óbvio

O que é óbvio nem sempre é percebido

O que é obviedade? É a qualidade do que é óbvio, isto é, patente, evidente, incontestável, manifesto; fácil de descobrir; fácil de entender; aquilo que salta aos olhos.

Pois bem, nem sempre as palavras traduzem o que são. O óbvio nem sempre é manifesto e incontestável.

Citemos um exemplo para melhor compreensão do que estamos expondo.

Oito em cada dez tributaristas situam as matérias reguladas nos artigos 157, 158 e 159 da Constituição Federal no campo do direito tributário, porque esses artigos localizam-se topologicamente no Capítulo I, do Título VI que versa sobre o Sistema Tributário Nacional.

Mas, os artigos 157, 158 e 159 da CF cuidam da repartição das receitas tributárias entre a União, Estados e Municípios por meio das modalidades aí previstas.

O art. 157 regula a incorporação ao Estado do IRRF, e a participação do Estado em 25% do produto de arrecadação do imposto instituído pela União com base no art. 154, I da CF (imposto inominado).

O art. 158 defere ao Município o produto da arrecadação do IRRF; destina ao Município 50% do produto de arrecadação do ITR ou de 100% na hipótese de o Município ter firmado convênio com a União para fiscalizar e arrecadar esse imposto; defere 50% do produto de arrecadação do IPVA ao Município onde for licenciado o veículo; e, finalmente, regula a participação do Município em 25% do produto de arrecadação do ICMS.

O art. 159, por sua vez, regula a participação dos Estados e Municípios nos fundos formados com o produto de arrecadação do IPI e do IR (49% da arrecadação desses dois impostos).

Nessas operações de repartição de receitas tributárias não há qualquer relação jurídica com os contribuintes. São matérias de interesse exclusivo das três entidades políticas tributantes.

Bastaria tão só lembrar o conceito de direito tributário para de pronto concluir que essas repartições de receitas é matéria estranha a esse ramo do direito.

Realmente, consoante doutrina unânime, Direito Tributário é o ramo do direito público que estuda as relações jurídicas que se desenvolvem entre o fisco (federal, estadual e municipal) e o contribuinte no plano do direito material e na esfera do direito processual.

Na repartição de receitas tributárias o contribuinte está alijado. Cabe ao contribuinte apenas pagar o tributo, e não participar do produto de sua arrecadação.

Apesar do “óbvio” as confusões continuam a reinar.

Outro exemplo. A doutrina inseriu o princípio da indisponibilidade do credito tributário no elenco das coisas óbvias.

Mas, não é tão óbvio assim.  A indisponibilidade do crédito tributário aparentemente o coloca fora do campo da negociação, devendo ser arrecadado em sua inteireza para satisfazer um fim de interesse público. Mas, pergunto, esse interesse público é primário, é inegociável, como a preservação da soberania nacional, como a preservação da integridade territorial? Ou ele pode ceder ante outro interesse igualmente relevante?

Se temos um quadro de dívida ativa da União que chega a R$ 3,5 trilhões com perspectiva de seu crescimento à razão de 15% ao ano, sem a menor possibilidade de o Poder Judiciário promover a sua cobrança coativa, pergunto, não atenderia melhor ao interesse público transigir com o contribuinte para procurar receber parte desse crédito tributário?

Será que não foi em função desse interesse público secundário que o CTN previu em seu art. 171 o instituto da transação tributária, para por termo ao litígio mediante concessões recíprocas?

Não é razoável em nome da obviedade do princípio da indisponibilidade do crédito tributário quedar-se inerte assistindo passivamente o estoque da dívida ativa ir crescendo como bola de neve, sem lançar mão de mecanismos alternativos que possibilitam a arrecadação parcial desses créditos.

O que é óbvio nessa hipótese não é a indisponibilidade do credito tributário, mas exatamente o interesse público de arrecadar, ainda que parcialmente, o que for possível por meios legais disponíveis, como a transação tributária.

SP, 23-8-2021.

Por Kiyoshi Harada

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