Kiyoshi Harada
Como todos sabem o STF considerou incurso no art. 2º, inciso II, da Lei nº 8.137/90 o devedor contumaz do ICMS declarado.
De fato, por maioria de votos, a Suprema Corte fixou a seguinte frase:
“O contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990”. (RHC nº 163334, Dje de 12-11-2020).
Prescreve o citado art. 2º, inciso II da lei nº 8.137/90:
Art. 2º Constitui crime da mesma natureza1
[…]
II- Deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo da obrigação e que deveria recolher os cofres públicos.
Como se verifica, o crime se consuma com a simples omissão, isto é, deixar de recolher, no prazo legal, tributo descontado ou cobrado. Não precisa ser devedor contumaz que, por si só, não configura crime. Trata-se de crime omissivo próprio não comportando a figura da tentativa.
Tributo descontado significa aquele que se dá mediante retenção na fonte.
A legislação de cada ente político define os casos de retenção na fonte. A legislação do imposto de renda obriga a fonte pagadora reter o imposto devido pelos destinatários dos rendimentos (empregados, trabalhadores autônomos e avulsos). A legislação previdenciária, igualmente, impõe o dever de a fonte reter a contribuição previdenciária devida.
Tributo cobrado, por sua vez, decorre do regime de substituição tributária com fundamento no §7º, do art. 150 da CF. Com base no fato gerador presumido é autorizado o legislador ordinário nomear como responsável tributário pessoa indiretamente vinculado ao fato gerador da obrigação tributária e dele exigir o pagamento antecipado do imposto.
Por exemplo, a montadora de veículo deve cobrar do adquirente o ICMS que seria devido na revenda do veículo. e recolher o imposto no prazo legal.
Se o imposto cobrado do revendedor não for recolhido caracteriza-se o crime de apropriação indébita do imposto. O não recolhimento do imposto devido na operação própria da montadora configura tão somente situação de devedor de imposto.
O crime do inciso II, do art. 2º da Lei nº 8.137/90 pressupõe relação jurídica que se desenvolve entre contribuintes do imposto. Somente nessa hipótese é que cabe tanto reter o imposto mediante desconto, como também cobrar o imposto.
Não faz sentido reter ou cobrar o imposto do consumidor final que não é contribuinte do imposto e, portanto, não pode sofrer retenção, desconto ou cobrança do imposto.
Todo tributo indireto repercute na política de formação do preço. O destaque do ICMS na nota fiscal, por exemplo, não significa recebimento pelo vendedor do imposto destacado que só serve para o contribuinte apurar o valor do imposto a ser pago no final do mês, mediante operação aritmética de crédito do imposto pelas entradas de mercadorias e de débitos do imposto pelas saídas de mercadoria no mesmo período.
Não é jurídico afirmar que o vendedor recebeu o ICMS do consumidor final. O vendedor apenas recebe o preço da mercadoria no qual se encontra repercutido o valor do imposto, as despesas com a folha, as despesas administrativas, inclusive o lucro da operação de compra e venda etc.
Não sendo o consumidor final contribuinte do imposto não há possibilidade jurídica de descontar ou dele cobrar o ICMS. O desconto do imposto mediante retenção na fonte ou a cobrança do imposto é operação que somente é passível de ocorrência entre os contribuintes do imposto.
O crime em tela só é possível em relação às operações de substituição tributária em que o contribuinte substituinte cobra antecipadamente do contribuinte substituído o imposto que seria devido por ocasião da revendo da mercadoria adquirida, com fundamento no fato gerador presumido (§ 7º, do art. 150 da CF). No caso, o estabelecimento substituinte recolhe o ICMS das operações próprias, na condição de contribuinte, ao mesmo tempo que recolhe o ICMS cobrado do estabelecimento substituído, na condição de responsável tributário.
O STF equiparou o ato de receber o imposto embutido no preço ao ato de cobrar o imposto, para efeito de fazer incidir a norma penal tipificada. Procedeu, na verdade, uma “industrialização” dos fatos.
Ora, o verbo cobrar e o verbo receber não são sinônimos. Não há como o vendedor cobrar imposto do consumidor que não é contribuinte. O vendedor, que não detém o poder de tributar, só pode cobrar o imposto de quem quer que seja, na única excepcional hipótese de substituição tributária por expressa determinação legal, revestindo a condição de responsável tributário (art. 121, parágrafo único, inciso II, c.c. art. 128 do CTN e § 7º, do art. 150 da CF). Fora desse contexto a tese da apropriação indébita do ICMS só seria possível no sistema de tributação por fora vigente nos Estados Unidos e no Japão, onde o imposto é recolhido pelo comerciante ou tomador de serviços separadamente, sem integrar o valor do preço do produto ou do serviços, conforme afirmamos em nossa obra2 .
