Medida Provisória. Sua incompatibilidade no sistema presidencialista

A medida provisória constou do anteprojeto de reforma constitucional que se converteu na Constituição de 1988, porque o sistema de governo idealizado pelos seus autores era o sistema parlamentarista.

Mas, durante a discussão do projeto pela Assembleia Nacional Constituinte Derivada houve forte oposição ao sistema parlamentar de governo e acabou emplacando o sistema presidencialista esquecendo-se, entretanto, de extirpar de seu corpo o instrumento normativo incompatível  com o sistema presidencialista em que ao Executivo incumbe fundamentalmente executar as leis em vigor. No que tange ao processo legislativo o Poder Executivo limita-se à iniciativa de leis, e em alguns casos de forma privativa, para ulterior sanção ou veto da lei aprovada pelo Congresso Nacional.

Cabe ao Poder Legislativo, de forma preponderante, a tarefa de elaboração das leis, cabendo ao Poder Judiciário a aplicação das leis de forma definitiva. É o princípio de independência e harmonia dos Poderes, que é um princípio federativo protegido em nível de cláusula pétrea.

Assim, editar medidas provisórias com força de lei nos casos de urgência e relevância,  ainda que com prazo definido para sua aprovação ou rejeição pelo Poder Legislativo, não é compatível com o sistema presidencialista de governo. E sua edição sistemática,  transformando os casos excepcionais em regra geral, ofende às escâncaras o princípio federativo da separação dos Poderes, pois o Legislativo deve dedicar maior parte de seu tempo na apreciação dessas medidas normativas excepcionais, ou que deveriam ser excepcionais.

A Revisão Constitucional levada a efeito em 1994 perdeu a excelente oportunidade de banir esse tipo de instrumento legislativo a pretexto de que era preciso avaliar o seu desempenho por um tempo maior. E os resultados estão aí para todos verem: são pacotes de medidas provisórias que nada têm de urgente ou relevante que são diariamente despejados pelo legislador palaciano entupindo a pauta do Congresso Nacional. Poderão perguntar: por que Congresso não devolve essas medidas provisórias por ausência de requisitos constitucionais? Por que não as rejeitam? É que para os parlamentares, esses instrumentos normativos anormais são altamente palatáveis. Todos eles se aproveitam do seu rito privilegiado de tramitação legislativa para inserir no bojo da medida provisória sob exame um número infindável de emendas versando sobre matérias que não foram abordadas por ela,  dando origem àquilo que ficaram  conhecidos como “jabotis”. Sabe-se que jaboti não sobe em árvore; se um deles for visto no galho de uma árvore é porque alguém o colocou lá.

Dessa forma, o nosso ordenamento jurídico fica recheado de normas díspares, confusas e caóticas, dificultando a vida dos operadores do direito. Para tentar minimizar a confusão nesse cipoal de normas de naturezas diversas, o legislador aprovou a Lei Complementar nº 95/98 que versa sobre elaboração e  aprovação de leis, determinando a enumeração das matérias reguladas em sua ementa e  vedando a revogação tácita. Tamanho é o numero de emendas aprovadas pelo Congresso Nacional no corpo da medida provisória que a ementa da lei de sua conversão, às vezes, ocupa uma página inteira.

Outro efeito devastador provocado por essa espécie normativa é o desvio de finalidade que, muitas vezes,  descamba para os atos de corrupção, praticados, não necessariamente, pelo Chefe do Executivo, mas pelos seus auxiliares mais próximos que, por sua vez, se relacionam com os lobistas que patrocinam esse tipo de elaboração legislativa. Como essas ações escusas são desenvolvidas em segredo, os congressistas acabam aprovando de forma rotineira  essas medidas provisórias viciadas em sua origem.

É certo que a Emenda Constitucional nº 32 de 2001, introduziu alterações ao art. 62 da Constituição para restringir o uso da medida provisória, vedando o seu emprego em determinadas matérias, como direito penal, direito processual civil e penal etc. Continuou, porém, na área do direito tributário contrastando com o princípio da estrita legalidade. Assim como foi proibido o seu emprego no campo do direito penal em respeito ao princípio da tipicidade penal deveria o legislador constituinte derivado deixar a matéria tributária fora o alcance da medida provisória em obediência ao princípio da tipicidade cerrada que caracteriza a norma de tributação. Ao princípio nullum crimen sine lege corresponde o princípio  nullum tributum sine lege.

         É verdade que a EC nº 32/01 trouxe alguns condicionamentos quanto aos efeitos das normas das medidas provisórias que versam sobre instituição ou majoração de impostos, com as exceções especificadas (§ 2º, do art. 62 da CF). Vedou, também, o uso de medida provisória sobre as matérias que estão sob reserva de lei complementar, como aquelas referidas no inciso III, do art. 146 da CF (definição de fatos geradores, de bases de cálculo e de contribuintes; obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributárias).

Sabemos, contudo, que o legislador palaciano não tem obedecido às vedações constitucionais invadindo frequentemente as áreas reservadas à lei complementar, aumentando o número de litígios nos tribunais.

Enfim, todos sabem dos estragos que as medidas provisórias vêm provocando no ordenamento jurídico e, também, na administração pública por conta da ação inescrupulosa dos lobistas que atuam nos gabinetes ministeriais. Mas, as autoridades legislativas não pensam em abolir essa anomalia legislativa porque dela tiram proveito de uma forma ou outra, em virtude do seu rito legislativo privilegiado e a possibilidade ilimitada  de emplacar emendas para cuidar de assuntos de interesse de seu eleitorado. Em caso de urgência e relevância será sempre possível a atuação do Congresso Nacional em sessão unicameral, sob o Regimento Comum às duas Casas Legislativas. E estando em recesso o Legislativo, igualmente haverá a possibilidade de convocação de sessão extraordinária. Nada há que impeça a extinção desse instrumento normativo que permite o legislador palaciano usurpar a competência do Poder Legislativo.

 

* Jurista, com 30 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas.  Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito.  Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

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