhe os efeitos em nome da alegada igualdade material.

Veja-se a redação do caput do art. 5º da CF antes transcrito: refere-se à igualdade de todos perante a lei.

E a Lei Maior confere ao titular da coisa julgada tratamento jurídico diferenciado em relação àqueles que não a têm.

Exemplifiquemos para bem entender essa questão: parte dos servidores públicos da carreira de auditor ingressou com ação judicial para ver incorporado a seus vencimentos determinada vantagem pessoal, obtendo vitória por meio de decisão judicial transitada em julgado. Esses servidores ficarão em posição diferente relativamente aos demais servidores da carreira de auditor que não ingressaram com a ação, ou daqueles que ingressaram com a mesma ação, mas que perderam a demanda judicial.

No caso, não pode o Judiciário procurar conferir igualdade de tratamento jurídico a todos os servidores público da carreira de auditor, quer estendendo o benefício obtido por parte dos servidores aos demais servidores, quer suprimindo os direitos daqueles servidores protegidos pelo instituto da coisa julgada, a fim de que todos fiquem em posição de igualdade.

Na situação apontada em que parte dos servidores conseguiu vitória, enquanto que outros não lograram êxito pleiteando o idêntico benefício haverá desigualdade material? Sim, mas, é uma desigualdade que resulta da decisão judicial transitada em julgado que a Constituição a erige como garantia fundamental não passível de supressão nem mesmo por via de emenda constitucional. Poderá o Legislativo, se quiser, estender aquele benefício a todos os servidores públicos da mesma carreira.

Essa questão veio à baila porque a União pretendeu tributar pela CSLL as empresas detentoras da coisa julgada que as dispensavam do pagamento dessa contribuição, invocando a alteração da jurisprudência do STF que veio considerar constitucional a referida cobrança.

Os limites da coisa julgada em matéria tributária estão sendo julgado em dois Recursos Extraordinários, sob a sistemática de repercussão geral: RE nº 949297 (Tema 881) e RE nº 955227 (Tema 885).

Já foi formada maioria para emplacar a tese no sentido de reverter automaticamente a coisa julgada em havendo decisão judicial superveniente em sentido contrário, dispensando-se a ação rescisória.

A Corte Suprema não definiu ainda quanto à modulação dos efeitos da decisão. Se for decidido pelo efeito ex tunc aqueles contribuintes que deixaram de pagar o tributo por força da coisa julgada a seu favor serão cobrados com juros, correção monetária e eventualmente com multa, o que faria ruir de vez o princípio da segurança jurídica abrigado no caput do art. 5º da CF.

A busca de isonomia material entre todas as empresas, na verdade, é um mero pretexto para aumentar a arrecadação tributária, sem alteração legislativa, sempre dependente do princípio da anterioridade (art. 150, I da CF). E o STF sempre foi bastante sensível ao apelo financeiro do governo. Basta acenar com a ruína da economia, da deterioração dos serviços públicos, do aumento da miséria e outras quejandas para conseguir de imediato a ajuda da Corte Maior na interpretação de normas tributárias ignorando hipóteses de não incidência, contornando as isenções tributárias, flexibilizando as imunidades e conferindo aos textos interpretação fiscalista.

Outras vezes, contudo, o STF age de forma inversa. É seduzido por teses no mínimo estranhas ao direito tributário para ir, aos poucos, por exemplo, esvaziando o conteúdo da base de cálculo dos tributos causando um rombo ao Tesouro, implicando alteração do regime tributário positivado, que inclui as despesas com tributos, as despesas com a mão de obra, bem como a margem de lucro do comerciante no preço das mercadorias ou dos serviços. Daí a conhecida alegação de que o consumidor é o contribuinte de fato.  Pode-se dizer que o STF vem dando uma martelada no casco e outra na ferradura, para tentar manter o equilíbrio entre o fisco e contribuinte, quando, no seu entender, o sistema jurídico-tributário vigente afasta-se do princípio da neutralidade fiscal.

Voltando ao tema, essa pretendida igualdade material é uma utopia. Ela não existe em lugar algum do mundo.

