Estadão – Juiz de garantias não garante a imparcialidade

Publicado em 22/02/2020  na coluna Fausto Macedo, no Estadão

O novo instituto jurídico denominado juiz de garantias, na verdade, não garante a imparcialidade do juiz que é um requisito ínsito da magistratura, porém, comportando equívocos voluntários ou involuntários que existem no exercício de qualquer profissão. Essa figura surgiu no bojo do projeto anticrime, de autoria do Ministro Sérgio Moro, por meio de um contrabando legislativo, conhecido popularmente como jabuti, levado a efeito pela ilustre deputada Margarete Coelho (PP-PI), muito provavelmente por causa das denúncias formuladas pelo ex presidente Lula quanto à parcialidade do então juiz Sérgio Moro na condução dos atos investigatórios e de instrução criminal. A autoria desse acréscimo legislativo vem sendo disputada também pelo Deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ) como se o novo instituto jurídico fosse uma pérola do Direito Processual Penal.

Em que pese a boa intenção da insigne deputada proponente da medida ela não atentou para o fato de que quando um juiz age contra o princípio basilar da magistratura – a imparcialidade na condução dos trabalhos investigatórios e de instrução criminal – o remédio adequado certamente não é o de responder com nova medida legislativa. Se há possibilidade, ainda que remota, de o juiz que promove a instrução criminal e o julgamento agir de forma parcial nada assegura que essa possibilidade deixará de existir em relação ao juiz de garantias no exercício da função de supervisor das investigações criminais, autorizando as diligências de busca e apreensão, a quebra do sigilo bancário, fiscal e telefônico, e eventualmente o decreto de prisão cautelar ou até mesmo da prisão preventiva. De fato, um e outro juiz pertencem ao mesmo quadro da magistratura, sendo incogitável a ideia de que o magistrado investido na função de juiz de garantias está acima dos demais em termos de imparcialidade da conduta profissional.

A autora da proposta legislativa não se apercebeu, também, que existem centenas de comarcas com um único juiz inviabilizando a implementação da medida proposta.

De duas uma: ou se promove as investigações a distância valendo-se do auxílio de um juiz da comarca vizinha, ou se pratica os atos processuais de investigação mediante presença física, ensejando a figura de juiz itinerante, ou então, estabelecendo um rodízio de juízes das comarcas circunvizinhas.

Uma e outra providência serão de difícil execução e demandarão um tempo considerável com as andanças do juiz ou dos autos, onerando sobremaneira os custos da atuação do Judiciário.

A medida aprovada não regula a sua aplicação no tempo. Não se sabe se a nova regra alcança ou não os processos em curso. Não basta dizer que a norma processual tem aplicação imediata em relação aos atos processuais a serem realizados. Na prática surgirão inexoravelmente as costumeiras impugnações da defesa. E qualquer que seja a solução adotada pelo juiz da causa sempre haverá pedidos de nulidade do processo: ora porque foram aplicadas as novas regras a processos pendentes de finalização das investigações, ora porque essas novas regras deixaram de ser aplicadas nos processos em curso, com investigações em andamento. Se ficar, o bicho come; se correr o bicho pega. A propositura legislativa, que não passou pelos debates parlamentares de praxe porque resultado de um contrabando legislativo no seio do projeto originário do Executivo e que se converteu na Lei nº 13.964, de 24-12-2019, dá ensejo ao aparecimento de situações ambíguas como retro mencionado.

Associações de classe (AMB e AJUFE) e partidos políticos (Cidadania, Podemos e PSL) ingressaram com ADI sustentando, dentre outras coisas, a elevação de custos e exiguidade do prazo de vigência do novo regime (dia 23 de janeiro de 2020). O Min. Presidente do STF, Dias Toffoli concedeu a medida cautelar para adiar a vigência do novo regime por seis meses e excepcionar a sua aplicação em relação a crimes de homicídio doloso, de crimes apurados segundo a Lei Maria da Penha e a infrações apuradas no âmbito da Justiça Eleitoral por causa do dinamismo peculiar a esses processos. E completou a lacuna da lei, determinando que não se aplica o juiz de garantias a processos em curso. Logo, outras exceções e “regras” surgirão, por via do ativismo judicial, para aperfeiçoar o instituto processual penal aprovado açodadamente.

A correção de eventual desvio de conduta do juiz, como aquele apontado pelo ex-presidente Lula, que com elevada dose de exagero e inverdade sustentou e continua sustentando a parcialidade do então juiz Sergio Moro, não está, a toda evidência, na produção legislativa da figura do juiz de garantias, como se este pudesse oferecer garantia maior do que qualquer outro juiz integrante do mesmo quadro da magistratura brasileira.

Para correção de eventuais desvios de conduta profissional a justiça brasileira dispõe de normas da Corregedoria Geral da Justiça em nível local no âmbito dos tribunais estaduais e regionais, e no nível nacional no âmbito do Conselho Nacional da Justiça.

A criação dessa nova figura só contribuirá para acentuar a morosidade do processo, indiretamente reconhecida na decisão liminar do Ministro Dias Toffoli retro apontada, trazer confusões e dificuldades antes inexistentes, e aumentar o elevado custo da prestação jurisdicional. Já há propostas no CNJ prevendo a criação de Varas Regionais de Juiz de Garantias. Mais órgãos para inchar o nosso Judiciário exageradamente composto de quatro instâncias a retardar o trânsito em julgado da decisão judicial, impedindo a prisão do condenado.

Pela longa experiência de mais de meio século que temos no exercício da profissão de advogado do setor público e do setor privado temos a plena convicção de que a nova figura do juiz de garantia abrirá um leque de discussões processuais em potencial em prejuízo do exame acurado do mérito. Isso já vem ocorrendo sistematicamente em relação a processos de natureza civil mediante a aplicação da chamada jurisprudência defensiva que permite ao juiz ou ao tribunal extinguir a ação ou não conhecer do recurso sem exame do mérito que exige exame acurado de todo o processado, um trabalho demorado e cansativo.

 

*Kiyoshi Harada, sócio-fundador da Harada Advogados Associados e presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário (IBEDAFT)

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