A transfiguração da atividade religiosa por decreto presidencial

A transfiguração da atividade religiosa por decreto presidencial

Artigo publicado hoje (14/05/2020) no blog do Fausto Macedo, no Estadão

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Deve-se à denominada Escola do Serviço Público, desenvolvida e consolidada em França, a iniciativa de divisar o serviço público enquanto objeto primaz da Administração Pública, competindo-lhe a satisfação, regular e contínua, das necessidades indispensáveis à manutenção da interdependência social, sob regime jurídico especial. Que a Administração Pública as satisfaça vem a ser a mais elevada manifestação do interesse público.

A noção de serviço público, entretanto, não escapa a certa fluidez que lhe é característica, já que a definição das atividades assim tomadas pode variar de acordo com o tempo, o local e mesmo a ideologia predominante em cada unidade política soberana. Neste particular, Estados organizados sob perfis socializantes terão, sob titularidade da Administração, um número superior de serviços em comparação a outros, de perfil liberal; Estados teocráticos e confessionais, por exemplo, tenderão a assumir como próprias atividades de natureza religiosa, em oposição a Estados seculares.

A Constituição Federal de 1988 determinou ser incumbência do Poder Público, na forma da lei, a prestação de serviços públicos. Conferiu à União Federal, no plano de sua competência material, a exploração de uma série de atividades assim identificáveis, dada a essencialidade de que revestidas, a exemplo dos serviços postal, de telecomunicações, energia elétrica, transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros etc.

No plano ideológico, o Estado brasileiro passou a adotar, desde sua primeira Carta republicana (1891), o postulado da laicidade, abandonando o caráter confessional resultante da Constituição imperial de 1824, outorgada “em nome da santíssima trindade”, tendo na religião católica apostólica romana o princípio de fé do Império.

Houve um tempo em que as mais poderosas monarquias deviam à unção do santo pontífice romano o reconhecimento de sua legitimidade. Se assim não o é, desde há muito, parece certo, todavia, que as comunidades religiosas ainda compõem, neste primeiro quartel do século XXI, uma parcela relevante e expressiva no que tange à governabilidade do poder estatal.

Religião e Estado voltaram a se imiscuir, agora no delicado cenário da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do denominado coronavírus.

Muito embora o ordenamento jurídico pátrio já consagrasse a identificação legal de atividades tomadas por essenciais, para efeito de regulamentação do exercício do direito de greve (Lei n.º 7.783/89), o Presidente da República houve por bem editar, no contexto de combate à pandemia, os decretos de números 10.282/20 e 10.292/20, para definir que as “atividades religiosas de qualquer natureza, obedecidas as determinações do Ministério da Saúde”, se incluem no rol de serviços públicos e atividades essenciais indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade.

O primeiro problema aí identificável se situa no arranjo engendrado para que tal determinação fosse empreendida pelo chefe do Poder Executivo. A Lei n.º 13.979/20, proveniente do Congresso Nacional, dispôs sobre uma série de medidas de enfrentamento à pandemia. Pouco mais de um mês depois, a pretexto de ditar orientação uniforme a todos os entes políticos, o Presidente da República, por intermédio da Medida Provisória n.º 926/20, alterou a referida lei com o fim de auto estabelecer sua competência para, mediante decreto, dispor sobre serviços públicos e atividades essenciais. Assim o fez, editando os decretos regulamentadores acima mencionados. Com uma solução combinada (MP-decreto), tangenciou o princípio da lex populi e o problema da impossibilidade de se conduzir tal empreitada mediante decreto autônomo.

A solução presidencial não possui, contudo, o condão de transformar a água em vinho, tal qual o fez Jesus, no milagre protagonizado durante as bodas de Canaã da Galileia.

Em primeiro lugar, há uma tênue diferenciação a ser destacada: todo serviço público corresponde a uma atividade essencial, mas a recíproca não é sempre exata. Atividades essenciais há, como aquelas de natureza bancária, que não constituem serviço público, já que submetidas ao regime jurídico próprio da iniciativa privada. A Lei n.º 7.783/89 trata serviços e atividades como expressões equivalentes, atribuindo-lhes o predicativo da essencialidade; já o Decreto n.º 10.282/20 confunde, impropriamente, serviços públicos e atividades essenciais, tomando-os como expressão única, o que torna ainda mais grave a invocação às atividades religiosas. Estas, por imperativo constitucional (art. 19), jamais poderão se encontrar sob a titularidade estatal, porquanto vedados à União, Estados, Distrito Federal e Municípios o estabelecimento e a subvenção a cultos religiosos ou igrejas. O Estado não nega, por certo, a transcendência da atividade religiosa; porém, essa transcendência é de alcance limitado, restrita às respectivas comunidades religiosas, não alcançando toda a comunidade política, ou seja, o poder institucionalizado que o Estado representa.

Para além disso, por decorrência mesmo da neutralidade imposta a um Estado de cariz laico, tem-se que as atividades religiosas constituem expressão tipicamente privada, ainda que empreendidas na ambiência de cultos e reuniões que conferem expressão à liberdade de crença. O seu exercício individual não altera a noção de pertencimento a tais comunidades e, contrariando toda a lógica, é a permissão do seu exercício coletivo que, neste momento de emergência, coloca em perigo a sobrevivência e a saúde da população.

A Justiça Federal da 2ª Região, a propósito, determinou já a suspensão da aplicação dos incisos incluídos pelo Decreto n.º 10.292/20, que impingiram as atividades religiosas e unidades lotéricas enquanto serviços públicos e atividades essenciais, destacando a ausência de lastro coerente de tais previsões para com o ordenamento jurídico precedente (Processo n.º 5002814-73.2020.4.02.5118/RJ).

Gregório de Matos, expoente barroco tão famoso por sua verve satírica, consagrou à poesia sacra estes lindos versos: “Em todo o Sacramento está Deus todo,/E todo assiste inteiro em qualquer parte,/E feito em partes todo em toda a parte,/Em qualquer parte sempre fica todo.”. Assim como no quarteto poético, as noções de parte e todo também são referentes e recíprocas em política. Convém que o chefe do Poder Executivo também faça sua parte, a fim de salvaguardar o todo.

*Diógenes de Brito Tavares, especialista em Direito Constitucional do Harada Advogados

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