A tributação de software e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal

Artigo publicado no site Conjur em 27/11/20

https://www.conjur.com.br/2020-nov-27/harada-tributacao-software-jurisprudencia-stf

O meio eleito para a comercialização de dados do programa não altera a sua substância, que continua sendo uma mercadoria, a qual não mais está atrelada ao conceito de algo tateável ou palpável.

Essa velha questão volta à baila no bojo da ADI nº 1.945, de relatoria da ministra Cármen Lúcia, cujo julgamento estava interrompido desde 19/4/1999.

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade impugnando a Lei nº 7.098/98 do Estado de Mato Grosso, que incluiu na tributação pelo ICMS as “operações com programa de computador — software —, ainda que realizadas por transferência eletrônica de dados.”

Seis votos já foram proferidos afastando a incidência do ICMS e afirmando a competência impositiva pelo ISS com base no item 1.05 da lista anexa à LC nº 116/03 na redação dada pela LC nº 157/16. A sessão de julgamento do último dia 11 foi suspensa por pedido de vista do ministro Kassio Nunes Marques.

Ficou assentado, de longa data, que o software produzido em escala industrial para venda ao público em geral (software off the shelf) é tributado exclusivamente pelo ICMS, ao passo que o software produzido por encomenda para uso pessoal do encomendante (customized software) é tributado apenas pelo ISS (RE nº 176.626, rel. min. Sepúlveda Pertence, DJ de 11/12/98). Todavia, essa matéria ainda está sendo discutida no RE nº 688.223, relator ministro Luiz Fux, em que foi reconhecida a existência de repercussão geral, conforme decisão publicada no DJe de 4/10/2012.

A clássica distinção entre o ICMS e o ISS, fundada na natureza da obrigação de direito civil, não é mais pacífica na doutrina, desde o advento do acórdão proferido no RE nº 651.703, relator ministro Luiz Fux, DJe de 26/4/2017, que, reinterpretando o preceito constitucional do artigo 156, III, da CF, desvinculou o campo de incidência do ISS das obrigações de fazer. Até então, o ICMS só poderia incidir sobre circulação de bens corpóreos expressando uma obrigação de dar, ao passo que o ISS só poderia incidir sobre circulação de bens imateriais, expressando uma obrigação de fazer.

No caso sob exame trata-se de definir o tributo incidente sobre o software off the shelf.

O STF, ao contrário do esperado — uniformização de tratamento dispensado ao software de prateleira e ao software encomendado — trilhou no sentido de manter a clássica distinção, exigindo-se como condição de incidência do ICMS a obrigação de dar, isto é, um suporte físico (CD-ROM, DVD etc.) que abrigue o programa de computador. De fato, quando a Corte Suprema indeferiu, por maioria de votos, o pedido de liminar para suspender os efeitos do inciso VI do §1º do artigo 2º da Lei nº 7.098/98 do Estado de Mato Grosso, que incluiu no campo de incidência do ICMS “as operações com programas de computador — software — ainda que realizadas por transferências eletrônicas”, sinalizou claramente uma mudança de interpretação, desvinculando-se da ideia de circulação de bem tangível. Contudo, a esperada interpretação evolutiva não aconteceu neste caso específico.

A adaptação da jurisprudência da corte à realidade exsurge nítida desde o julgamento da questão envolvendo as embalagens personalizadas que foram incluídas no campo de tributação pelo ICMS, porque na realidade atual elas constituem insumos indispensáveis para a circulação de mercadorias (ADI nº 4.389/DF-MC, rel. min. Joaquim Barbosa, DJ de 25/5/2011). Não se distinguiu, na época, a embalagem de remédio, de alimentos e de líquidos, indispensáveis à comercialização, das embalagens de supermercados em que elas não configuram como itens indispensáveis à comercialização. Acrescente-se que o conceito de mercadoria como um bem tangível é infirmado pela própria Constituição, que em seu artigo 155, §3º, incluiu as operações com energia elétrica no campo do ICMS. Importante lembrar, ainda, que o STF equiparou o livro eletrônico (um bem intangível) ao livro físico para o efeito de reconhecimento da imunidade (RE nº 330.817, rel. min. Dias Toffoli, DJe de 30/8/2017).

A dinâmica da realidade social tendo em vista a evolução da informática intensificou o e-commerce em razão, também, da pandemia, a impor uma interpretação evolutiva dos textos normativos.

O software de prateleira não precisa mais ser adquirido em lojas, sendo mais prática a sua aquisição pela internet, por meio de download. O meio eleito para a comercialização de dados do programa não altera a sua substância que continua sendo uma mercadoria, a qual não mais está atrelada ao conceito de algo tateável ou palpável. Tanto na venda de CD-ROM ou DVD contendo o software, como na sua aquisição por meio da internet, promovendo a transferência do programa para o computador do usuário configura autêntica operação de compra e venda. O que é relevante é o produto e não o corpus mechanicum onde se aloja o software.

Entretanto, nesse julgamento o STF filiou-se, por maioria de votos, à sua antiga jurisprudência, que separava a obrigação de dar que enseja o ICMS e a obrigação de fazer que fixa a tributação pelo ISS.

Infelizmente, a demora nos julgamentos do STF, bem como a falta de uniformização de critério interpretativo, ora procedendo a uma interpretação evolutiva, ora se apegando a uma interpretação involutiva, traz uma enorme insegurança jurídica. Só falta o STF julgar o RE nº 688.223, paralisado desde 4/10/2012, em sentido contrário ao que decidiu nesta ADI de nº 1.945.

Kiyoshi Harada é presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário (IBEDAFT), sócio da Harada Advogados e ex-procurador chefe da Consultoria Jurídica do município de São Paulo.

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