Criminalizando a conduta do contribuinte, devedor contumaz do ICMS declarado e não recolhido, o Supremo Tribunal Federal, com certeza, inaugurou uma nova política criminal tributária adentrando no campo reservado ao legislador, no que foi sacramentado recentemente pelo STJ que editou a Súmula 658 mais adiante transcrita.
E isso é gravíssimo porque no direito penal vigora o princípio da tipicidade cerrada, desde o tempo do Marques de Beccaria, iluminista do século XVII, autor do livro “Dos Delitos e das Penas”. Nullum crimen sine lege. Não há crime sem lei; não há crime por analogia, muito menos por construção pretoriana. A Corte Suprema reescreveu a norma do inciso II, do art. 2º da Lei nº 8.137/90.
Essa equivocada jurisprudência do STF poderá alterar o comportamento do contribuinte em dificuldade financeira para se abster de escriturar as operações de entrada e de saída das mercadorias deixando de apurar o imposto devido. Em isso acontecendo caberá ao fisco a árdua e difícílima tarefa de fiscalização presencial para levantar toda a atividade do contribuinte omisso para ao final do processo administrativo tributário, onde se discute o crédito tributário apurado pelo fisco, ingressar com a representação penal por crime contra a ordem tributária. É bem diferente de decretar a prisão de quem escriturou seus livros fiscais informando o fisco do montante do imposto devido. Se grande parte dos contribuintes for por esse caminho, para se verem livres de prisão imediata, ficará inviável a cobrança por meio de lançamento de ofício.
A criminalização da conduta do devedor contumaz de ICMS declarado afronta o Pacto de São José da Costa Rica de que é signatário o Brasil, cujo art. 7º, item 7 veda a prisão por dívida.
O Colendo STJ, que antes tinha posições conflitantes (5ª Turma e 6ª Turma) após a decisão plenária do STF passou a criminalizar o devedor do ICMS tanto nas operações próprias, como nas operações de substituição tributária, conforme decisão da 3ª Seção, mas exigindo-se os requisitos de “devedor contumaz e de dolo de apropriação do imposto”, sob pena de descaracterização do crime (Resp nº 1867109, 6ª Turma).
Lamentável que o Tribunal da Cidadania tenha que seguir a orientação do STF mesmo na matéria de interpretação de norma infraconstitucional onde o STJ é soberano.
Recentemente o STJ editou Súmula 658 do seguinte teor:
“O crime de apropriação indébita tributária pode ocorrer tanto em operações próprias como em razão de substituição tributária.”
A redação da Súmula enseja dúvidas. A final exige ou não que a conduta do agente seja a de um devedor contumaz e exteriorizador do dolo de apropriação do imposto, conforme jurisprudência firmada pela 6ª Turma no Resp nº 1867109?
Se aplicar a conduta qualificada para ambas as hipóteses estará havendo, igualmente, nova inovação do texto legal, o do inciso II, do art. 2º da Lei nº 8.137/90 em que bastará simples omissão de recolhimento do ICMS cobrado antecipadamente do contribuinte-substituído. Se o substituinte cobra o imposto do substituído e não recolhe esse imposto no prazo legal, ipso facto, caracterizado estará o crime de apropriação indébita tributária. Não é preciso ser devedor contumaz do imposto.
Sempre que a jurisprudência substitui o legislador no ato de legislar, a pretexto de interpretar a lei, traz insegurança jurídica porque os membros do Judiciário não têm a mesma experiência, nem a vocação dos agentes públicos encarregados da tarefa de elaborar as leis.
Esperamos que o STF, agora, com nova composição3 reveja essa equivocada jurisprudência que se formou no julgamento do RHC nº 163.334, por maioria de votos e que contraria o Pacto de São José da Costa Rica. Os ministros Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski, acertadamente, proviam o HC para trancar a ação penal.
SP, 25-9-2023.
1 Crimes contra ordem tributária definidos no art. 1º da Lei nº 8.137/90.
3 Em outubro outro(a) Ministro (a) substituirá a Ministra Rosa Weber que votou pela criminalização do devedor contumaz do ICMS.