Por que faltam recursos públicos no Brasil?

Publicado em 1/6/2021 no Conjur: https://www.conjur.com.br/2021-jun-01/kiyoshi-harada-faltam-recursos-publicos-brasil

O Brasil é o quinto maior país em extensão territorial, com 8.515.767 km², e o sexto mais populoso do mundo, com 211.049.519 de habitantes, só perdendo para China, a Índia, os Estados Unidos, a Indonésia e o Paquistão.

O Brasil chegou a ser a quinta maior economia do mundo, mas foi sendo rebaixado paulatinamente para sexto, sétimo, oitavo, até se situar, atualmente, no 12º lugar no ranking mundial.

O orçamento anual do Brasil de 2021 é de R$ 4,324 trilhões.

O Brasil arrecada o equivalente a 35% do PIB, sendo que na década de noventa tributava o equivalente a algo ente 26% e 27% do PIB, empatando com a tributação dos demais países do Mercosul.

De lá para cá, a tributação foi crescendo ano a ano, até chegarmos ao ponto de saturação acarretando o odioso fenômeno da sonegação de impostos e inadimplências voluntárias e involuntárias com os planos de recuperação judicial, que não param de crescer.

Apesar do crescimento da receita, os serviços públicos tendem a ser cada vez mais claudicantes. Temos uma tributação de fazer inveja aos países adiantados e uma prestação de serviço público de um país subdesenvolvido.

A elite política elegeu os valores da solidariedade, da fraternidade, da igualdade etc., mas continua indiferente aos 40 milhões de brasileiros que vivem abaixo da linha de miséria. E a Constituição garante o emprego para todos, o exercício de qualquer profissão e também uma vida condigna de acordo com os ditames da justiça social; porém, temos mais de 14 milhões de desempregados.

Apesar da pandemia, a economia vai bem sustentada, sobretudo, pelo agronegócio, que neste ano bate novo recorde de produção e gera um superávit comercial fantástico.

Como então se explica a falta de recursos financeiros para a implementação de políticas públicas? Nem para fazer o censo demográfico programado para este ano haverá verbas, por conta do sumiço de R$ 2 bilhões que estavam na proposta originária de orçamento enviado pelo Executivo.

O orçamento anual, que deveria ser um instrumento de exercício da cidadania, virou uma mera ficção jurídica, uma mera formalidade constitucional. Não reflete, como deveria, o plano de ação governamental adiantado nas campanhas eleitorais. O orçamento anual falece, pois, de legitimidade.

A proposta orçamentária é desfigurada parcialmente com as emendas parlamentares, que somam 2,2% da receita corrente líquida prevista na proposta. O orçamento nasce com vinculação de 15% de receita corrente líquida para a Saúde e 18% para a Educação. Os recursos destinados aos Poderes Judiciário e Legislativo, bem como, ao Ministério Público e Defensoria Pública, devem ser disponibilizados em duodécimos no dia 20 de cada mês. Essas verbas são, pois, de execução obrigatória, o que não acontece com as dotações do Executivo cujas verbas podem ser contingenciadas, provocando a piora dos serviços públicos essenciais.

Logo, cerca de 50% dos recursos orçamentários já nascem com destinação certa de obrigatória execução.

Por fim, temos o grande instrumento demolidor do orçamento anual, a DRU (Desvinculação das Receitas da União), sucessora do FEF que, por sua vez,  sucedeu ao FSE criado no governo FHC, porque no ano de 1994 o país ficou sem orçamento em razão do tempo tomado pelo processo de impeachment do Presidente Collor.

A causa cessou, mas, o gosto pelo gasto discricionário, sem obediência ao princípio da legalidade das despesas públicas, fez com que os congressistas encampassem as sucessivas propostas do Executivo de promulgar, periodicamente, uma emenda para não deixar findar esse terrível instrumento que promove a desmontagem do orçamento anual de até 30% das verbas fixadas, que vem dificultando, senão impossibilitando o controle e a fiscalização da execução orçamentária, por ausência de indispensáveis elementos de despesas. Essa DRU representa, pois, um cheque assinado  em branco e entregue ao governante para gastar à sua discrição.

Antes, essa DRU era de 20% do total da arrecadação tributária. Ao mesmo tempo em que pregava necessidade de fazer a Reforma de Previdência para evitar a sua quebra, a União retirava mensalmente 20% da arrecadação da contribuição previdenciária, fato que mereceu sucessivas críticas externadas na nossa obra Direito Financeiro Tributário, hoje na 30ª edição, até que foi, finalmente, promulgada a Emenda 93/2016, poupando os recursos da Previdência Social, mas elevando o percentual de desvinculação para 30%, além de estender a DRU para os estados e os municípios. Estava plantada a semente da quebradeira financeira dos estados. Hoje, temos seis deles quebrados, dentre os quais Rio, Minas e Santa Catarana.

Por falta de vontade política, falta de planejamento e falta de gestão fiscal responsável, na contramão da Lei de Responsabilidade Fiscal, o governante não consegue cumprir com as suas obrigações até o final do exercício, lançando mão, de forma sistemática, do expediente de “restos a pagar”, que consiste em transferir as despesas empenhadas e não pagas até o dia 31 de dezembro para serem executadas no exercício seguinte. Assim, o orçamento subsequente já nasce desequilibrado materialmente.

Qual a real causa desse desequilíbrio das contas públicas?

Na década de noventa, constituí dois grupos de pesquisas com os meus alunos de Direito Financeiro. O primeiro grupo deveria levantar os dados concernentes às receitas previstas e às receitas realizadas nos cinco últimos orçamentos. O segundo grupo ficou encarregado de confrontar no mesmo período o montante das despesas consignadas para os diferentes ministérios e o real montante das despesas executadas em cada ministério.

