Kiyoshi Harada
Presidente do IBEDAFT. Sócio fundador da Harada Advogados Associados. Membro da Academia Brasileira de Direito Tributário, da Academia Paulista de Direito e da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Autor de 33 obras jurídicas. Professor aposentado de Direito Financeiro da Unip. Membro do Conselho Superior de Direito da Fecomercio e membro do Conselho Superior de Estudos Legislativos e Jurídicos da FIESP – Conjur.
Sumário: 1 Introdução. 2 Exame da PEC emergencial. 3 Conclusão.
1 Introdução
Dentre as medidas preconizadas pelo governo para conter as despesas públicas figura a chamada PEC Emergencial que visa reduzir a curo prazo as despesas de pessoal, o segundo maior encargo financeiro do Estado, só perdendo para as despesas concernentes ao pagamento de benefícios previdenciários. O outro inimigo das finanças públicas é o serviço da dívida que, também, é combatido com a criação de um gatilho a ser disparado sempre que as operações de créditos excedam o montante das despesas de capital (art. 167, III) que a doutrina a denominou de cláusula de ouro.
2 Exame da PEC emergencial
Examinemos essa Proposta de Emenda Constitucional de nº 186/2019, denominada de PEC Emergencial, no que concerne à redução da jornada de trabalho do servidor público em até 25% com a redução proporcional de sua remuneração.
A primeira indagação que se faz é: o governo fez o diagnostico da causa ou causas do desequilíbrio orçamentário provocado pelo crescimento das despesas de pessoal?
Parece-me que não, pois a ordem jurídica vigente não permite a expansão dessas despesas além dos limites fixados na Lei de Responsabilidade Fiscal. A Constituição Federal e a Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF – contêm mecanismos para eliminar as despesas excessivas com pessoal. Senão vejamos.
O art. 19 da LRF fixa as despesas de pessoal na base de percentuais da receita corrente líquida: sendo 50% para União e 60% para os Estados e Municípios. E os limites por Poder estão fixados no art. 20:
I – Na esfera federal:
- a) 2,5% para o Legislativo, incluído o TCU;
- b) 6% para o Judiciário;
- c) 40,9% para o Executivo;
- d) 0,6 % para o Ministério Público
II – Na esfera estadual:
- a) 3% para o Legislativo, incluído o TCE;
- b) 6% para o Judiciário;
- c) 49% para o Executivo;
- d) 2% para o Ministério Público
III – Na esfera municipal:
- a) 6% para o Legislativo, incluído o TCM onde houver;
- b) 54% para o Executivo
Esses limites por Poder foram considerados constitucionais pelo STF, por maioria de votos (ADI nº 2.238-5, Rel. Min.Ilmar Galvão, DJe de 12-9-2008).
Após prescrever no art. 22 o mecanismo de controle das despesas com pessoal, o art. 23 da LRF disciplinou as providências cabentes ao Poder ou órgão referido no art. 20 na hipótese de ultrapassar os limites de despesas com pessoal nos seguintes termos:
“Art. 23. Se a despesa total com pessoal, do Poder ou órgão referido no art. 20, ultrapassar os limites definidos no mesmo artigo, sem prejuízo das medidas previstas no art. 22, o percentual excedente terá de ser eliminado nos dois quadrimestres seguintes, sendo pelo menos um terço no primeiro, adotando-se, entre outras, as providências previstas nos §§ 3o e 4o do art. 169 da Constituição.
- 1o No caso do inciso I do § 3o do art. 169 [1] da Constituição, o objetivo poderá ser alcançado tanto pela extinção de cargos e funções quanto pela redução dos valores a eles atribuídos. (Vide ADIN 2.238-5)
- 2o É facultada a redução temporária da jornada de trabalho com adequação dos vencimentos à nova carga horária. (Vide ADIN 2.238-5)
- 3o Não alcançada a redução no prazo estabelecido, e enquanto perdurar o excesso, o ente não poderá:
I – receber transferências voluntárias;
II – obter garantia, direta ou indireta, de outro ente;
III – contratar operações de crédito, ressalvadas as destinadas ao refinanciamento da dívida mobiliária e as que visem à redução das despesas com pessoal.
- 4o As restrições do § 3o aplicam-se imediatamente se a despesa total com pessoal exceder o limite no primeiro quadrimestre do último ano do mandato dos titulares de Poder ou órgão referidos no art. 20.
[…]”.
Ultrapassados os limites globais fixados no art. 20, o Poder ou órgão ministerial deverá eliminar o excesso, no prazo de dois quadrimestres, sem prejuízo das medidas previstas no art. 22, sendo que pelo menos um terço do excedente deverá ser eliminado no primeiro quadrimestre [2].
