Busco no dicionário o verbete “absurdo” porquanto o tempo presente me faz vacilar sobre o seu significado. Ali encontro o adjetivo buscado e seu conteúdo significante: “contrário à razão, ao bom senso”. Para maior afirmação, outro dicionário — o de sinônimos — oferece equivalência significante aos verbetes “disparatado”, “despropositado”, “ilógico”, “incongruente”.
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Persigo ainda compreensão à denominada “filosofia do absurdo”, desenvolvida por Albert Camus. O raciocínio absurdo proposto pelo escritor e filósofo franco-argelino é condição sem a qual não é possível verificar se existe ou não uma lógica que conduza o indivíduo até o suicídio, identificado por ele como o único problema filosófico realmente sério. Um dos conteúdos significantes atribuídos por Camus ao absurdo — talvez o mais evidente deles — consiste em identificá-lo como algo impossível ou contraditório, o que equivale aos conteúdos acima mencionados extraídos do léxico. Em sua exemplificação, se imputarmos um delito a um homem sabidamente inocente, ou se acusarmos um indivíduo virtuoso de desejar (sexualmente) sua própria irmã, ambos tenderão a afirmar que tais sugestões são absurdas: impossível ao inocente, no primeiro caso; contraditória em relação aos princípios cultivados pelo irmão virtuoso, no segundo (“O mito de Sísifo”. 17. ed. Rio de Janeiro: Record, 2019).
Nesse sentido, precisamente, é que se impõe afirmar a absurdidade do tempo presente.
Em nota oficial de propósito indisfarçadamente ameaçador, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência República “alertou” para consequências imprevisíveis à estabilidade nacional na hipótese de ordem judicial que determinasse a apreensão do telefone celular do chefe do Poder Executivo no âmbito de inquérito relatado pelo Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, que se destina a apurar notícia-crime suscitada pelo ex-Ministro da Justiça. Seguidamente, desvelou-se em vídeo e áudio o conteúdo de reunião havida no Palácio do Planalto, mais semelhante a um convescote de camarata, na qual o Ministro de Estado da Educação (sic) exortava, em tom de bravata, a prisão dos “vagabundos todos, começando pelo STF”; a Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos esgrimia a prisão de prefeitos e governadores; e o Ministro do Meio Ambiente propunha que alterações à legislação ambiental fossem aprovadas com o oportunismo necessário, tangenciando a atenção da imprensa, concentrada na cobertura das mortes e internações decorrentes da Covid-19.
A engrossar o já denso caldo político, manifestações civis assomam ecoando proposições claramente antidemocráticas, como o “fechamento” do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, a agressão física a veículos de imprensa, a intervenção militar e mesmo a reedição do nefasto e abjeto Ato Institucional nº 05.
O negacionismo da história é manifestação do absurdo. Não menos absurdo é o suprematismo que se pretende atribuir ao presidente da República. Ambos são impossíveis e contraditórios, no sentido mais raso que a absurdidade sugere.
Norberto Bobbio afirmou, com extrema felicidade, que “a democracia é não tanto uma sociedade de livres e iguais (porque, como disse, tal sociedade é apenas um ideal-limite), mas uma sociedade regulada de tal modo que os indivíduos que a compõem são mais livres e mais iguais do que em qualquer outra forma de convivência” (“Igualdade e liberdade”. 3. ed. Rio de Janeiro: Ediouro). O jusfilósofo italiano arremata: “Onde a liberdade é a regra, sua limitação deve ser justificada”.
Não há qualquer dúvida de que a Constituição Federal de 1988 preconizou tal ideal de democracia, recorrendo à liberdade e à igualdade como valores que lhe servem de fundamento. Assim sendo, não parece absurdamente contraditório que uma ordem jurídica assim erigida seja eclipsada por um substitutivo no qual o autoritarismo seja a regra, e a liberdade exceção? O retrocesso, em tema de liberdades, não é em si contraditório? Recordemos que o malsinado ato institucional, para além do recesso das Casas Legislativas e das intervenções em Estados e municípios, também permitia ao presidente da República suspender os direitos políticos de qualquer cidadão, o que incluía a submissão a “medidas de segurança” como liberdade vigiada, proibição de frequentar determinados lugares e imposição de domicílio determinado.
O arbítrio só distingue o poder. Com o poder ideológico e o poder político encerrados em uma única figura — o chefe do Poder Executivo —, e com o poder econômico enfeixado nas mãos de uns poucos privilegiados, todo o resto tende a não ser distinguido pelo arbítrio (isso inclui a gigantesca maioria daqueles que lerem e dos que não lerem essas linhas).
Tamanha é a preocupação com a manutenção do arranjo democrático dos poderes constituídos e das instituições pátrias que foram recentemente submetidas ao Supremo Tribunal Federal duas ações vocacionadas a delimitar o âmbito de atuação das Forças Armadas.
No Mandado de Injunção nº 7311/DF, o ministro relator, Luís Roberto Barroso, afirmou a inexistência de um poder moderador de perfil hegemônico exercitável pelas Forças Armadas, assim como registrou que a Constituição não submete, em nenhuma hipótese, o poder civil ao poder militar, inexistindo tutores nas democracias. Na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6457/DF, o ministro relator, Luiz Fux, concedeu em parte a medida cautelar pleiteada, estabelecendo balizas de interpretação a dispositivos da Lei Complementar nº 97/99, cumprindo destacar: I) a autoridade do presidente da República é suprema em relação às autoridades militares, não em relação aos demais poderes constituídos na forma da ordem constitucional, de sorte que deve ser exercida com observância das competências privativas estabelecidas no artigo 84 da Constituição; II) os poderes do presidente da República em relação às Forças Armadas não são absolutos, existindo mecanismos de controle no texto constitucional; III) não se admite qualquer interpretação ao artigo 142 da Constituição de que resulte o emprego das Forças Armadas para a defesa de um poder contra outro e; IV) as Forças Armadas se qualificam enquanto órgãos de Estado, não de governo.
Assoma absurda, porquanto contrária à lógica constitucional, a cogitação de que o presidente da República se revestisse de autoridade para colocar em marcha as Forças Armadas contra os demais poderes constituídos do Estado. Nesse particular, só existe uma supremacia: a da Constituição.
Parece, por fim, que a absurdidade assim sustentada ainda se manifesta como um ranço daqueles que insistem em ver, equivocadamente, a personalização do poder na figura do chefe do Executivo. Desde há muito, o poder restou institucionalizado na figura do Estado, exatamente para que os homens não mais se submetessem ao arbítrio de nenhum outro homem.
Contra o absurdo, façamos coro a Drummond: não nos afastemos muito, não distribuamos entorpecentes; tomemos o tempo presente como nossa matéria e sigamos de mãos dadas (“Mãos dadas”. Antologia poética. 60. ed. Rio de Janeiro: Record, 2008).