O resultado foi estarrecedor. O primeiro grupo concluiu que em nenhum dos exercícios analisados a arrecadação de receitas ficou aquém do montante estimado na Lei Orçamentária Anual (LOA). O segundo grupo concluiu que nenhum dos ministérios havia executado totalmente a verbas consignadas, situando-se em média em 70% das despesas fixadas na LOA.

Pergunta-se: onde foram os 30% das verbas consignadas, considerando que não houve, no período pesquisado, queda de arrecadação situando-se abaixo do estimado? Ninguém sabe, nem se descobre — melhor dizendo, ninguém se esforça para descobrir os desvios orçamentários rotineiros.

Descobrimos que um dos grandes ralos por onde desaparece o dinheiro público são os fundos que não contêm elementos de despesas; portanto, não permitem o controle e fiscalização dos gastos.

Por isso, o legislador constituinte estabeleceu que lei complementar deveria estabelecer condições para instituição e funcionamento fundos (artigo 165, § 9º, II da CF). Esse artigo jamais foi regulamentado pelo Parlamento Nacional.

E mais, o artigo 36 do ADCT prescreveu que os fundos existentes na data da promulgação da constituição (5/10/1988) deveriam ser ratificados pelo Congresso Nacional no prazo de dois anos, sob pena de extinção.

Nenhum dos inúmeros fundos existentes foi ratificado pelo Congresso Nacional e nenhum deles foi extinto conforme determinação do legislador constituinte.

Ao contrário, periodicamente, novos fundos são criados, como o Fundo Nacional de Segurança Pública, o Fundo Nacional do Idoso, o Fundo Partidário e o Fundo  Eleitoral, só para citar alguns. O pior desses fundos é o Fundo Eleitoral, que consome a cada eleição mais de R$7 bilhões retirados da sociedade para financiar as ricas campanhas eleitorais, a pretexto de democratizar o processo eleitoral, permitindo a participação de candidatos pobres, como se estes conseguissem receber qualquer centavo por conta desse fundo eleitoral que beneficia apenas os “donos” de partidos políticos. Onde está o critério objetivo para a distribuição de verbas desse fundo? A desfaçatez só encontra resposta na absoluta ausência de ética de políticos que se posicionam dessa forma, entretanto o baixo índice de esclarecimento da população em geral não permite detectar o mau caratismo desses “legítimos” representantes do povo.

Como é possível manter esses ralos por onde desaparecem os recursos financeiros tomados dos particulares para que o Estado possa retribuir em forma de políticas públicas planejadas, implantadas e executadas de forma a atender às necessidades basilares da população?

Todos os males da elaboração e execução do orçamento resultam da contribuição conjunta dos três Poderes. Como detectado pelo TCU, no orçamento de 2020 R$3 bilhões do Ministério da Integração Regional foram desviados pelos senadores e deputados por meio de “emendas do relator”, conhecidas como “orçamento secreto”.

Se fosse para simplesmente favorecer o estado representado pelo senador, ou o eleitorado que o deputado representa, como alegam os parlamentares, o mal não assumiria uma dimensão tão grave. Mas não, tratores foram comprados por valores que superam em 279% aqueles que o governo vinha gastando dentro dos limites das dotações orçamentárias próprias. E mais, esses mesmos parlamentares desviaram R$ 1,6 bilhão destinados à Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) para execução de obras em municípios que distam mais de 1,5 mil quilômetros das águas do São Francisco — isto é, em atividades alheias à finalidade da Codevasf. A auditoria do TCU revelou ainda indícios de irregularidade nas licitações para execução de obras em locais que nada têm a ver com as obras contempladas pela Codevasf.

Para reverter esse quando é preciso ter uma mudança cultural radical. Substituir a cultura do individualismo, do egoísmo arraigado na nossa sociedade desde o tempo do Império, pela cultura do coletivismo e da empatia. Vale dizer, é preciso ética no agir de cada um. Ética vem da palavra grega ethos,que significa ação, comportamento, atividade. Daí o conceito de ética como parte da filosofia que estuda os valores morais e os princípios da conduta humana. É preciso que o agir de cada um no dia a dia esteja voltado para a prática do bem, a fim de promover o bem-estar social, ou seja, direcionar o seu comportamento para o bem da coletividade.

Por isso, é preciso ética no ato de legislar; ética no ato de executar; e ética no ato de julgar.

Somente, assim estaremos abrindo o caminho para, aos poucos, materializar os direitos e garantias enumerados no artigo 5º e esparsos em outros dispositivos constitucionais.

Recursos financeiros para consecução de grande parte desses direitos e garantias nunca faltaram. É preciso que os recursos arrecadados sirvam única e exclusivamente para satisfação do interesse público exteriorizado na LOA e não desapareçam pelos ralos, para satisfação de interesses individuais dos detentores do poder político.

É preciso que haja efetivo controle e fiscalização da execução orçamentária pelos mecanismos de controle interno, controle externo e controle privado ou social.

Quando os integrantes do Congresso Nacional, órgão incumbido de efetuar o controle externo com auxílio do TCU, estão envolvidos nos desvios de verbas orçamentárias, só resta o exercício da cidadania fiscal por intermédio do controle social da execução orçamentária, sempre dependente de conhecimentos técnicos especializados na área do Direito Financeiro.

Daí a reversão desse triste quadro financeiro-orçamentário por via de alteração da cultura do egoísmo, do individualismo, do materialismo, subsituindo o verbo “ter” pelo verbo “dar”, o que demanda  a postura ética de que falamos.

Kiyoshi Harada é professor de Direito Financeiro e Tributário. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário (Ibedaft) Ex-procurador chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

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