As providências para a redução de despesas com pessoal são aquelas indicadas nos §§ 3º e 4º do art. 169 da CF (redução em pelo menos 20% das despesas com cargos em comissão e funções de confiança; exoneração de servidores não estáveis; exoneração de servidores estáveis, desde que o ato normativo motivado de cada um dos Poderes especifique a atividade funcional, o órgão ou unidade administrativa objeto da redução de pessoal).
Na hipótese de redução das despesas com cargos comissionados e funções de confiança o objetivo poderá ser alcançado, tanto pela extinção de cargos e funções, quanto “pela redução de valores a eles atribuídos” (§ 1º, do art. 23). A redução de valores a que se refere o texto do § 1º não pode atingir servidores em exercício, por força do princípio da irredutibilidade de subsídio e vencimentos dos ocupantes de cargos e empregos públicos (art. 37, XV da CF). Daí porque foi determinada pelo STF a suspensão da expressão “quanto pela redução dos valores a eles atribuídos” [3].
O § 2º que faculta a redução temporária da jornada de trabalho com a adequação dos vencimentos à nova carga horária foi declarado inconstitucional pelo STF, por infringir o princípio da irredutibilidade de vencimentos acima mencionado [4].
O § 3º prescreve punições para o ente político que não alcançar a redução no prazo estabelecido, e enquanto perdurar o excesso. Essas punições consistem na proibição de:
I- receber transferências voluntárias [5];
II- obter garantia, direta ou indireta, de outro ente;
III- contratar operações de créditos, ressalvadas as destinadas ao refinanciamento da dívida mobiliária e as que visem à redução das despesas com pessoal.
O § 4º determina aplicação imediata das sanções previstas no parágrafo anterior se a despesa total com pessoal exceder o limite no primeiro quadrimestre do último ano de mandato dos titulares de Poder ou de órgãos referido no art. 20.
Verifica-se dos incisos I a III, do § 3º que todas as sanções estão voltadas para o Poder Executivo, apesar de o texto referir-se ao ente político. É que apenas o Executivo recebe transferências voluntárias, bem como somente ele promove operações de crédito.
Consoante escrevemos, as sanções dos incisos II e III são, na realidade, inconstitucionais, pois a Constituição Federal já prescreveu no § 2º de seu art. 169, a sanção pelo descumprimento de prazos fixados na lei complementar, limitada à suspensão dos repasses de verbas federais ou estaduais aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios. O legislador constituinte não deu margem ao legislador infraconstitucional para estatuir outras sanções, principalmente como as previstas nos incisos sob comento, que invadem as atribuições do Senado Federal (art. 52, VII e VIII da CF) [6].
3 Conclusão
Resulta de todo o exposto que o desequilíbrio orçamentário causado em grande parte por crescente despesa de pessoal é fruto do descumprimento de normas legais e constitucionais em vigor.
Por isso, a elaboração de novas normas de natureza constitucional não irá resolver o problema. Reagir com a costumeira providência legislativa, sem vontade política para erradicar o déficit público mediante redução de despesas, só servirá para avolumar a epidemia de normas que já tomou conta da nossa ordem jurídica e que vem gerando a insegurança jurídica.
E mais, no caso que estamos analisando a proposta de emenda constitucional, para reduzir a jornada de trabalho do servidor público seguida de redução salarial proporcional, encontra óbice na cláusula pétrea que assegura a irredutibilidade de vencimentos.
Nesse particular, a emenda, que tem caráter concreto, se aprovada poderá ter a sua inconstitucionalidade declarada pelo STF na mesma linha do decidido na Adin nº 2.238-5.
[1] Art. 169. As despesas de pessoal ativo e inativo ….
…
- 3º Para o cumprimento dos limites estabelecidos com base neste artigo, durante o prazo fixado na lei complementar referida no caput, a União, o Estados, o Distrito Federal e os Municípios adotarão as seguintes providências:
I – redução em pelo menos vinte por cento das despesas com cargos em comissão e funções de confiança.
[2] O prazo referido no art. 23 será duplicado no caso de crescimento real baixo ou negativo do Produto Interno Bruto (PIB) nacional, regional ou estadual por período igual ou superior a quatro trimestres, conforme prescreve o art. 66 da LRF.
[3] Adin nº 2.238-DF, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJe divulgado em 11-9-2008 e publicado em 12-9-2008.
[4] Adin nº 2.238-DF, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJe divulgado em 11-9-2008 e publicado em 12-9-2008
[5] É a entrega de recursos correntes ou de capital a outro ente da Federação, a título de cooperação, auxílio ou assistência financeira que não decorra de determinação constitucional, legal ou os destinados ao Sistema único de Saúde (art. 25 da LRF).
[6] Cf. nosso Lei de responsabilidade fiscal. São Paulo: Ed. Juarez de Oliveira, 2002, p. 111.