O período de forçoso isolamento social, aliado ao recesso junino franqueado às cortes superiores, potencializa a oportunidade de reflexão sobre tema há muito debatido e que continua, porém, a frustrar quase todos os sujeitos envolvidos em uma relação processual: a jurisprudência defensiva adotada pelos tribunais pátrios.
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O movimento reflexivo inicial consiste em examinar os termos que compõem a expressão.
Em sentido amplo, a noção de jurisprudência corresponde ao conjunto de decisões jurisdicionais a respeito de uma determinada matéria. A uniformidade de tais decisões, para além de permitir a restrição da noção, é também um elemento que a integra (assim pensamos), na medida em que aí se cumpre uma finalidade essencial a qualquer órgão jurisdicional, notadamente os de composição plúrima: tornar a jurisprudência fonte de produção do Direito.
Já o termo “defensiva” exclui qualquer polissemia. O predicado está claramente a indicar que se trata de uma jurisprudência que repele um ataque. Mas é de se indagar: de quem se defende a jurisprudência defensiva?
O agressor, aqui, não é outro senão o abuso. Mais propriamente, o abuso no exercício do direito de recorrer.
A origem do que se convencionou denominar jurisprudência defensiva remonta ao exercício reiterado e desvirtuado da faculdade recursal, dissimulando-se o verdadeiro propósito da parte recorrente: protelar o desfecho processual, conduzindo a solução definitiva a limites temporais fora de qualquer razoabilidade, valendo-se, a um só tempo, da debilidade estrutural de um Poder Judiciário sobrecarregado de processos e da multiplicidade de espécies recursais previstas no sistema processual.
Nesse contexto, pode-se afirmar que a jurisprudência defensiva dos tribunais pátrios deveria ter se consolidado como prática institucional vocacionada a obstar o processamento de recursos desprovidos dos necessários pressupostos legais e/ou carecedores de fundamento legal de interposição. Deveria, não fosse o desvirtuamento que igualmente aí se encerrou através de um duplo fenômeno: I) o abuso retribuído ao jurisdicionado; e II) o abuso consentido por parte das cortes superiores.
No que respeita ao jurisdicionado, a vedação de acesso às vias excepcionais encontra insólitos matizes no âmbito das decisões oriundas das presidências dos tribunais estaduais e regionais, assim como naquelas oriundas das próprias cortes superiores. A título de exemplo: a) o recurso excepcional ora carece do necessário pré-questionamento da matéria, a despeito da oposição de embargos declaratórios pela parte recorrente (como se houvesse outro expediente destinado à demarcação expressa de questão omitida pelo órgão recorrido). Ao mesmo tempo, não obstante a afirmada inexistência do pré-questionamento, declara-se que o acórdão recorrido não malfere a norma oriunda do artigo 1.022 do Código de Processo Civil, contendo fundamentação suficiente ao deslinde da controvérsia (a depender do caso concreto, as afirmações de inexistência de pré-questionamento e suficiência das razões decisórias se desvelam absolutamente excludentes); b) no mais das vezes, a janela recursal se fecha à invocação do truísmo da suposta necessidade de revolvimento do acervo fático-probatório, desconsiderando-se que os tribunais superiores não apenas podem como devem aceitar os fatos e provas tais quais demarcados pelas instâncias recorridas (não fosse assim, ausente o fato que condiciona a aplicação do Direito, o Superior Tribunal de Justiça teria sua competência esvaziada e o Supremo Tribunal Federal apenas poderia atuar nos denominados processos objetivos, como aqueles destinados ao controle concentrado da constitucionalidade das leis); c) em arremate, uma série de outros temas comporiam a exemplificação, como o reconhecimento de necessária repercussão geral (aplicável ao recurso extraordinário), a imposição de forma exata à comprovação do preparo recursal (comprovante de recolhimento acompanhado do documento de arrecadação), a imposição de comprovação de feriado local para aferição da tempestividade no manejo da insurgência etc.
No que respeita às cortes superiores, chama atenção o abuso por elas consentido e chancelado relativamente a decisões oriundas da presidência de tribunais estaduais e regionais que afirmam, de maneira tão padronizada quanto descuidada, que os fundamentos empregados pela parte recorrente não são suficientes para infirmar as conclusões adotadas no acórdão recorrido. Esse tipo de intelecção traduz inequívoca usurpação da competência constitucionalmente atribuída ao STJ e ao STF, já que a essas cortes superiores compete a análise do mérito recursal, aquilatando se os fundamentos dos recursos especial e/ou extraordinário são ou não suficientes a sustentar os fundamentos de sua interposição.
Em nosso sentir, a denominada jurisprudência defensiva dos tribunais pátrios carece de um elemento de legitimidade. Da mesma forma como, na seara criminal, a ilicitude resta excluída quando a defesa do ofendido é legitimamente exercida para repelir injusta agressão, também no sistema processual os entendimentos pretorianos dirigidos a eliminar o abuso no exercício do direito de recorrer devem ser expressão de uma jurisprudência legitimamente defensiva, exercida com parcimônia e especial atenção ao caso concreto. Indispensável, nesse particular, avaliar se os fundamentos recursais guardam pertinência com os fundamentos jurídicos deduzidos nas instâncias ordinárias, se o recorrente lançou mão dos instrumentos disponíveis ao aperfeiçoamento de decisão jurisdicional deficiente, bem como se, a despeito de eventuais irregularidades sanáveis, é possível prestigiar o exercício da faculdade recursal mediante análise do mérito do recurso manejado.
Os gregos, notadamente com Aristóteles, apontaram a mediania como justa medida a ser perseguida. O sistema processual pátrio, na prática, está a consolidar a lógica das soluções extremas na aplicação de uma justiça retributiva: combater um abuso com o seu equivalente.