Quando a Declaração Universal de Direitos Humanos, que neste ano completa 75 anos, proclama que todos nascem iguais em dignidade e em direitos, sem distinção de raça, cor, língua, religião, opinião política ou de qualquer outra natureza de origem nacional ou social, propriedade, nascimento ou qualquer outra condição, não quer dizer que no mundo da realidade todos sejam rigorosamente iguais, apesar daqueles direitos fundamentais terem sido incorporados em todas as Constituições dos Estados Democráticos.

Na nossa Constituição eles estão elencados no art. 5º, um dos artigos mais extensos da Carta Magna.

Entretanto, as desigualdades imperam aqui e pelo mundo a fora, em menor ou maior grau.

Cerca de 40 milhões de brasileiros vivem abaixo da linha de miséria, enquanto alguns poucos vivem como nababos.

Essa situação é inconstitucional? Claro que não! Inconstitucional seria a norma que tivesse o condão de propiciar riqueza para uns e pobreza para outros. Porém, se a lei proporcionar igualdade de oportunidades para todos, não se pode falar em afronta ao princípio da igualdade se alguns se situarem em posições socioeconômicas mais vantajosas que outros.

Igualdade de todos perante a lei deve ser entendida como igualdade de oportunidades, isto é, a lei não pode privilegiar determinado segmento da sociedade em detrimento de outro segmento da mesma sociedade em busca de ascensão social ou econômica. Outra coisa bem diversa é a escolha da política pública pelo governante tendo em vista a inclusão social.

Em síntese, a abolição da coisa julgada em nome de igualdade material não nos parece constitucional trazendo um clima de insegurança jurídica. O direito subjetivo material de cada cidadão fica na dependência do entendimento do que os Ministros da Corte Suprema possam ter em determinado momento, sem que houvesse alteração legislativa, como se estivéssemos sob o sistema de direito consuetudinário.

Nem se argumente que uma decisão proferida em sede de controle abstrato (ADI, ADC, ADO e ADPF) ou em sede de Repercussão Geral obriga a todos.

É verdade que essas decisões obrigam a todos, porém, menos àqueles detentores da coisa julgada que a Constituição assegura como direito fundamental do cidadão.

A Corte Suprema, por maioria de votos, já flexibilizou os institutos do direito adquirido e do ato jurídico perfeito ao impor as novas regras decorrentes da EC nº 41//03 para pagamento da contribuição previdenciária do servidor público, relativamente aos pensionistas e aposentados (ADI nº 3.105, DJ de 18-2-2005).

Agora, chegou a vez da flexibilização da coisa julgada que deixa de ser uma verdadeira garantia fundamental, mas apenas uma garantia provisória e temporária, dependente da vontade subjetiva dos Ministros do STF, que poderão modificar os entendimentos anteriormente firmados a qualquer momento, inclusive, motivados por razões extrajurídicas. A insegurança jurídica é total!

Com as respeitosas ressalvas das opiniões em contrário e com o devido respeito que devemos aos onze Ministros do STF diríamos que a Constituição vem sendo reescrita, aos poucos, pelo seu guardião. É a chamada atualização constitucional por via interpretativa para fazer o que uma Emenda Constitucional não pode fazer.

Somente a lei representada por normas jurídicas genéricas e abstratas, que agem para o futuro, é capaz de dar a todos a necessária segurança jurídica à medida que permite ao cidadão a previsibilidade do que ele pode fazer ou não fazer. Daí a garantia fundamental do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada.

Agora, depender do humor dos onze ministros, apesar de todos eles sábios, inteligentes e competentes é algo que gera insegurança a todos, impactando a vida do cidadão em todos os aspectos, inclusive, dificultando o planejamento de suas atividades na área econômica. O mais seguro é ficar com a Constituição que apesar de sucessivos remendos continua preservando o núcleo protegido por cláusulas pétreas.

SP, 6-2-2023.

  • Texto publicado no Portal Migalhas, edição nº 5.537 de 7-2-2023.
  • Obs: Este artigo está sendo reescrito, agora, à luz da publicação dos julgamentos dos dois recursos extraordinários mencionados, na sessão do dia 8-2-2023, o que altera em parte o conteúdo deste artigo.

Por Kiyoshi Harada

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